CAPÍTULO OITO
No velório de Marcelo, o caixão foi colocado no alpendre do casarão, e alguns vaqueiros ficaram na porteira revistando e identificando as pessoas que chegavam para a cerimônia fúnebre. As armas eram entregues na entrada e jogadas num cocho rente ao cercado. As mulheres entravam chorando e os homens com cara de poucos amigos.
Dona Filomena - a esposa do coronel Apolônio e mãe de Marcelo - segurava a mão do marido, sentados ao lado do caixão.
O corpo de Marcelo estava dentro do ataúde com as mãos entrelaçadas sobre o peito, o rosto sereno, como se estivesse dormindo, coberto de flores do pescoço para baixo. O velório caminhava para o seu fim.
Café e bolachas eram servidas aos presentes e alguns pratos considerados de conforto também foram servidos. Depois o caixão foi fechado e seis vaqueiros o carregaram até o carro que o levaria ao cemitério.
Ao redor da cova muita gente já ali esperava. O cortejo adentrou o cemitério de Itaíba e Marcelo foi sepultado num jazigo reservado a sua família.
De volta à fazenda, o coronel Apolônio conversava com um fazendeiro da vizinhança:
— Minha vontade é de matá-lo hoje mesmo.
— Mas o coronel sabe que ele está resguardado pela polícia.
— A polícia de Itaíba faz parte da minha folha de pagamento. Eles vivem aqui na minha mão.
— Então vamos dar conta desse cabra. Eu tenho na fazenda uns vaqueiros que podem fazer o serviço enquanto ele está detido na delegacia.
— Vamos deixar esfriar mais um pouco.
— Eu entendo a sua posição, coronel.
Meses depois o coronel sofreu outra perda, desta vez foi dona Filomena que o deixou depois de sofrer um infarto fulminante na cozinha.
Sendo perseguido por tantos infortúnios, o coronel passou a delirar e muitas vezes alguém o surpreendia caminhando pelo quarto num monólogo carregado de palavras dúbias, montando planos excêntricos.
— Ele está preso... Fico na cela... Vou matá-lo quando ele dormir... Estou na mesma cela... Vou matá-lo... Estou na mesma cela... Quando ele dormir, vou asfixiá-lo... Estou na mesma cela...
Depois de demorado devaneio, quando conseguia retomar seus raciocínios, balançava negativamente a cabeça e saia para tomar ar puro no alpendre.
O coronel passou vários dias nesse alucinamento; apenas saía de seu quarto para dar um passeio pelo alpendre. De longe olhava os vaqueiros trabalhando, cumprimentava alguns capangas que estavam sentados nos degraus, fumava o seu charuto e em seguida se recolhia ao seu quarto. Até as suas refeições agora eram servidas na cama. Ninguém se atrevia a trocar uma palavra com ele, não nesses momentos. Ele agora vivia clausurado no seu mundo.
Aconteceu que certo dia, o coronel se sentou no meio de seus capangas, nos degraus do alpendre, colocou a mão sobre o ombro de um deles, e desabafou:
— Amigos, eu cheguei à conclusão de que já passou da hora de agirmos.
Os capangas se entreolharam, e um deles se levantou e concordou com o coronel. Os demais acenaram positivamente.
Enquanto discutiam no alpendre, um magricela chegou à porteira com uma trouxa de pano na ponta de uma vara ao ombro, chamando pelo nome do coronel.
No alpendre todos se levantaram ao mesmo tempo, alguns cercando o coronel para protegê-lo, e ficaram olhando para a porteira, com os revólveres na mão apontados para o chão.
Enquanto isso um vaqueiro largou o seu serviço e calmamente foi caminhando até a cancela. O coronel não mexeu um músculo; do lugar em que estava ficou só observando os dois conversando no mourão da cancela. Pouco tempo depois o vaqueiro vem subindo, deixando o magricela do lado de fora, e aproximando-se do alpendre, esclareceu a pretensão do recém-chegado, dirigindo-se ao coronel:
— Aquele amarelinho está pedindo emprego.
O coronel Apolônio olhou por cima do vaqueiro, alisou o queixo, olhou para os capangas ao seu redor, e em seguida autorizou a entrada do magricela.
O vaqueiro deu meia-volta e seguiu para a porteira. Chegando lá, conversou alguma coisa com o magricela e abriu a cancela, deixando-o entrar.
No alpendre do casarão os capangas do coronel Apolônio colocaram a mão de novo na cintura, pois já haviam guardado as armas, enquanto o amarelinho se aproximava.
Chegando diante deles, o magricela parou, colocou a vara com a trouxa de pano no chão e perguntou sem rodeios quem era o patrão. Coronel Apolônio adiantou-se um passo e olhando para o amarelinho de cima a baixo, perguntou-lhe:
— Como é o seu nome, moço?
— João Nascimento da Silva.
— O que o moço deseja nesta fazenda? — A essa altura já tinha capanga cercando-o. Ele não se intimidou, olhou para os lados, olhou para trás, e voltando-se para o coronel, respondeu:
— Estou procurando trabalho.
— E o senhor vem de onde? — continuou o coronel.
— Venho de Buíque. Trabalhei uns dias em Tupanatinga, numa fazenda por lá, mas não deu certo, então arribei e saí de mundo afora procurando outro emprego.
O coronel pediu para os seus capangas o revistarem, e eles nada encontrando, além de um punhal enferrujado amarrado à sua perna, continuou a entrevista:
— O moço sabe fazer o quê numa fazenda? — perguntou o coronel.
O magricela estava olhando para o chão, mas de repente levantou a cabeça, passou a vista pelos vaqueiros e parou no coronel. Olhando-o nos olhos, respondeu-lhe:
— Tanger boi, pegar novilha desgarrada, amansar burro brabo e outras coisas... Faço de tudo, coronel.
A essa altura os vaqueiros ao seu redor cochichavam entre eles e alguns até ensaiavam um risinho sarcástico, enquanto o coronel observava o amarelinho de cima a baixo. Depois lhe deu o emprego, mostrando-lhe o seu local de trabalho.
Enquanto se recolhia, o coronel caminhava para o seu quarto pensando: — “Esse moleque tem cara de quem faz mais alguma coisa além de cuidar de um rebanho. Senti isso ao vê-lo chegar”.
No cercado dos porcos era um lugar rejeitado por todos os vaqueiros, e já havia naquele lugar quase uma tonelada amontoada de esterco de porco, e precisava de alguém para remover aquela sujeira. O magricela não se opôs a começar no seu novo emprego atolado naquela lama de fezes, apesar da gozação dos capangas e dos vaqueiros. Ganhou até um quartinho lá nos fundos da fazenda, logo depois das casinhas que abrigavam alguns empregados da fazenda. Como o magricela era quase desprovido de músculos sobre os ossos, foi logo apelidado de “João Cipó”, e até se acostumou com o nome.
Os dias passavam-se, o amarelinho atolado no chiqueiro dos porcos, e o coronel alimentando aquela ideia e carregando consigo a primeira impressão deixada pelo magricela quando de sua chegada. Para o coronel, João Cipó era o sujeito perfeito para os seus planos. Esse amarelinho caíra do céu e a partir daquele momento ele passou a acreditar nele para a realização de seu plano. Junto com os seus vaqueiros foi traçando o seu esquema e preparando o magricela para a ação.
Primeiro tiraram João Cipó do chiqueiro dos porcos. Agora ele trabalhava no cercado das vacas, junto com os vaqueiros. A intenção do coronel era preparar o magricela para vingar a morte de seu filho. Como tudo iria acontecer já estava traçado em sua cabeça.
Com o passar do tempo e depois de adquirir confiança, João Cipó foi chamado para conversar, e mesmo não sabendo o motivo daquele encontro, compareceu.
Na sala de jantar do casarão havia uma mesa comprida e larga, sobre a qual o estratagema foi colocado diante de todos. Estavam presentes o coronel Apolônio, João Cipó e os vaqueiros que também serviam de seguranças na fazenda. O plano não estava registrado em nenhum papel: vivia apenas na cabeça do coronel, que começou a expô-lo aos presentes.
— Veja bem — disse o coronel. — Como aquele bandido está trancafiado no presídio de Recife, João Cipó terá que arranjar um jeito de ir parar lá também.
Nesse instante, João Cipó sobressaltou-se, lançou um olhar desconfiado em volta da mesa e ficou a tamborilar os dedos no tampo, à espera do restante do plano. O coronel prosseguiu:
— E como ele vai fazer isso? — perguntou, fitando os homens, para logo em seguida dar a resposta. — É simples: mata alguém em Itaíba. Depois escolhemos quem será o desgraçado. João será preso, mandado direto para o presídio de Recife, e lá dentro encontrará o sujeito. Aí, com a minha influência política, meu amigo aqui — disse, batendo nas costas de João Cipó — será solto sem demora.
Os capangas concordaram com o plano do coronel. Apenas João Cipó ficou sem entender porque exatamente ele, que chegara há poucos meses naquela fazenda estava tendo o privilégio de levar a efeito aquela decisão tão engenhosa do coronel. Ficou matutando sobre tudo o que estava se passando ao redor daquela mesa:
— “Iria matar uma pessoa em Itaíba, seria preso, levado para um presídio, mataria outra pessoa dentro da penitenciária, e depois sairia pela porta da frente, tranquilamente para tomar uma cerveja no primeiro bar que encontrasse. Tudo muito simples assim”.
Quando todos achavam que já haviam encontrado a pessoa certa para colocar aquele plano em ação, João Cipó encarou os presentes e perguntou de supetão:
— Vocês acham que eu já matei alguém?
Todos se entreolharam, e depois caíram na risada, sendo o coronel quem interrompeu a distração e encarando o magricela, filosofou:
— Tudo que fazemos nesse mundo, sempre houve uma primeira vez. — Depois olhando para os presentes, sorriu maliciosamente.
Alguns vaqueiros não entenderam aquele sorriso, mas se levantaram e foram abraçar o amarelinho, felicitando-o pelo privilégio de ser o escolhido. Até o coronel se desfez de sua carranquice e deu-lhe um abraço caloroso, desejando-lhe boa sorte. João Cipó nem sequer ainda havia concordado com aquele plano... Contudo calou-se e deixou aquela hipocrisia descer-lhe de garganta adentro.
Apesar da surpresa pela escolha, João Cipó não estava com medo, ele conhecia o ofício e a quantia oferecida era compensadora. Valia a pena correr esse risco.
Quando João Cipó chegou à fazenda do coronel, já havia percorrido toda a estrada que ligava Tupanatinga à Itaíba e dormido ao relento à beira da estrada, embaixo de um pé de jurema. Com o seu punhal também havia matado calangos para comê-los cru. Portanto não se sentia fora de seu ambiente, pois nasceu e cresceu dentro do mato e quando viu a sua casa ser queimada e seus pais e irmãos serem mortos brutalmente por um bando de pistoleiros pagos por um fazendeiro que queria tomar as suas terras, fugiu pela mata e foi cair, por ironia do destino, na fazenda do assassino de sua família. Estava com dez anos à época. Foi criado com carinho naquela fazenda e depois de crescido sentiu na pele a inveja de seus irmãos adotivos e foi jogado no meio dos vaqueiros. Virou peão naquela fazenda e quando se achava um homem feito, matou o fazendeiro e fugiu. Tudo isso aconteceu nos arredores de Ibimirim.
Passado esse episódio, ficou vagando pelo sertão à procura de emprego, mas quando conseguia, demorava-se pouco, porque descobriam o seu passado. Foi peão em várias fazendas até chegar à porteira do coronel Apolônio.
Depois de muita bebedeira, muitas felicitações, ele se despediu e foi para o seu quartinho deitar-se, mas não conseguiu dormir, porque agora a eficácia daquela empreitada estava em suas mãos. Ficou pensando por muito tempo como iria encontrar uma vítima em Itaíba. Várias pessoas passaram pela sua cabeça, mas nenhuma adequada para a concretização daquele plano. Ele não conhecia ninguém naquela cidade, nem tampouco tinha rixa com nenhum deles. A sua aflição só chegou mesmo ao fim, quando ele olhou para dentro da fazenda. Ali estava, bem ao alcance de seus olhos, a peça que faltava naquele quebra-cabeça.
Dentre os capangas do coronel havia um metido a namorador que não participou da reunião daquela noite porque estava na cidade cortejando uma donzela. Era exatamente esse o vaqueiro que sempre chegava junto a João Cipó com palavras indecentes e gestos obscenos, tentando denegrir a sua imagem diante da vaqueirada. Sempre se gabando, dizendo a todos que o magricela não demoraria muito para um dia ser a sua companheira.
Ele se chamava Zé Raimundo, mulherengo e arruaceiro, e logo depois da chegada de João Cipó aquela fazenda, não cansava de importuná-lo, talvez até para mostrar aos colegas que a sua fama não era em vão. Percebia-se que até o coronel não gostava muito dele, apenas o tolerava porque o achava um sujeito disposto e destemido. Quando dona Filomena era viva, o coronel não o deixava sozinho no casarão, evitava matá-lo.
João Cipó decidiu que esse era o cara que iria colocá-lo lado a lado com o assassino do filho do coronel.
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