CAPÍTULO QUATRO
Aos domingos, impreterivelmente, dona Bia descia com as meninas, mas com aquelas que não eram convidadas para alguma festança nas redondezas, e participavam da missa das seis da tarde na catedral. Para ir à missa elas não dispensavam uma maquiagem e roupas extravagantes, para desespero das beatas. Enquanto desfilavam pela rua conversando animadamente, gargalhando e rebolando, de longe as pessoas comentavam:
— Com tanta perna de fora cruzada na cara do padre, nunca que ele vai atirar a primeira pedra.
Elas entravam na igreja juntas e sentavam-se na última bancada. Algumas pessoas que já se encontravam naquele banco, aos poucos iam levantando-se e procurando outra bancada. Do altar o padre dava uma olhada para as recém-chegadas, sendo neste momento imitado pelos demais presentes que viravam a cabeça quase ao mesmo tempo, e cutucavam-se resmungando alguma coisa. Depois todos se voltavam para o padre e dava-se início à missa. O padre depois de folhear as páginas da Bíblia, pousava a mão sobre a página pretendida, e com o olhar estendido sobre os presentes, dizia-lhes:
— Amados irmãos, tomai o capítulo 8 do Evangelho segundo João.
Depois procurando as prostitutas que estavam sentadas na última fileira de bancas, iniciava o sermão escolhido para aquela liturgia.
— Pela manhã logo cedo Jesus estava no templo, ensinando. E os escribas e fariseus colocaram diante do Senhor uma mulher apanhada em adultério. E disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada adulterando.
Enquanto o vigário discorria sobre esta passagem bíblica, as beatas se inquietavam, cutucando umas às outras, impacientes. O sacerdote continuava:
— E na lei de Moisés exige-se que sejam apedrejadas. Que dizes? — Eles queriam um motivo para acusar Jesus de alguma coisa. Mas Jesus continuou escrevendo com o dedo na terra, e como aqueles homens insistiam tanto por um posicionamento de Jesus, que Ele lhes disse: “Atire a primeira pedra aquele que de entre vós está sem pecado”. E continuou a escrever na terra.
Pelo missal, dona Bia e as meninas acompanhavam o sermão, pois não tinham uma Bíblia como a maioria dos fiéis ali presentes.
Continuava o padre: — Redarguidos pela consciência, saíram um a um. E estando sozinho com a mulher, disse-lhe: “Onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou”.
O padre de seu púlpito procurava com o olhar as prostitutas sentadas na última bancada. E prosseguia: — E a mulher respondeu: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu te condeno; vai-te e não peques mais.
De uma coisa elas podiam se orgulhar. Sempre se comportaram durante a missa como qualquer outra pessoa ali presente. Seguiam todo o ritual da celebração, mas mesmo assim as beatas não cansavam de censurá-las de vez em quando.
Maria era a mais curiosa de todas. Passava a maior parte da liturgia observando o interior da igreja. Olhava para o teto no qual se viam vários anjos, nas paredes laterais ela não cansava de olhar a via sacra, e ficava se perguntando por que aquele homem tão bom e que só falava de amor, agora estava ali atrás do altar pregado numa cruz. Muitas vezes ela voltava a si sendo cutucada por dona Bia ou por uma das meninas para que se levantasse, pois todos estavam de pé naquele momento da missa.
A ida de dona Bia com as meninas, aos domingos, para a missa, agora estava até mais acessível. Porém já houve tempos bem mais difíceis. Houve uma época que até o padre tentou impedi-las de frequentar a igreja. As beatas chegaram a formar um cordão na calçada, juntas e de punhos cerrados bloqueando a passagem das meretrizes.
Durante essas desavenças, dona Bia dava um passo adiante, recuava, depois avançava, e as meninas tinham que puxá-la pela saia para que desistisse de enfrentar as devotas mais exaltadas. A saída era voltar desanimadas e desiludidas com a fé cristã.
Chegando ao cabaré, dona Bia ligava a radiola, corria para o bar e começava a beber e esbravejar palavrões e ofensas contra todo tipo de religião, deixando de lado apenas os terreiros de candomblé, que eram os únicos que recebiam de braços abertos ela e as meninas. Essas visitas aos terreiros foi há muito tempo, Maria ainda vivia nas ruas de Águas Belas com a meninada cheirando cola.
Com o passar do tempo e também pela insistência delas, as beatas foram aos poucos cedendo e quando as prostitutas perceberam já estavam sentadas dentro da igreja, lá atrás onde sempre ficavam separadas e aguentando a repulsa daqueles que estavam ali para louvar, agradecer e adorar a Deus.
Tempos depois elas perceberam uma mudança, mesmo pequena, mas já havia um ambiente mais respeitoso. Até o padre agora vinha cumprimentá-las. Como dona Bia era uma mulher que conhecia as tempestades que nos surpreende a cada passo dado, chegou à conclusão de que aquela aceitação era simplesmente pelo fato das gordas contribuições dominicais que ela doava à igreja.
Sempre depois da missa, algumas beatas se dirigiam para o confessionário onde o vigário já estava esperando-as com o breviário aberto sobre as pernas. Ficavam enfileiradas diante do confessionário e também naquela fila estava dona Bia e algumas das meninas, sempre aquelas que tinham algo a cobrar do vigário.
— Reze dez Ave-Marias e dez Padre-Nossos — sentenciava o pároco, voltando a abrir o breviário enquanto outra beata sentava-se do outro lado da janelinha protegida por uma tela que não deixava ver nitidamente o seu rosto, apenas a sua confissão.
Nessa fila formada até chegar ao padre, algumas beatas cochichavam umas com as outras sobre a presença das prostitutas diante do confessionário:
— Se contarem metade de seus pecados vão passar o resto da vida pagando penitência — sussurrava uma, e a outra a sua frente, replicava:
— Talvez queiram espelhar-se na mulher adúltera. Porém se o padre pedir que atirem a primeira pedra, coitadas, aqui em Águas Belas morrerão todas apedrejadas. — E nitidamente numa atitude de segregação, continuavam cochichando e olhando de soslaio para dona Bia e para as meninas.
A fila do confessionário caminhava, e quando chegava à vez das prostitutas, primeiro sentava-se dona Bia, e pigarreando, começava a sua confissão:
— Padre de Deus! Aqui estou com a caderneta aberta exatamente na página com o seu débito. — E ficava aguardando o vigário do outro lado falar alguma coisa. Depois de alguns segundos o padre com a voz irritada, respondia-lhe baixinho:
— Amanhã logo cedo o sacristão vai a sua casa e paga tudo isso. Agora se vá!
Dona Bia levantava-se sorridente e passando pelas meninas gracejava:
— Apenas dez Ave-Marias! Como devo tão pouco ao Senhor!
Logo em seguida o pároco tomava outro susto, porque quem agora estava sentada no banquinho do confessionário era uma das meninas de dona Bia e fazia-lhe outra cobrança.
— Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo! Até parece que a coisa se inverteu, agora eu é quem passei a pagar penitência!
Em seguida levantou-se irritado, abandonando o confessionário e deixando a beata que acabara de sentar-se falando sozinha, até o momento em que era socorrida pelo sacristão que chegava e já ia logo aplicando a sentença:
— Cinquenta Ave-Marias e cem Padre-Nossos.
A beata levantava-se bocejando e saía de igreja afora reclamando de sua penitência.
— Eu, uma mulher pura, que só vivo para o meu bom Deus, ter que pagar tudo isso!
Outras também saíam com a mesma reclamação, até que o padre se acalmava e voltava para substituir o sacristão.
Todo domingo após a missa, no confessionário era essa mesma ladainha. Só bastava dona Bia e as meninas entrarem na fila para o sacristão exagerar nas suas sentenças, porque o coitado não tinha noção do tamanho de um pecado. Por incrível que pareça, as beatas nunca desconfiaram de nada. Umas aqui, outras ali, sempre comentavam que o vigário ficava com a voz estranha e mais severa depois de confessar as prostitutas, talvez fosse pelo tamanho do pecado que elas carregavam.
Como o padre era sempre protegido pelas devotas, nenhuma insinuação maldosa caía-lhe sobre os ombros. Sempre aos domingos as beatas estavam na igreja, assim como dona Bia e as meninas, mesmo discriminadas, também não faltavam às missas dominicais.
Contudo num certo domingo após a missa, elas desciam a calçada da igreja, Maria estava nesse dia, e foi exatamente ela quem puxou dona Bia pelo braço e cochichou-lhe:
— Preciso ficar um pouco aqui na praça. Vai indo que chego já.
Dona Bia seguiu para casa com as meninas, deixando-a ali na praça.
A intenção de Maria era rever os seus amiguinhos de outrora. Não os encontrou desta vez, apesar de ter comprado um monte de doces para presenteá-los. Andou pela praça, entrou em beco, procurou nas bancas amontoadas na calçada... Depois de tanto procurar, voltou para casa e recolheu-se ao seu quarto, decepcionada.
Sempre que Maria estava deitada na cama, ela sentia saudades de sua casinha no sítio, de seus pais, e de seus dois irmãos. Depois num impulso levantava-se e corria para a calçada e ficava olhando para o lado de Itaíba, na esperança de alcançar com os olhos a casinha de taipa fincada logo depois do rio Ipanema, mas as casas que ficavam lá adiante tapavam o caminho de sua visão e ela não podia enxergar o que estava além, e cabisbaixa voltava para o seu quarto pensando no que estaria se passando dentro daquele casebre de taipa do outro lado do rio.
Esse impulso que às vezes sentia para rever a sua família e o lugar onde nascera nunca a surpreendia na segunda-feira, porque ela sabia que nesse dia seu pai e seu irmão Severino estariam na feira de Águas Belas, e o melhor era evitar ficar até na janela. Ela evitava esse encontro desde os tempos que ainda vivia perambulando pelas ruas. No dia da feira livre de Águas Belas, ela se escondia e não acompanhava seus amigos pelas ruas. Só que ela não sabia que o seu pai e até mesmo a sua mãe haviam desistido de vir à feira de Águas Belas desde o dia em que fora expulsa de casa.
Já havia bastante tempo que Maria morava no cabaré, tinha adquirido experiência e já circulava no meio daquela gente com muita desenvoltura. Agora sua vida estava passando por uma fase de transformação; já não era aquela menina ingênua que ficava acanhada quando entrava no quarto com um homem. No momento tinha um amante fixo que exigia exclusividade, apesar de saber que no cabaré essa norma seria impossível de ser cumprida, mas pelo menos quando estivesse presente, o amante exigia respeito, afinal de contas o cara era um fazendeiro afortunado e agora arcava com todas as despesas dela. Maria se esforçava para não o desapontar, quando ele estivesse presente no cabaré, e nunca foi surpreendida com outro.
Aconteceu que certo dia Maria é quem é pega de surpresa com uma proposta mirabolante e quase irrecusável de um homem que estava de passagem pela cidade e visitava o cabaré. Não era para casar-se com ele, nem tampouco para ser retirada daquele lugar para viver amigada numa casinha mobiliada na ponta da rua. A proposta do desconhecido era só e simplesmente levá-la para ganhar a vida na capital, num cabaré de Recife.
Na manhã seguinte o quarto de Maria estava vazio.
v