CAPÍTULO UM
Maria logo chegou a Águas Belas. Muito cansada e também morrendo de sono, porque fora acordada ainda na madrugada e havia percorrido a pé quase um quilômetro do sítio até àquela cidade, com muito esforço conseguiu sentar-se num banquinho da praça. Uma pracinha com uma vegetação esparsa, alguns bancos, e pequenos arbustos com flores amarelas e brancas. Passaram-se alguns minutos e sem conseguir segurar-se sentada, arriou e adormeceu.
Até sonhou.
No sonho ela caminhava ao lado de muita gente e todos seguiam em direção a uma festa que acontecia na praça de uma cidade que ela não conseguia reconhecer. Era um lugar esquisito. Havia uma festa naquela cidade. Foguetório e um parque de diversão com muita música saindo de um alto-falante. As pessoas caminhavam cruzando-se sem um destino definido. Pais seguravam a mão de seus filhos que comiam algodão-doce colorido.
Maria caminhava sozinha entre a multidão, até que se deparou com uma mesa comprida cheia de comida e muita gente ao redor comendo e bebendo gulosamente. Quando ela se aproximou da mesa, as pessoas se afastaram e nessa hora as comidas e as bebidas saíram da mesa voando lentamente e sumiram nas nuvens. Parada diante da mesa, ela sentiu que sob seus pés alguma coisa líquida e fria deslizava, espalhando-se ao seu redor. Quando olhou para o chão, um rio de sangue vagarosamente se espalhava por toda a área da festa. Em seguida uma névoa surgiu à sua frente ofuscando-lhe a visão. Dentro daquela névoa caminhavam Idalina, Severino, Nicodemos e seu pai. Ela tentou alcançá-los, mas não conseguia sair do lugar. Depois de infrutíferas tentativas, acordou.
Ainda rememorando o sonho, levantou-se, pegou os seus trapos e saiu caminhando sem rumo por ruas desconhecidas. Naquele momento estava a maior confusão dentro de sua cabeça.
Mesmo ainda não tendo acordado para a realidade, ela sentia que de agora em diante a sua vida estava resumida a dormir numa calçada ou num banco da praça, sem uma rede quente e também sem uma mesa com as comidas quentinhas e saborosas feitas por sua mãe.
Cansada de tanto vaguear pelas ruas e não chegar a lugar nenhum, ela resolve sentar-se num banquinho da praça, talvez fosse aquele o mesmo banquinho que deixara há pouco, mas se animou ao ver um cachorro que revirava uma sacola numa lixeira na calçada a sua frente. Seu estômago vazio já começava a doer. Foi quando se lembrou de sua casa, de sua mãe e de seus irmãos, mas ao mesmo tempo sentiu raiva de si mesma pela lembrança que a dominava. Mesmo que tentasse afastar essas recordações, seus pensamentos estavam voltados para as batatas fumegantes com preá assado e do café ainda quentinho no bule.
Estava começando a sentir alucinações.
Depois de voltar à realidade, foi até o lixo onde o vira-lata remexia e sentando-se ao seu lado, também ficou procurando comida nas sacolas. O cachorro rosnou à sua chegada, mas logo se acalmou e juntos continuaram catando os restos de comida jogados na lixeira.
Depois desse encontro e da refeição insalubre, os dois ficaram amigos, e aonde Maria pisava, o vira-lata a seguia. Nesses momentos ela se lembrava de Piaba.
Na hora que apertava a fome era o cachorro quem descobria um lixo com uma boa refeição. Não mais brigavam pelo melhor osso. Andavam Águas Belas de ponta a ponta, um sempre seguindo o outro, e sem cerimônias, dormiam nas calçadas, nas praças e até nos degraus da igreja. Quando Maria se sentia exausta, deitava-se em qualquer lugar e dormia, e o cachorro dormia ao seu lado.
Há dias que Maria não sabia o que era um banho. Seus cabelos já estavam duros e emaranhados; seu rosto e seus braços já se mostravam manchados devido à sujeira acumulada (mistura de suor e poeira) e a fedentina à sua volta afastava as pessoas. Apenas o cãozinho era indiferente aquele fedor, e os dois se tornaram tão amigos, mas tão íntimos, que já não eram vistos sozinhos andando nas ruas. Quando estavam dormindo sobre um papelão, ficavam juntinhos. Maria o aconchegava no colo e encolhendo-se, o vira-lata colocava o focinho entre os peitos dela e dormia. No entanto aquele mundo aberto para os dois não perdurou muito.
Já estava quase anoitecendo e os dois caminhavam pela calçada da praça no centro de Águas Belas. Maria na frente e o cachorro no seu calcanhar, e lentamente se dirigiam para a catedral. Talvez nesta noite dormissem por lá.
A calçada da igreja era quentinha, mas disputada por muitos mendigos. Com sorte, ainda encontrariam um canto para passar a noite. Maria seguia à frente, carregando debaixo do braço um pedaço de papelão e, na outra mão, a sua trouxa de roupa. Atrás vinha o vira-lata, farejando tudo o que surgia pelo caminho — até o pneu de uma bicicleta encostada no meio-fio era cheirado por ele, na esperança de descobrir algum resto de comida.
Chegaram à calçada da catedral. A noite ainda guardava muitos espaços vazios, e seria ali mesmo que passariam a madrugada. Maria deixou seu pedaço de papelão ao lado da porta, quase encostado em um mendigo que já roncava suavemente, e sentou-se, puxando seu pequeno amigo para deitar-se ao seu lado. O vira-lata se aninhou junto às suas pernas, quente e silencioso. Ela permaneceu sentada, o olhar perdido na praça à frente, mergulhada em pensamentos, demorando-se naquele instante que parecia suspenso no tempo.
De repente foi despertada com a chegada de vários meninos de rua que subiam os degraus da igreja acordando todo mundo numa tremenda algazarra. Todos os mendigos que estavam deitados naquela calçada debandaram, sumiram rapidamente. Apenas Maria e seu fiel amigo não se mexeram.
Desnorteados, não entenderam o que estava acontecendo.
O cachorro se posicionou para defendê-los, ficando à frente, rosnando, e Maria não moveu sequer um músculo de seu corpo, e paralisada olhava para os meninos que aos poucos se aproximavam.
— “Temer mais o quê?” — Ela pensava. A única coisa que tinha de valor naquele momento era o seu amiguinho, que àquela altura dos acontecimentos tentava defendê-la.
Os meninos a rodearam, sentando-se na calçada e rindo às gargalhadas, como se o mundo inteiro coubesse naquele instante de diversão. Maria, porém, mal percebeu o tempo passar. Seu amiguinho — que há pouco ainda a protegia com fidelidade — agora repousava sobre as pernas de uma menina que chegara com os invasores, sendo acariciado com delicadeza. Ao redor, os meninos continuavam rindo, formando um círculo em torno de Maria.
Maria estava confusa. Seria aquilo mais um sonho?
Na manhã seguinte o bando perambulava pelas ruas de Águas Belas, agora com um número maior de desocupados, pois Maria e o vira-lata já tinham sido aceitos no grupo.
Caminhavam sem rumo, não tinham destino certo, passavam o dia vadiando pela cidade. Não assustavam mais os comerciantes, nem tampouco era problema para a polícia, porque já eram bem conhecidos. Só pediam, não roubavam. Eram inofensivos e a única contravenção que praticavam era o uso constante de cola. Cheiravam muita cola, pois era naquela época um entorpecente acessível e de baixo custo. Às vezes aparecia um cigarro de maconha, mas era muito raro.
Uma vez ou outra um deles estava baforando um fumo desses sem interesse e sem compromisso. Eles aceitavam esse tipo de experiência quando ganhavam de algum traficante que tentava recrutá-los, mas não se intimidavam com essas ofertas miraculosas; só não queriam se envolver nem com a polícia, nem tampouco com os bandidos. Percebendo a recusa deles, o traficante escapulia de mansinho à procura de uma alma mais frágil disposta a colaborar. Como eles viviam sem desobedecer às regras, a polícia não tinha nenhum motivo para incomodá-los.
O grupo era formado por seis criaturas abandonadas e jogadas na rua, sem nenhum objetivo de vida, mas com uma história em comum. Ninguém carregava trouxa de roupa, apenas Maria trazia a sua debaixo do braço A única coisa que não deixava de acompanhá-los era uma garrafinha de refrigerante com mais ou menos três dedos de cola de sapateiro que passava de mão em mão, entre eles.
Maria e seu cãozinho agora seguiam lado a lado com vários meninos de rua, como se o mundo que antes conhecia tivesse desaparecido — os parentes, sua casinha na roça, tudo já parecia distante. A cada dia, estreitavam seus laços, dividindo comida, confidências e histórias que não tinham nada de exemplar, mas que, de algum modo, os uniam em uma pequena e improvável família nas ruas.
O rabugento até ganhara um nome. Durante todos esses dias Maria nunca pensou nisso, a sua cabeça ainda estava muito tumultuada. Foram os seus novos colegas que deram um nome ao seu cachorro: “Cheira-cola”. Nome este bem aceito pelo vira-lata, que passou a atendê-los quando era chamado assim.
O nome surgiu porque quando eles se sentavam em alguma calçada para relaxarem, colocavam a garrafa de cola ao lado e o vira-lata farejando o chão, corria para cheirá-la. No início eles nem se preocuparam, mas aquela atitude do cachorro foi chamando a atenção deles e imediatamente reagiram. Um dos meninos chegou até Maria e indagou:
— Como é o nome desse teu cachorro? — A atenção deles se voltou para Maria e ficaram ansiosos pela resposta.
— Não sei — ttitubeou Maria —, ainda não tem nome.
Na mesma hora se entreolharam, como se já soubessem o que viria a seguir.
— Pois a partir de agora ele se chamará Cheira-cola! — Todos caíram na gargalhada, rindo alto e batendo palmas, e logo se levantaram, fazendo uma pequena reverência ao cachorrinho, que olhava confuso, sem entender nada. Maria acariciava o dorso de Cheira-cola, satisfeita: afinal, ele agora tinha um nome. A partir daquele dia, até ela passou a chamá-lo assim, acostumando-se com o som que parecia feito sob medida para ele. E o vira-lata logo percebeu: sempre que alguém gritava “Cheira-cola!”, ele saía disparado, abanando o rabo e correndo alegremente até onde ecoava o seu nome, como se cada chamado fosse uma aventura esperando para começar.
Se algum dos meninos gritasse: —"Vai, cheira essa cola logo!" — O vira-lata se levantava e ficava atento, procurando quem o tinha chamado. Ficou conhecido na cidade como Cheira-cola. Até os policiais ficaram incrédulos com tamanha ousadia, mas apenas riam da situação e continuavam o seu trabalho. Não seria um nome dado a um cachorro que iria alterar o cotidiano da cidade.
Agora todos tinham um nome, mas eram mais conhecidos pelo apelido.
Eram seis nomes e seis histórias diferentes. Apenas Cheira-cola não podia contar como foi parar na rua, mas cada um dos meninos tinha um passado que poderia ser contado.
O nomeado para liderar o grupo era o Carlos Vítor, nome de batismo, mas ninguém o conhecia por esse nome. Era chamado de “Magrão”. Moleque alto, de pernas longas, braços finos e andar desengonçado. Vivia na rua desde pequeno, talvez por isso fosse o líder daquela turma. Magrão nunca falava de seu passado, não se lembrava de que algum dia tivera um, mas comentava-se que ele fora deixado, ainda bebezinho, dentro de um pequeno balaio no banheiro de um bar na periferia de Águas Belas. Ele não gostava de ouvir essa história. Dizem que o dono daquele barzinho o recolheu e o adotou como filho. Porém como aquele senhor de bom coração já era um homem de idade avançada e casado com uma mulher mais nova que ele duas dezenas de anos e não tiveram filhos, apenas ela trouxera um filho que tivera com outro homem, fruto de uma aventura passada, ele cuidou de Carlos Vítor até o dia em que Deus o chamou. Enquanto morou naquela casa, Carlos Vítor sofreu uma perseguição ferrenha de sua mãe adotiva, que colocava o filho para atanazar a vida dele. O menino tinha quase a mesma idade de Magrão, mas era orientado pela mãe a desafiar e acusar o enteado de um jeito que até o pai adotivo ficava em dúvida diante de tanta travessura do adotado.
— Mãe, o Carlinhos quebrou uma garrafa no bar — denunciava o pequeno, sendo que ele mesmo havia quebrado a garrafa.
— Esse moleque não presta! E teu pai sabe disso! — gritava da cozinha a mulher, enquanto seu marido corria para o pequeno Carlos, pois a essa altura ele chorava copiosamente a um canto.
Da cozinha a mulher continuava gritando:
— Você devia internar esse diabinho!
Todos os dias repetia-se a encenação daquele menino, orientado pela mãe para que seu pai agisse com rigor contra o seu irmão adotivo. O coitado comeu o pão que o diabo amassou, nas mãos daquela mulher que defendia com unhas e dentes o seu filho. Era só inveja que ela sentia dele e medo de seu filho ser devastado pela ganância de um rejeitado. Porém naquela idade Carlos Vítor não tinha nenhuma ambição na vida, apenas pensava só em brincar, como acreditava que o seu irmão também assim pensava.
A única coisa herdada por ele de seu pai adotivo foi uma velha Bíblia achada junto aos cadernos de fiados, numa gaveta no bar. Ele ainda não sabia ler, mas ficou entusiasmado com aquele livro e o carregou. Quando o padre o ensinou as primeiras letras, ele não largou mais aquele livro. Só adormecia depois de queimar as pestanas nas suas páginas. Acordava no dia seguinte com a Bíblia aberta ao seu lado.
O mundo de Magrão desmoronou após enterrarem o seu pai adotivo.
A sua madrasta logo o expulsou de casa, temendo a sua inclusão no inventário. Agora Magrão fazia parte daquele grupo de meninos de rua. Tinha quatro anos de idade quando deu as costas para aquele bar na periferia da cidade.
Com o passar do tempo foi se acostumando com o ar puro da liberdade. Tudo era novidade para aquela criança que estava desabrochando para a vida. No início ele ainda tentou voltar para dormir em casa, mas depois desistiu. As portas sempre estavam fechadas para ele. Aí decidiu nunca mais voltar.
Hoje o bar já não existe. No lugar dele ergue-se uma casa residencial. Apagaram aquela parte do seu passado.
O “Zé Lombriga” não tinha passado nem nome de batismo. Pelo menos ninguém sabia na rua. Nem tampouco ele. Contudo todos sabiam a origem de seu apelido. Zé Lombriga era baixinho, barrigudo, cara cheia e de pele amarelada, talvez devido aos vermes que faziam morada na sua barriga, comendo as suas tripas. Algumas daquelas lombrigas sempre escapavam pelo seu ânus quando ele defecava. Fugiam aos montes e quando se demoravam a sair, eram puxadas pelas mãos ágeis de Zé Lombriga. No começo de sua chegada à rua, ele ficava irritado com aquele apelido, mas foi acostumando-se, afinal de contas nem ele sabia o seu verdadeiro nome. Conta-se que certo dia, alguém de Itaíba que passava por Águas Belas o reconheceu e numa mesa de bar, para quem ali bebia, narrou as peripécias desse menino antes de sua chegada às ruas:
— Estão vendo aquele menino, o menorzinho de chupeta, no meio dos outros?
Quem estava com o protagonista bebendo virou-se para a rua e acompanhou com o olhar o grupo de meninos de rua que passava. Ele continuou:
— Ele é filho de “Dedo-nervoso”, um pistoleiro de Itaíba que foi assassinado pela polícia de Alagoas, dentro da cela.
— Virgem Maria! Então esse moleque crescendo na rua vai puxar ao pai — lastimava-se alguém a mesa.
— Talvez sim, talvez não! — amenizava outro companheiro de mesa.
— Mas me deixa contar o resto da história.
— Conta, conta homem! — impacientava-se alguém a mesa.
— Bem, depois que Dedo-nervoso foi enterrado, a mãe desse menino saiu pegando homem em toda esquina.
— Mas, e esse pirralha ficava com quem? — alguém perguntou.
— Esse moleque foi entregue a sua avó materna, e como soubemos depois, ele não aguentando mais a caduquice da velha, fugiu com sua chupeta suja e um monte de vermes na barriga.
— Que situação triste a dele.
Essa história contada naquele bar nunca foi comprovada, nem mesmo os meninos creditavam esses fatos ao passado de Zé Lombriga.
Outro menino do grupo era o “Chapado”. O nome já o denunciava. — Esse era o guardião da garrafa de cola. Ela sempre estava colada ao seu nariz.
Chapado não gostava de falar muito, vivia sempre viajando no seu mundo surreal, e quando falava era para si mesmo. Os meninos entendiam o seu jeito de viver e nunca o perturbavam. Chapado foi o cara que deu o nome de Cheira-cola ao cachorrinho de Maria. O seu passado também era uma incógnita. Certa vez quando ele tentou contar a sua origem, os meninos caíram na risada, mas depois ouviram a sua história até aonde aguentaram.
Ele começou contando que fora criado por um sapateiro — e, até ali, tudo parecia indicar que aquele começo merecia atenção cuidadosa —, mas, ao acrescentar que o sapateiro, seu próprio pai, fizera as botas do gato daquela fábula infantil e que os sapatinhos de Cinderela haviam sido magicamente “roubados” da sapataria dele pela boa fada, os meninos não conseguiram se conter e caíram na gargalhada. Chapado, porém, franziu o cenho; escárnios não estavam em seu gosto, e ele deixou transparecer, com um lampejo de irritação, que aquele riso o incomodava.
— Vocês estão duvidando? — e continuava com as suas histórias hilariantes. — Quando cheguei a Águas Belas, isso aqui era um vale, banhado pelo rio Ipanema e com dinossauros por toda parte. Aqueles que gostavam de salada de verduras viviam na praça comendo as plantas e os que gostavam de carne, atacavam o açougue para devorar os bois e os bodes que estavam pendurados nas tarimbas dos marchantes. Nessa hora os meninos percebiam a sua alucinação e aos poucos iam saindo de fininho, até deixá-lo falando sozinho.
Certa madrugada, os meninos despertaram de repente — dormiam na calçada da prefeitura — com a gritaria de Chapado, que tentava forçar o vira-lata a se autodeclarar prefeito da cidade. Cheira-cola já rosnava, exasperado com aquela ladainha interminável. Chapado segurava-o pelas patas dianteiras, insistindo com teimosia que o cachorro assumisse seu “cargo”. Quando Cheira-cola tentou morder seu braço, Chapado, impassível, lançou-o no meio da rua, deixando os meninos atônitos, irritados e indignados com a cena. Em seguida, Chapado se deitou novamente e apagou-se como se nada tivesse acontecido.
Depois desse dia, Cheira-cola sempre evitava aproximar-se de Chapado. Ficaram inimigos a partir desse ocorrido.
Nesse grupo de desafortunados não havia só meninos, também havia meninas. Eram três, contando agora com Maria. Joana era a segunda voz do grupo. Fora nomeada naturalmente; e não liderava o grupo pelo fato de ser mulher. Magrão tinha quase a sua idade.
Joana era rechonchuda, pernas grossas, bunda grande e rosto redondo cheio de espinhas. Os meninos a batizaram no grupo pelo apelido de “Grandona”. O corpo adolescente de Grandona era cortejado por onde passava, apesar de sua aparência descuidada. Quando ela chegava trazendo algum dinheiro ou alimento para dividir com eles, todos já sabiam que as suas pernas ou seus peitos tinham sido acariciados. Quando o mimo era grande, os cochichos e as risadinhas eram inevitáveis, mas Grandona não se importava com o que pensavam dela, apenas jogava tudo no meio da turma e sem remorsos, incentivava-os:
— Vamos! Eu consegui tudo isso só pensando em vocês! — Sem cerimônias todos se jogavam sobre a comida trazida por ela, inclusive Maria.
Contudo o passado dessa menina não foi nada brilhante, assim como também não fora o de seus colegas de rua. Era filha única e sua mãe trabalhava o dia inteiro como empregada doméstica numa casa de gente rica em Águas Belas. Na época ela morava numa casinha a beira do rio Ipanema. Seu pai era servente de pedreiro e se embriagava todos os dias.
Quando Joana começou a crescer e o seu corpo gordinho — que desde pequena já era rechonchudo — foi tomando forma, foi aí que seu pai, levado pela embriaguez, começou a vê-la como mulher e a desejá-la. Ela percebia o seu despudor pelo brilho de seus olhos. Aquela criança, mesmo antes de chegar aos dez anos de idade, fora assediada e violentada pelo próprio pai. Depois da primeira investida, o caso tornou-se rotineiro, porque seu pai chegava propositalmente mais cedo, sempre antes de sua mãe, que só retornava para casa depois de deixar a cozinha limpa após a ceia naquela casa de gente rica.
Quando a sua mãe adentrava em casa já encontrava o marido deitado e a filha trancada no quarto, assustada e com os olhos ainda molhados de lágrimas. Ela nem procurava saber o porquê de tamanha distância entre pai e filha, sempre que retornava para casa. A sua mãe só foi descobrir aquela relação obscena e incestuosa quando Joana não mais conseguia esconder a barriga.
— Você é a culpada de tudo! — esbravejava sua mãe. — O seu jeito de se vestir provocou tudo isso, sua safada!
Joana caía em pranto ao ouvir todas aquelas acusações e, em meio à gritaria, só pensava em fugir, desaparecer daquela casa. Apanhou tanto nesse dia que perdeu a criança. Para ela, foi um alívio: não desejava carregar no ventre um filho que, ao crescer, teria de pedir a bênção ao pai e, ao mesmo tempo, ao avô.
Nessa época era comum acontecer com as meninas de cidades do interior, ainda na adolescência, engravidar dos padrastos, dos vizinhos, dos irmãos, do patrão de seu pai, e até mesmo do próprio pai; mas raramente eram molestadas por algum namorado, pois estes temiam a reação de um pai ignorante.
Numa gravidez indesejada as meninas eram orientadas a tomarem chá de cabacinho, que era uma erva usada para tratamento de cavalos, que também provocava o aborto. Grandona não precisou tomar esse chá, fugiu de casa com treze anos de idade e até hoje é tida como culpada pelo que acontecera. Sua mãe sempre acreditou que ela provocava o pai e ele confirmava essa versão. Joana nunca mais voltou para casa, nem tampouco seu pai fora denunciado.
A outra menina do grupo era chamada de "Pirralha", que também não tinha um nome de batismo; assim como Zé Lombriga ela também não se lembrava do nome. Estava só com seis anos de idade, mas já era viciada em cola de sapateiro, apesar de ainda não ter largado a chupeta que ninguém sabia a cor original devido à mistura de catarro que escorria de seu nariz com a poeira da rua. Em várias ocasiões Pirralha ficava isolada num canto, chorando baixinho, até que Grandona se aproximava, e acalentava-a em seus braços. Ela já sabia o motivo dessas crises: era a saudade de sua família que agora lhe apertava o coraçãozinho. Pirralha ainda sentia a falta do calor de um abraço materno, do aconchego de um lar, mas a maldade dos homens chegara muito cedo a sua vida. Agora ela se encontrava perambulando pelas ruas.
Pirralha não sofreu estupro dentro de casa, mas a sombra da ameaça rondava bem perto. O motivo de sua saída precoce — uma decisão que revelava uma maturidade inesperada para alguém tão pequena — era simples e cruel: ela desconhecia o mundo real que uma criança não deveria conhecer, e, ainda assim, foi lançada diante de uma pia transbordando louça e de um tanque abarrotado de roupas sujas, como se a infância lhe tivesse sido subtraída de uma vez.
A casa em que morava era pequena, também na periferia, mas na cidade de Itaíba. Sua mãe trabalhava o dia inteiro como doméstica numa casa de família rica na Avenida Dom Adelino Dantas, só retornando à noite, exausta, depois de lavar a louça do jantar. O pai de Pirralha havia partido para São Paulo e nunca mais dera notícias.
Cansada de esperar, a mãe se juntou a outro homem. Ele não trabalhava; passava horas deitado num sofá velho e esfarrapado, exigindo até água da menina. Pirralha o temia e obedecia em silêncio, até que, um dia, percebeu suas intenções: ela seria a presa. Sem pensar, apesar da pouca idade, lançou-se pela porta da cozinha e saiu correndo, rua afora, vestida apenas com a roupa do corpo. O coração batia tão rápido que parecia querer pular do peito. À beira da estrada, ergueu a mão e pediu carona ao primeiro carro que apareceu. Quando o motorista quis saber para onde ela ia, ela nada respondeu — num salto ágil, já estava sentada na carroceria da camionete, deixando para trás o medo, a casa e tudo que conhecia.
Ainda assustada, olhava para a sua cidade que aos poucos ia ficando para trás. As pessoas sentadas na carroceria ficaram olhando-a por um bom tempo. Pirralha não sabia para onde estava indo, nunca saíra de Itaíba, mas iria naquele carro até aonde ele fosse. Ela só queria fugir daquele lugar.
Chegaram numa cidade desconhecida até então para ela, e a caminhonete após entrar em várias ruas, finalmente parou. Todos os passageiros desceram, e Pirralha foi à última a descer. Agradeceu ao motorista, entrou pela rua que estava à sua frente e seguiu desnorteada até juntar-se ao grupo de meninos com quem agora perambulava por toda a cidade de Águas Belas. Ainda chorava quando sentia o frio da noite. Sempre procurava em vão os braços de sua mãe para protegê-la.
Os meninos de rua, apesar dos infortúnios, acostumam-se a essa vida de vadiagem talvez pelo fato de encontrarem na rua a liberdade, situação que não conheciam dentro de suas casas. Assim ficou subentendido depois de conhecermos o passado de cada um deles. Acrescente-se a estes, a vida de Maria até aos catorze anos.