CAPÍTULO CINCO
Voltando àquele sábado fatídico, quando Isidoro matou o seu desafeto, Severino chegou à sua casa e sentando-se na soleira da porta da frente, ficou chorando, e com as mãos sobre a cabeça, sentiu o mundo desabar sob os seus pés. Ele sabia que o amanhã de sua família estaria incerto, e que nada nesse mundo, nem em qualquer outro, salvaria aquela gente. Ele sentia medo, e não parava de chorar. Até o cão Piaba, que sempre latia e abanava o rabo ao vê-lo, ficou deitado no canto da parede. Apenas olhou para Severino e depois voltou a dormir no seu cantinho. Severino continuava chorando e soluçando alto, sentado com a cabeça apoiada sobre os joelhos. Dentro de casa o silêncio era sepulcral, apenas os grilos e os sapos davam sinal de vida para as bandas do riacho.
Nesse sábado nefasto, Idalina não conseguiu pegar no sono àquela noite.
Depois que Maria fora expulsa violentamente daquela casa, Idalina não mais ficava à porta com Nicodemos esperando-os voltarem da feira, agora ela se deitava com o pequeno e só acordava quando o barulho no terreiro denunciava a chegada de Isidoro e Severino.
Todo sábado era a mesma coisa, ela acordava com a chegada deles, abria a porta e só depois é que levava Nicodemos para a rede. Só que nesse dia algo estranho apertava-lhe o peito, não adormeceu como de costume. Levantava-se, ia até a janela, olhava para a estrada escura e não enxergava Isidoro, nem Severino descendo a ladeira. Essa cena repetiu-se várias vezes, até que, estando na cozinha tentando acender o fogo de lenha, porque queria esquentar o café para quando os dois chegassem, ouviu um gemido distante. Naquele momento pensou que fosse o cachorro grunhindo e nem se preocupou.
— Esse coitado deve estar com fome — pensou Idalina—, também o desgraçado não tem coragem nem de pegar calango, só dorme.
Sem preocupar-se muito com os gemidos, continuou tentando acender o fogo.
O gemido que ela agora ouvia não era de cachorro, era um choro lastimoso de gente, que vinha lá do terreiro. Foi o bastante para Idalina tomar um susto e limpando as mãos sujas de cinzas no vestido, sair quase correndo para a porta da frente. Na pressa, tropeçou numa gaiola vazia, quebrando-a, porque nem se lembrou de pegar o candeeiro. Chegando à porta, abriu a parte de cima, olhou para baixo e assustou-se com Severino ali sentado e chorando. Na mesma hora abriu a parte de baixo da porta caindo ajoelhada ao lado do filho, abraçando-o pelas costas.
— Severino, meu filho! Cadê o teu pai?
Ao ouvir a voz de sua mãe, Severino desesperou-se e do seu âmago um pranto de dor se lançou para fora entre soluços e lágrimas. Logo em seguida jogou-se no terreiro, espolinhando-se no chão e gritando pelo seu pai, num verdadeiro espasmo.
Depois que sua mãe apareceu, Severino assumiu um comportamento estranho. Lembrou-se de seu pai, e entre choro, soluços e falta de fôlego, ficava gritando:
— Eu quero o meu pai! Cadê o meu paizinho? Eu vou buscá-lo!
Idalina tentando mostrar-se forte naquele momento, não chorava com o filho, pois não tinha a menor ideia do que estava acontecendo, apenas com o coração apertado sentia que algo ruim havia acontecido, mas forçando aparentar sobriedade, perguntava-lhe:
— Cadê o teu pai? O que aconteceu com ele?
Agora apenas soluçando, com a respiração entrecortada, Severino tentava falar:
— Mãe... uma coisa horrível!
Idalina segurando-o pelos ombros e sacudindo-o, insistia:
— Mas o que houve? Mataram o teu pai na feira, foi?
— Não, mãe... Ele agora já deve estar preso! — E caiu no choro novamente.
Ao ouvir a palavra preso, Idalina levantou-se, olhou para a escuridão do mato, suspirou, voltou-se para o filho que continuava deitado no chão soluçando, e desabafou:
— Já sei o que aconteceu. Cachaça de novo! Esse homem não toma jeito. — Depois olhando no rosto de Severino, continuou: — O delegado vai soltá-lo quando?
Nesse momento Severino começou a chorar sem parar, enquanto Idalina sentia no seu íntimo que algo mais grave teria acontecido com o seu marido. Na mesma hora veio-lhe à cabeça o caso de Maria com o filho do fazendeiro.
— Severino, para de chorar e conta logo o que foi que aconteceu!
— Mãe... Pai... Pai matou um... — Severino caiu novamente no choro, agora abraçado à sua mãe.
Idalina estava mais tranquila, apesar da ansiedade para saber o desfecho dessa história. Colocou Severino no colo e afagando-lhe a cabeça, continuou:
— Teu pai matou quem? Será que foi a pessoa que estou pensando?
Severino agora mais sereno, apenas soluçando e limpando o nariz, conseguiu responder:
— Ele matou o filho do coronel... O rapaz que abusou de Maria.
Idalina já esperava por esta resposta, mas mesmo assim tomou um susto, pois sabia que o seu marido havia mexido em vespeiro e que de agora em diante a vida deles seria um inferno.
— Meu Deus! Agora o que será de nós? Ele matou o filho do homem mais poderoso de Itaíba! Eles vão matar todos nós para vingar o menino deles!
Severino levantou-se, abraçou a sua mãe e os dois permaneceram abraçados por alguns minutos, entre soluços e lágrimas. Depois Severino desprendeu-se dos braços dela, olhou para o céu onde as estrelas brilhavam naquela noite e caminhando de um lado a outro, desabafou:
— Mãe, a senhora lembra quando a gente nós chegava da roça, à noitinha, lua cheia lá no céu...
— Lembro-me, filho. Por que essa lembrança agora?
Severino ainda desnorteado continuou com as suas recordações.
— Depois do café (muitas vezes só café puro, sem mistura, e também aguado, porque o açúcar era pouco e estava quase acabando), todo mundo vinha aqui para o terreiro, a senhora sentava-se com meu pai aqui neste degrau, enquanto eu, Maria e Nicodemos sentados no terreiro, e até Piaba ficava sentadinho entre nós, abanando o rabo de contentamento, ouvia (sic) as histórias de pai...
— Bons tempos aqueles — completou Idalina.
— Pai contava cada história de Trancoso. Eu gostava tanto. A senhora lembra-se de uma história que ele certa vez contou? De um homem que era motorista de táxi e quando fez uma corrida com uma moça, ela sumiu de casa adentro, deixando o coitado do taxista esperando na calçada. Depois de esperar um bom tempo, resolveu bater na porta para cobrar o dinheiro da viagem, e um homem o atendeu dizendo-lhe que naquela casa não havia mulher alguma. O taxista reparou que a moça que ele havia trazido estava numa foto exposta na parede da sala. A resposta que ele ouviu do senhor que veio até a porta foi a seguinte: — Aquela moça do retrato está falecida há mais de dez anos. — Que susto o taxista tomou!
— É, Severino. O teu pai sabia contar muitas histórias. São tempos que não voltam mais.
— Mãe, eu gostava quando ele queria botar a gente para dormir. Lembra? Ele sempre dizia que estava vendo ali dentro do mato, perto do umbuzeiro, dois olhinhos alumiando e que as duas faíscas eram os olhos de uma onça.
— Está bem, Severino. Vamos parar com essas recordações. Esse passado que você está rememorando fugiu de nós por dentro daquele mato e desapareceu para sempre por trás daquela serra.
— Mãe, eu acho que nunca mais vamos ficar aqui no terreiro ouvindo história de Trancoso.
— Nunca mais, Severino. Acabou-se!
Severino correu até a porta, sentou-se com a cabeça apoiada nos joelhos, chorando baixinho. Idalina calmamente foi até o filho e afagando os seus cabelos tomou uma decisão.
— Filho, vamos arrumar os nossos trapos e sumir daqui. Tenho um pressentimento de que o velho Apolônio vai aprontar alguma coisa com a gente. Ele não vai deixar por isso mesmo a morte do seu único filho.
Severino levantou-se, encarou por uns instantes a sua mãe, olhou em seguida para a casa de taipa, olhou para a roça e lamentou:
— Tudo isso aqui nós vamos deixar para trás?
— É o jeito, meu filho. A única coisa que se aproveita deste lugar é esse céu bonito, porque essa casa, aquele roçado, nada disso tem valor.
Os dois entraram para dormir.
A roça que Isidoro tanto cuidava iria ficar entregue as plantas daninhas. Até o caminho por onde todos os dias eles passavam, também iria desaparecer com a invasão do mato. Apenas o umbuzeiro, a jaqueira, a mangueira, o cajueiro e os cactos não iriam deixar de existir e dar os seus frutos.
Quando os dois já estavam dentro de casa, atravessando a sala escura, Idalina segurou Severino pelo braço pedindo para que ele fizesse silêncio, pois Nicodemos estava dormindo; caminharam na ponta dos pés para a cozinha onde havia um candeeiro sobre a mesa, com a luz fraca e o pavio quase se apagando. Em seguida sentaram-se; Idalina pegou o candeeiro, deu uma balançada, as chamas do pavio aumentaram, clareando a cozinha. Já bem acomodados, Idalina colocou a mão sobre a mão de Severino, olhou no seu rosto e começou a repassar o que deveria ser feito dali em diante.
— Severino, depois desse acontecido, restou apenas eu e você para decidir qualquer coisa dentro desta casa. Você está entendendo?
Severino não havia prestado atenção no que a mãe falara. Seus pensamentos ainda estavam voltados para Itaíba, e seu coração apertando cada vez mais o seu peito quando se lembrava daquela tarde. Ele imaginava as pessoas correndo pelas ruas, um homem caído no chão sem vida e seu pai sendo levado para a cadeia com uma multidão caminhando atrás aos gritos de “assassino”. Voltou a si com a sua mãe quase gritando.
— Sim, mãe. É para fazer o que mesmo?
— Vamos pegar uma estaca na cerca, correr agora mesmo para Itaíba e soltar o teu pai! — esbravejou Idalina, muito irritada.
Severino esfregou os olhos, olhou por baixo para Idalina e continuou calado, apenas olhando-a.
Quando tudo estava mais calmo na casa de Isidoro, todo mundo sabendo que ele já havia sido levado para o presídio da capital, Idalina resolveu tocar a vida e enfrentar as adversidades.
Ficaram naquele sítio ainda por um largo tempo, não foram importunados por ninguém nesse período de recobramento. Maria ainda mandava alguma ajuda de Recife e eles continuaram vivendo naquele lugar até o momento em que acabou de vir dinheiro da capital, obrigando Idalina a pegar seus filhos, seus trapos, e saírem mundo afora.
A essa altura Isidoro já não mais estava detido no presídio, fora assassinado e Maria começava, em Recife, a despencar. Em contrapartida, Idalina já passando por necessidades, tomou uma decisão: Iriam vender tudo o que podiam e com o dinheiro apurado fugiriam daquele lugar.
Numa manhã de domingo ensolarado, Idalina chamou Severino e mostrou-lhe, ainda a mesa do café da manhã, o que iriam fazer no dia seguinte.
— Veja bem, meu filho. Amanhã é segunda, dia de feira, e você vai pegar aquela vaca no curral, os porcos, as galinhas, e vender tudo em Águas Belas. Se algum curioso quiser saber por que você está vendendo tudo, responda que é para pagar conta vencida e que o credor não espera mais. Eu acho que todo mundo já sabe o que aconteceu com o seu pai em Itaíba.
— E o burro não vai vender?
— Não. O burrinho vai servir para carregar a nossa mudança.
Falando-se do jumento, depois da confusão daquele sábado na feira de Itaíba, Severino correu para casa e esqueceu o jegue. Só mais tarde, quando Severino ainda chorava no terreiro de casa, foi que um vizinho do sítio, que também guardava o seu animal depois do beco do urubu, avistou o jumento deles pastando no campo. Como todos os feirantes já haviam ido embora, o vizinho sabendo da tragédia daquela tarde, levou o jegue até a casa de Isidoro, soltando-o a beira do cercado. Só no domingo, quando Severino caminhava pelo sítio, ainda um tanto desorientado, foi que avistou o jumentinho pastando a beira do cercado, ainda com a cangalha e os caçuás nas costas. Apressou-se e o colocou para dentro.
Severino conseguiu vender todos os animais que levou para a feira, não exatamente pelo preço que os bichos valiam, mas naquele momento qualquer valor era bem-vindo. Foi assim que Severino procedeu. Chegou a sua casa com o dinheiro e entregou tudo a sua mãe, depois se sentou num tamborete na cozinha e dirigindo-se à mãe, perguntou:
— Aí está o que consegui apurar com a venda dos animais. Agora, o que vamos fazer?
— Vamos embora daqui — respondeu Idalina. — Eu tenho uns parentes em Delmiro e acho que eles ainda se lembram de mim.
O pequeno Nicodemos não entendia nada do que estava acontecendo, apenas continuava chutando a bola de palha de milho no terreiro, enquanto Piaba corria para pegá-la e devolvê-la aos seus pés. Só raramente Nicodemos perguntava pelo seu pai, mas Severino ou Idalina respondiam que ele estava na feira comprando brinquedos. Nicodemos voltava a chutar a bola de palha de milho para o vira-lata Piaba correr atrás e trazê-la de volta.
Apoiado na porta, Severino ficava assistindo o seu irmãozinho brincando com o cachorro, chutando uma bola de palha de milho que não tinha mais nenhuma aparência de bola. Nessa hora as lágrimas escorriam pelo seu rosto.
Aconteceu o que Idalina já previra desde aquele maldito sábado em Itaíba. O coronel Apolônio iria expulsá-los daquele sítio e tocar fogo em tudo. Idalina fora avisada por um morador de um sítio vizinho que era muito chegado ao coronel. Para evitar uma desgraça ainda maior para aquela família, o vizinho alertou Idalina para que fugisse o quanto antes com os seus filhos.
Idalina não pensou duas vezes.
Às quatro horas da manhã de uma segunda-feira já estavam todos no terreiro, preparando-se para a partida. Nicodemos estava contente naquele amanhecer, brincando com Piaba ao redor da casa enquanto Idalina e Severino faziam as trouxas com as panelas, pratos de estanho, colheres, facas, copos de alumínio e as redes dobradas e amarradas. Só iriam levar essas coisas, além das roupas e dos lençóis. Severino lembrou-se das espingardas e dos bisacos que tanto os acompanharam nas manhãs de domingo. Até a baleadeira de Nicodemos, que estava pendurada no gancho de sua rede não foi esquecida. Antes de tudo arrumado, Severino ainda voltou ao quarto de seus pais e recolheu algumas calças e camisas de Isidoro; e cheirando-as, colocou-as no caçuá.
Idalina ainda estava na cozinha, sentada num tamborete ao lado do fogão, que se apagava lentamente, sem coragem de levantar-se, e ficou ali pensando. Só despertou quando Severino veio chamá-la para irem embora. Idalina levantou-se, deu um tapinha no seu velho fogão de lenha e seguiu seu filho, cabisbaixa, passando pela sala sem olhar para os quartos.
Já na porta da frente deu uma última olhada para dentro de casa, voltou-se e saltou de uma vez no terreiro. Agora estavam os três no terreiro com o mundo todo à sua frente.
O jumento já estava carregado, e o que não coube nos caçuás foi levado nas mãos. Ainda na madrugada, com o céu escuro, eles subiram em direção à porteira. O jegue na frente, caminhando a passos curtos, baixando e levantando o pescoço e Piaba saltitando adiante, agora já farejando a cancela. Os três começaram a deixar aquele lugar. Idalina na frente, seguida por Severino e Nicodemos. Pegaram a estrada em direção a Águas Belas. Passaram por dentro da cidade, subiram pelo asfalto e seguiram na direção de Paulo Afonso, estado da Bahia.
Quando o sol começava a surgir por trás das serras eles estavam caminhando pelo acostamento da estrada, em fila indiana, com o vira-lata atrás deles, farejando o mato rasteiro à beira do caminho.
Seguiram caminho afora, até que desapareceram no horizonte.
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