CAPÍTULO NOVE
Durante os dias que se passaram nada de anormal aconteceu na fazenda do coronel Apolônio, apenas aquela ânsia de que o planejamento que fora traçado fosse logo concluído, mas tudo dependia do magricela a quem o coronel confiara à tarefa.
A cada dia que se passava João Cipó era procurado pelo coronel para colocar na mesa as fases de seu plano, o dia da execução e se já havia escolhido uma vítima.
O coronel andava ainda mais nervoso dentro de casa e os capangas advertindo-lhe de que o magricela não era o homem ideal para aquele serviço. Teriam que escolher dentre eles alguém mais qualificado para aquela empreitada.
João Cipó foi chamado ao casarão para decidir de uma vez por todas se iria mesmo cumprir com o acordado. O coronel confiava nele, não tinha a mínima ideia por que, mas confiava e sabia que a escolha fora acertada.
O magricela garantiu a todos que já estava decidido a fazer o que fora acertado dias atrás. Já escolhera até a vítima e o coronel ficou satisfeito com a resposta e tranquilizou-se. João Cipó acrescentou que ainda não tinha o dia certo para executar a primeira parte do plano, mas era só questão de tempo.
Enquanto isso, Zé Raimundo sem saber o que se passava na cabeça do magricela, continuava assediando-o, tentando seduzi-lo diante de todos. As brincadeiras maldosas não paravam. Até que chegou um dia em que João Cipó percebendo o movimento malicioso de Zé Raimundo, e não mais suportando aquela safadeza, saltou de lado com o facão na mão e o ameaçou:
— Se tentar esse tipo de sacanagem comigo, eu vou rasgar o seu bucho de cima a baixo!
Os capangas que assistiam a tudo debruçados na cerca do curral, caíram na gargalhada.
— Vai, Zé! Tenta comer o magricela! Tu vais é comer facão até umas horas! — E continuaram caçoando dele.
Contudo, Zé Raimundo tentava mostrar aos companheiros que era macho, e aproximando-se do magricela, continuava menosprezando-o.
— Venha meu franguinho, eu prometo que não vou lhe machucar. Depois você vai até gostar.
Zé Raimundo não arriscou chegar muito perto do amarelinho, mas foi o suficiente para ver o facão cortar o ar e passar rente ao seu rosto, rasgando a sua camisa. Ele também estava armado com um revólver, que imediatamente depois do susto, foi sacado e apontado para o rosto de João Cipó.
— Calma seu veadinho. Eu posso arrebentar a sua cara — ameaçava Zé Raimundo, olhando para a camisa rasgada.
Os capangas que até o momento só assistiam, desceram do cercado do curral e se precipitaram para cima dos dois, na tentativa de acalmar os ânimos, pois o magricela continuava com o facão na mão, mesmo com um revólver apontado para o seu rosto.
— Vamos com calma, Zé Raimundo. Ele estava apenas querendo se defender. O cara é macho assim como nós somos! Guarda a porra desse revólver!
Zé Raimundo recuou um pouco, e olhando o magricela de soslaio, guardou o revólver na cintura e retirou-se. João Cipó voltou-se para o cocho e continuou cortando palma, como se nada tivesse acontecido.
Do alpendre do casarão o coronel Apolônio observava toda a movimentação no pátio e de onde estava percebeu que os ânimos estavam inamistosos entre João Cipó e Zé Raimundo, mas não se intrometeu e deixou que a situação tomasse o seu rumo. Só depois que os dois se acalmaram e cada um procurou retomar o seu trabalho é que o coronel desceu o alpendre e caminhando decidido em direção a João Cipó, foi ter com ele uma conversa.
— Rapazinho, eu não quero nem saber o que vocês dois discutiam, agora a conversa é entre nós dois. — Foi logo dizendo o coronel ao aproximar-se do magricela.
De um pulo João Cipó virou-se para o coronel Apolônio e sem falar nada, o encarou. O coronel continuou:
— Precisamos saber em que pé está o nosso plano. Vai continuar ou pretende desistir?
João Cipó olhou para baixo procurando as pernas do coronel e respondeu com firmeza:
— Meu patrão, agora nós vamos até o fim, e já tenho até o dia marcado para fazermos a primeira parte.
O coronel Apolônio deu um tapinha nas costas de João Cipó e retirando-se murmurou alguma coisa que o magricela não chegou a entender. João Cipó estava mesmo decidido a cumprir com a sua palavra, e não iria demorar muito para que isso acontecesse.
Foi no sábado seguinte, logo após a conversa que tivera com o coronel.
Bem cedinho o magricela pegou um cavalo no cercado, colocou uma faca-peixeira na cintura e saiu em disparada para a feira de Itaíba. Na fazenda ninguém sabia do seu paradeiro. Nem viram quando ele saiu.
O coronel mandou alguns vaqueiros à sua procura, entre eles Zé Raimundo, só que quando chegaram à feira, esqueceram que estavam procurando João Cipó e no primeiro bar que encontraram foram logo entrando.
João Cipó não era mais o objetivo deles. Só foram perceber que estavam procurando o amarelinho quando na rua as pessoas corriam desorientadas e havia ao pé da mesa deles várias garrafas vazias.
Enquanto os vaqueiros divertiam-se naquele bar, Zé Raimundo saiu pela feira à procura de uma namorada. Depois de passar o dia num beco com uma cabrocha, foi beber num bar longe de seus parceiros. Bebeu várias cervejas no balcão e depois foi para a porta fumar. Foi quando alguém de dentro do bar o chamou. Ele virou-se, e dali mesmo da porta ficou conversando.
Nesse dia João Cipó tomou algumas cachaças numa birosca afastada da feira, na saída para Negras, conversou bastante, depois almoçou na barraca de dona Mariquinha e andou pela feira até encontrar Zé Raimundo, que estava encostado a porta de um bar, com as costas para a rua.
Até este momento o sábado estava transcorrendo normalmente, sendo bagunçado quase ao anoitecer, quando a feira foi tomada por um alvoroço e correria de gente para todos os lados. É que numa espelunca que vendia cachaça, na sua calçada estava caído um homem todo ensanguentado. Era Zé Raimundo esfaqueado até a morte.
As pessoas se empurravam para ver o vaqueiro esfaqueado na calçada da quitanda, e outros corriam para a esquina onde um rapaz com a camisa manchada de sangue já estava algemado e sendo levado pela polícia. Era João Cipó.
Já caminhavam pela calçada em direção à delegacia. João Cipó na frente, com os olhos para o chão, e os dois soldados escoltando-o, enquanto um monte de gente caminhava atrás. O criminoso estava sendo levado para a delegacia a pé, porque a única viatura da polícia estava com o delegado que fora para Arcoverde com a família fazer as compras do mês.
Enquanto o magricela era levado preso, na calçada do bar onde Zé Raimundo estava estirado, os curiosos faziam um círculo ao seu redor e a conversa fluía em torno do ocorrido.
— Esse era um cabra macho. Capanga do coronel Apolônio — alguém comentou.
— O coronel um dia desses perdeu um filho assassinado, e agora um capanga, que coisa! — outro curioso lamentava.
— E perdeu a mulher também — corrigiu alguém.
— Agora esse aí só morreu porque foi na covardia — lastimava-se um senhor que não tirava os olhos de cima do morto.
— Eu estava encostado ao balcão e vi quase tudo. Esse aí estava na porta, de costas para a rua, quando o amarelinho chegou e meteu-lhe a faca! — confidenciava um curioso mais empolgado.
A essa altura o boteco já estava com as suas portas arriadas, e no meio de todo aquele povo alguém teve a iniciativa de cobrir o morto com um lençol, até que fosse removido para a casa de saúde.
As autoridades esqueceram que Zé Raimundo estava estirado naquela calçada, e depois de algumas horas, enfim o morto foi levado para a casa de saúde e passou a noite na pedra, até que ao amanhecer de domingo foi sepultado no cemitério da cidade, sem parentes, sem a presença do coronel e também sem nenhum de seus companheiros da fazenda. Apenas um carroceiro, pago pela prefeitura, levou o corpo de Zé Raimundo até a cova, e esperou até que a última pá de terra fosse jogada sobre o caixão.
Na fazenda o coronel Apolônio quando soube do assassinato na feira, e que o autor da façanha era o magricela, vibrou de contentamento.
— Que amarelinho macho! É desse tipo de homem que eu preciso para trabalhar comigo!
Porém a sua fisionomia foi mudando à medida que foram lhe contando o resto da história e quem era a vítima.
— Que moleque filho da puta! Tinha de matar logo um vaqueiro meu! A sorte dele é que eu não sou homem de duas conversas, senão esse filho de uma porca iria apodrecer atrás das grades! — vociferou o coronel — e continuou:— A atitude desse moleque foi corajosa, quero dizer, o moleque cumpriu com a sua palavra. Vamos comemorar!
Na mesma hora gritou para Chiquinha, a sua empregada de confiança, que trouxesse bebidas para o alpendre e também matasse um capão gordo e assasse para acompanhar a bebedeira.
Enquanto as bebidas eram servidas, o coronel caminhando pelo terraço, vociferou: — Zé Raimundo, que Deus o tenha, mas há muito tempo que merecia isso!
Os capangas e os vaqueiros sentaram-se nos degraus do alpendre e começaram a beber, enquanto o capão estava sendo assado na cozinha.
A transferência de João Cipó para o Presídio Aníbal Bruno foi rápida, não chegou a ficar preso em Itaíba nem uma semana, porque se cumpriu a vontade do coronel Apolônio.
No dia seguinte à sua chegada, o diretor do presídio recebeu um auxiliar com uma recomendação inusitada:
— Senhor diretor, com licença.
— O que foi dessa vez?
— O coronel de Itaíba mandou avisar-lhe que tem um homem dele aqui dentro.
— Cadê o comprovante de depósito?
— Eis o seu comprovante.
— Então tudo bem. Apenas fiquem de olho nesse prisioneiro e não deixem ninguém o machucar.
— Ele será bem tratado, senhor. — E o auxiliar retirou-se.
João Cipó, no presídio de Recife, ficou numa cela fétida, com outros oitenta e tantos detentos, todos empilhados em um cubículo onde havia espaço para acomodar uns dez presos. Ele ainda não havia cruzado com Isidoro, mas já sabia onde ficava o pavilhão dele e um detento prometera que no banho de sol da manhã seguinte lhe mostraria o assassino de Marcelo.
No dia seguinte todos os presos foram para o banho de sol. Muitos ficaram sentados na arquibancada nas laterais do campo, outros ficaram conversando em pequenos grupos no meio da quadra. Esse era o momento de todos os presos aproveitarem o ar puro, o sol da manhã, mesmo dentro daqueles muros altos e sob a vigilância dos guardas que ficavam circulando no pátio, enquanto outros estavam atentos no alto das guaritas.
João Cipó caminhava pelo pátio, nervoso e ansioso, na esperança de cruzar logo com Isidoro, quando de repente um meliante aproxima-se e caminhando ao seu lado, sussurra-lhe alguma coisa:
— Aquele ali, encostado na pilastra, é o caipira de Itaíba.
João Cipó o fitou por alguns instantes. Naquele momento, teve vontade de correr daquele pátio, trancar-se em sua cela e esperar o tempo da pena passar. O homem, tão sereno, não parecia merecer a morte. Estava ali por uma fatalidade da vida, por uma causa qualquer… então, por que matá-lo?
O pensamento foi interrompido pelo meliante, que lhe deu um tapa no ombro:
— Viu a cara dele? Agora é por tua conta. O coronel também vai me soltar, mas isso depende de ti.
João Cipó afastou-se do meliante e foi sentar-se num degrau afastado dos demais presos e ficou pensando como iria matar um homem que nenhum mal lhe fez, e ainda por cima com uma aparência tão bondosa. Só o dinheiro para levar um homem a cometer um ato tão mesquinho e covarde. Com esses pensamentos foi deitar-se em sua cama-beliche — porque os protegidos do coronel não dormiam no chão — e ficou pensando como iria executar a sua tarefa. Ainda trazia na memória o rosto daquele homem sem vestígio de maldade.
Depois de fumar um cigarro, João Cipó voltou ao passado e avistou o terreiro de sua casa, com seu pai caído num canto, sua mãe caída abraçada com a sua irmã caçula e seu irmão a beira da cerca com mais de dez tiros nas costas quando tentava fugir daquela carnificina. Fizeram aquilo com tantos inocentes... Por que ele iria vacilar agora? Que se danasse o mundo e quem nele estivesse!
Durante o banho de sol, Isidoro sempre ficava afastado dos outros presos, ainda não havia feito amizade lá dentro, e o seu comportamento era diferente desse vivido dentro daqueles muros. Ele era um camponês, estava ali por uma fatalidade da vida, não era um deles, por isso estava sempre distante daquela gente nos banhos de sol. Talvez, se dentro daquele presídio, Isidoro tivesse feito amigos que o protegesse, João Cipó teria encontrado dificuldade para matá-lo, mas Isidoro não procurou amparo, até porque jamais pensaria que ali dentro estaria alguém de Itaíba com o propósito de eliminá-lo. Para Isidoro, preso dentro daqueles muros, estaria protegido e em segurança.
João Cipó disfarçadamente olhou para o homem que estava novamente encostado a pilastra e chegou à conclusão de que a sua missão estaria chegando ao fim. Não tomou nenhuma decisão precipitada, apenas gravou a sua fisionomia e recolheu-se para esperar o momento oportuno.
Só que depois de transcorridos vários dias, João Cipó ainda trancafiado naquele presídio, sem receber nenhuma notícia de Itaíba, nem sequer uma visita, ele caiu no desespero. Estava com a cabeça completamente confusa e os seus pensamentos diziam que ele fora abandonado naquele inferno e que a conclusão de tudo aquilo seria pagar pelo seu crime durante um bom tempo. Naquele desespero por um sinal salvador, pensou até em desistir do plano e esperar pelo menos uns vinte anos para conseguir a liberdade. Contudo, quando estava deitado, ele não parava de pensar no seu futuro, se é que havia algum. Até que um dia o inesperado aconteceu.
João Cipó estava no pátio tomando o seu banho de sol com os demais detentos quando um guarda se aproximou e com um embrulho na mão, ciciou:
— Aqui está um sanduíche que mandaram para você.
João Cipó olhou para o guarda, e medindo os movimentos pegou o embrulho e segurou-o numa das mãos. O guarda não falou mais nada, apenas se virou e saiu apressado por entre os detentos. Quando o guarda desapareceu, o magricela caminhou até um canto do muro e abriu o pacote. Para sua surpresa, era realmente um sanduíche, só que não havia dentro do pão nenhum pedaço de queijo, nem presunto, nem tampouco salsicha. O pão estava recheado com um punhal de aço reluzente. A pequena arma branca estava envolta num papel com algumas palavras escritas à mão, que para o magricela era um monte de sinais, pois ele era analfabeto de pai e mãe e o pessoal da fazenda do coronel não sabia desse detalhe.
Ele guardou o punhal no bolso, comeu o pão, depois pegou novamente o papel, encarou os detentos que estavam no pátio, teve vontade de pedir ajuda para alguém decifrar aquele bilhete, mas desistiu, seria perigoso naquele momento. Achou por bem agir sozinho de acordo com o seu instinto e acabar de vez com aquele drama. Apalpou o punhal no bolso e saiu caminhando pelo meio dos presos, olhando cada rosto que cruzava o seu caminho, na esperança de encontrar Isidoro. Não demorou muito, porque encostado a uma trave da quadra de futebol de salão, estava o homem que ele iria matar.
Aproximou-se a passos lentos, e num abraço rápido, cravou o punhal na garganta de Isidoro, passando-lhe o braço ao redor do pescoço, imobilizando-o até deixá-lo cair lentamente no chão, sangrando até morrer, sem nenhum socorro, pois na hora que viram Isidoro com o rosto afogado numa poça de sangue, todos os detentos afastaram-se, deixando os dois sozinhos na quadra; Isidoro caído e João Cipó de pé ao seu lado esperando a segurança do presídio que não demorou a chegar correndo com os fuzis empunhados prontos para detê-lo.
Depois de algemado foi levado para a solitária, enquanto o corpo de Isidoro era carregado pelo camburão para fora do presídio.
Dois dias depois daquele crime dentro do presídio, João Cipó estava entrando numa viatura da polícia para ser levado de volta para Itaíba, onde um juiz o aguardava para ser julgado. Agora o julgamento estava marcado e ele poderia voltar para pagar pelo crime cometido naquele distante sábado em Itaíba.
O carro da polícia saiu de Recife com destino a Itaíba, com um soldado dirigindo, um cabo no comando, mais um soldado e João Cipó no banco traseiro, sem algemas.
Chegando a Águas Belas, a viatura parou defronte a um bar, os quatro desceram e sentaram-se a uma mesa. Foi servida uma cerveja, duas pingas, enquanto o soldado puxava João pelo braço e falava ao seu ouvido:
— Acho que a custódia termina aqui. Aí está a liberdade! Estamos ganhando para fazer isso... É só pedir para ir ao banheiro e de lá mesmo desaparecer. Aproveita o momento.
João ficou confuso, não entendeu porque aquele policial queria libertá-lo, mas de repente se lembrou do plano. Era o coronel Apolônio atuando.
— Preciso ir ao banheiro. Cerveja enche muito a bexiga — avisou João Cipó com um brilho de felicidade nos olhos.
— Tudo bem — autorizou o cabo. — O soldado Lima o acompanha.
Os dois seguiram até o quintal onde ficava o banheiro.
O cabo já estava ciente de toda a tramoia montada e todos eles estavam ganhando dinheiro do coronel para que essa ação fosse executada.
Depois de aliviado, João Cipó foi chamado novamente pelo soldado que o esperava a porta do banheiro.
— Toma este revólver e bate na minha nuca com força, tenho que desmaiar. Estou ganhando para levar essa bordoada. Bate, pula esse muro e desaparece daqui.
Era um muro baixo que dava para um matagal que subia até uma serra que corria no horizonte até se perder de vista.
Assim aconteceu. Nunca mais ouviram falar de João Cipó.
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