CAPÍTULO DOIS
Isidoro
caminhava a passos compridos, enxada ao ombro, cabeça baixa, o corpo ainda
morno pelo sol que o castigara durante o dia, e olhos fitos no chão. Logo atrás
Severino o seguia, trazendo consigo o vira-lata Piaba, que saltitava, língua
para fora, arquejante, farejando as moitas ao longo do caminho.
Eles
voltavam para casa depois de mais um dia de capinação no campo.
Chegando
a casa, ainda no terreiro, deitaram as enxadas num canto da parede, depois se
sentaram na soleira da porta da frente e ficaram tomando a fresca da boca da
noite, enquanto o vira-lata corria pelo quintal, beirando a cerca que rodeava a
casa, só parando para cheirar os pés de Isidoro e de passagem os de Severino,
arquejando e abanando o rabo numa demonstração de felicidade e emoção.
Dali
mesmo da soleira onde estavam, sentiram o cheiro delicioso de café vindo da
cozinha, enchendo a casa inteira, e ouviram Idalina, barriguda de nove meses, a
chamá-los para a ceia que já estava na mesa, com bolo de milho e café quentinho
feito há pouco. Não resistindo àquele convite, os dois entraram de casa
adentro, atropelando-se. O último a levantar-se ainda conseguiu fechar a porta
atrás de si. Até o cachorrinho já estava ao pé da mesa esperando alguma migalha
que viesse a cair no chão da cozinha.
A
noite foi caindo, o sol já se escondera no horizonte havia algum tempo e o
vento que saía de dentro da mata passava por cima do terreiro batendo nas
telhas da casinha de taipa, uivando, enquanto a bicharada inquieta no mato
procurava a segurança de suas tocas. No interior daquela casinha isolada de
tudo, a luz do candeeiro vacilava com o vento que insistia em entrar pelas
frestas da porta, enquanto as lagartixas corriam agitadas pelas paredes de
barro à caça de insetos que também ficavam inquietos fugindo delas. Indiferente
a tudo isso, Isidoro, Idalina e o pequeno Severino ceavam na cozinha, até
esgotarem o último gole de café e catarem todo o farelo de bolo da mesa.
Terminada a ceia, Isidoro
voltou a sentar-se na soleira da porta da sala — seu lugar favorito para fumar
— de onde contemplava a vastidão da caatinga à sua frente: arbustos
espinhentos, alguns pés de jurema, mais abaixo umbuzeiros, dois cajueiros; não
longe deles, uma jaqueira; e, à beira da estrada, uma mangueira frondosa. Havia
ainda alguns juazeiros e muitos mandacarus nativos espalhados pelo mato, com
frutos grandes e vermelhos, de aparência vistosa como uma manga-rosa, mas
insossos, cheios de baba e sem gosto.
Na cerca ao lado da casa, um
pé de maracujá espalhava frutos pelo chão, logo bicados pelos passarinhos. Já
no quintal, um pé de manga sombreava uma pequena casinha de madeira, feita para
abrigar o sanitário; os frutos maduros caíam sobre sua cobertura de palha,
varavam o teto e entupiam a latrina de base frágil.
Além de todo esse pomar a céu
aberto, podia-se ver, beirando a cerca e estendendo-se pelo oitão da casa, um
pé de melancia, que dava frutos suculentos, de polpa vermelha e doce. Ao redor
da casa, invadindo o mato, cresciam também pés de palma em abundância. Durante
a frutificação, eles ficavam carregados de frutos amarelinhos, muito apreciados
— mas quem se atrevia a comê-los passava o resto do dia retirando espinhos das
mãos. Nos umbuzeiros, igualmente carregados de frutos maduros, o chão amanhecia
coberto de pequenos umbus bem amarelinhos, alguns já estourados com a queda —
fruto do vento da madrugada.
Entre
uma tragada e outra, Isidoro ficava maravilhado com tudo aquilo. Nem percebia
Severino passar correndo pelo terreiro com Piaba atrás tentando morder o seu
calcanhar.
Entrementes,
Idalina ainda estava na cozinha retirando as canecas de alumínio, a chaleira e
os pratos de estanho da mesa, colocando-os numa bacia para depois lavá-los no
regato que passava nos fundos do quintal. O pequeno Severino, ou Bil, como era
carinhosamente chamado pelos pais, continuava brincando com o vira-lata Piaba,
correndo ao redor da casa.
Depois
de deixar a cozinha arrumada, a mesa limpa e o chão varrido, Idalina colocou a
bacia na cabeça e saiu para o riacho. Um quarto de hora depois ela estava de
volta e sentou-se ao lado de Isidoro na soleira da porta. Os dois ficaram
calados por um instante, mas foi Isidoro quem primeiro rompeu o silêncio,
confidenciando à sua mulher:
— Estava aqui fumando meu cigarrinho e pensando como nós
conseguimos até agora ficar neste lugar sem que ninguém venha cobrar nada. — E preparando outro cigarro de palha, continuou: — Não entendo porque nenhum cristão ainda não veio aqui
reclamar estas terras. Não é estranho tudo isso?
Idalina
ajeitou-se no limiar da porta, passou a mão sobre o seu barrigão de nove meses,
e concordou:
— Também acho. Um dia alguém vai vir cobrar o que é seu
de direito. — Chegando-se para
mais perto do marido, e olhando para o futuro, continuou: — Pode ter certeza disso. É muita terra para ser
esquecida assim, sem mais nem menos. Ainda vai aparecer aqui um filho, uma
mulher passando-se por esposa, ou algum parente para apoderar-se de tudo isso.
A
essa altura o pequeno Bil ainda continuava correndo ao redor da casa com Piaba
no seu encalço.
— Eu só fico pensando quando alguém procurar o que é seu
e não encontrar nem metade do que aqui deixou sob a nossa guarda.
— Mas você sabe o porquê de o gado ter sumido daqui — atalhou Idalina.
Isidoro
deu mais uma tragada no seu cigarro de palha e refutou:
— Não temos como provar que foram aqueles soldados que comeram todo o
gado deste sítio. Ninguém vai acreditar nessa história.
A
história que ninguém iria acreditar foi vivida por eles há alguns meses naquele
sítio (deve ter sido março ou abril), e como estávamos no mês de junho, eles
ainda traziam na lembrança aquela experiência traumática.
Aos
poucos e com muita demora passava-se o ano de 1966 e nada mudava naquele lugar
bucólico e preguiçoso; todo dia era o mesmo sol, o mesmo vento que circundava a
casa e a mesma chuva, quando esta resolvia passar por aquelas bandas.
Nessa
época a ditadura já estava enraizada no país. Os militares tomavam conta das
ruas e as pessoas eram presas, espancadas e até desapareciam sem deixar
rastros. A violência imperava nas avenidas e nos porões. Por aquelas bandas os
soldados vasculhavam os casebres e infernizavam a vida dos camponeses. Os
caminhões do exército percorriam as estradas dia e noite, a procura de pessoas
insatisfeitas com o regime, que eles chamavam de inimigos da Pátria. O dono das
terras onde Isidoro morava com a família era um dos dissidentes.
Certo
dia, um caminhão do exército, um amontoado de ferro com três eixos, cheio de
soldados, entrou sem nenhum aviso no sítio, derrubando a cancela e parando
embaixo de um umbuzeiro, a alguns metros da casinha de Isidoro.
Idalina
a essa altura com quase seis meses de gravidez, debruçou-se na parte inferior
da porta e ficou observando a movimentação daqueles homens que corriam de fuzil
na mão para todos os lados à procura de alguém ou de alguma coisa. Isidoro e o
pequeno Bil estavam na roça, mas com o barulho do motor daquele caminhão,
jogaram as enxadas no chão e correram para casa. Só que no caminho foram
interceptados pelos soldados que apontavam os fuzis para eles. Chegaram ao
terreiro aos empurrões e pontapés para que revelassem o paradeiro do dono
daquele lugar.
Idalina,
mesmo com aquele barrigão, também foi puxada para o terreiro e jogada ao lado
de seu marido e de seu filho. Nenhum deles sabia o paradeiro do patrão, nem
tampouco tinham conhecimento do que estava se passando no país àquela altura.
Depois
de muito interrogatório, o comandante da patrulha se encaminhou para o
umbuzeiro, seguido por seus comandados e ali montaram acampamento.
Nos
primeiros dias eles fizeram intensas rondas, dia e noite, pelo sítio e também
pelas redondezas, mas com o passar do tempo foram relaxando e os soldados se
esparramaram ao redor do umbuzeiro e dali em diante o que se via embaixo
daquela frondosa árvore era muita fumaça de churrasco e muita pândega (nessa
época ainda havia umas vaquinhas, uns dois bois e alguns garrotes soltos no
pasto). As bebidas eram trazidas de Águas Belas, juntamente com algumas
mulheres que participavam das orgias noturnas, ali mesmo no umbuzeiro.
Dias
depois os urubus já estavam sobrevoando a área, atraídos pela quantidade de
carcaças e vísceras que estavam sendo jogadas no mato.
Quando
no curral só restava um monte de bosta seca do gado e o jumento que eles não
tiveram paciência para transformá-lo em charque, os militares levantaram
acampamento e deixaram o sítio.
Durante
uma comprida semana, Isidoro e o pequeno Bil deixaram de lado os afazeres na
roça e foram aos poucos colocando as coisas nos seus lugares, depois que os
militares deixaram tudo de pernas para o ar.
Passado
esse vexame nunca mais ouviram falar do dono daquele sítio. Talvez esteja preso
ou até mesmo sumido nos porões da ditadura.
Isidoro
fumou mais um cigarro de palha, depois se levantou seguido por Idalina, que se
voltando para o terreiro, gritou para o pequeno Bil lavar-se no riacho antes de
deitar-se. Os dois, antes de entrarem no quarto, foram até a cozinha e tomaram
água fria do pote, depois foram deitar-se.
— Bil, quando entrar feche a porta da cozinha! —
gritou Idalina, já sentada na
cama.
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