CAPÍTULO TRÊS
No dia seguinte dona Bia acordou cedo e com as meninas ainda dormindo, já havia comprado uma galinha caipira bem gorda para o almoço e também já tinha recebido o caminhão de bebidas. Agora estava no bar, absorvida com os seus papéis.
Horas depois todo mundo naquela casa estava de pé e cada uma já sabia qual seria a sua tarefa, e Maria como era novata foi escalada para lavar os banheiros. Todas trabalhavam com a maior disposição, brincando e cantarolando. A Índia como sempre era a responsável pelo almoço.
Depois do almoço elas aproveitavam um pedaço da tarde para a sesta, porque antes do anoitecer a cabeleireira chegava para cuidar delas, uma prática constante nas sextas e sábados de cada semana. A maquiagem e os penteados eram feitos no salão do cabaré.
Entre às cinco e seis da tarde o bordel era aberto e os fregueses aos poucos iam chegando e ocupando as mesas. Os frequentadores da casa eram pessoas comuns, trabalhadores da cidade e camponeses que procuravam diversão.
Dona Bia estava com Lindalva no bar e as meninas sentadas à espera de um convite que não iria demorar muito nesta noite. Maria estava entre elas.
A velha cafetina sempre tomava a iniciativa de animar o salão. Ligava a radiola, pagava inicialmente algumas fichas, deixando por conta das meninas a escolha das músicas. Depois das primeiras fichas colocadas, os fregueses continuavam comprando para a música não parar. As mesas já estavam dominadas pela balbúrdia e o salão lotado. Numa das mesas dois clientes discutiam seus problemas familiares, acompanhados, cada um, com uma das meninas do cabaré, bebendo, fumando e alheias à conversa daqueles dois. Um desabafava para o outro, quase gritando:
— Se a minha mulher me botar um par de chifres, mato o safado que está com ela, porque ele sabia que ela era minha e nem sequer me respeitou. Do mesmo jeito mato a safada também porque ela sabia que era casada e nem sequer me respeitou nessa hora! — Em seguida tomou uma golada de cerveja, acendeu mais um cigarro e ficou esperando a reação do amigo.
— É isso aí! — observou o amigo. — Depois beijou o pescoço da mulher que estava ao seu lado e tomou mais um copo de cerveja.
Outro na mesa vizinha não falava de seus problemas familiares, mas discutia com seu colega de mesa sobre negócios.
— Eu consigo comprar dois bois por semana e abato todos eles no quintal de casa, na machadada mesmo. — O outro só ouvia, ele continuava: — Se eu levar toda essa carne para a prefeitura carimbar, vai ter um monte de impostos e o meu lucro vai embora!
Ele precisava falar alto, quase gritando, porque a música que saía da radiola de ficha atrapalhava e as pessoas ao seu redor também falavam quase gritando. O parceiro de mesa resolve acrescentar o seu comentário, pois ambos eram açougueiros.
— Quando uma das minhas vacas morre de picada de cobra, principalmente de cobra mata-burro, aquela pequenina que pega no beiço do bicho quando ele está pastando, eu talho a vaca antes de ela inchar e vendo a carne de porta em porta. Até hoje ninguém morreu envenenado com a carne de minhas vacas!
Naquela mesa havia o encontro de dois negociantes se divertindo.
Já numa mesa ao lado, três rapazes afeminados queixavam-se de seus namorados.
— O meu bofe resolveu ir para Garanhuns neste final de semana assistir a um jogo de futebol.
— Pois o meu foi para Buíque correr vaquejada.
O terceiro aproveitou para uma gozação:
— No lugar dele estar correndo atrás dos bois para derrubá-los pelo rabo, deveria procurar um rabo ao alcance de sua mão sem ter que enfrentar uma pista de vaquejada.
— Estás insinuando o quê, safado?
— Insinuando nada. Só que vocês poderiam montar uma pista de vaquejada no quarto!
Os três desabaram numa gostosa gargalhada.
Agora descendo até o bar, encostados ao balcão e tomando uma cerveja, dois rapazes com cara de intelectuais discutiam voltados para o sobrenatural.
— Nas pesquisas em que mergulhei recentemente, cheguei à conclusão de que o nosso corpo carrega uma alma.
— Isso todo mundo sabe desde a criação do mundo. O sopro de Deus no barro que deu vida ao primeiro homem já prova a existência da alma — refutou o interlocutor, enquanto o outro se justificava:
— O que eu quero dizer é que a nossa alma após deixar um corpo morto, fica em outra dimensão aguardando um novo corpo para carregá-lo por mais uma vida. O espírito é o mesmo, apenas o novo corpo vai ter outra figura, outra fisionomia.
— Você quer dizer que é o espírito que nos dá o rumo de nossa vivência aqui na terra?
— Exatamente. A nossa alma sempre será a mesma, apenas mudamos de invólucro e mantemos as mesmas atitudes. Se você é um cara bom, em qualquer corpo que você estiver será sempre um cara bom. Não é o corpo que o leva a cometer coisas ruins ou boas, é a sua alma que nasceu com essa aptidão. As almas também nasceram em algum momento.
— Vamos terminar essa cerveja que já não estou entendendo nada — desistia do diálogo o amigo que escutava o outro filosofando.
Em outra mesa, localizada na entrada da casa, um bêbado solitário tentava agarrar toda menina que passava à sua frente. Na ânsia desesperada de ter uma mulher ao seu lado, o bêbado jogou-se sobre a saia de Solange que naquele momento passava com uma cerveja e um prato de batatinhas, sobre uma bandeja na mão, e viu esta sair voando pelo salão. A cena hilária aconteceu quando o bêbado se segurou na saia de Solange, que deu um passo à frente e ele foi junto, mas na tentativa de segurar-se, levou com ele a toalha e tudo o mais que estava sobre a mesa, espatifando-se no chão. Depois ele foi levantado, colocado na sua cadeira e a devassidão entrou de noite adentro.
Já era quase meia-noite e as meninas estavam devidamente acompanhadas àquela altura. Maria estava sendo a mais procurada, já havia levado para o quarto vários clientes, considerando-se o fato de ser novidade no cabaré. Os homens se inquietavam na esperança de sair com aquela adolescente. Os que não conseguiam ficavam alimentando alguma esperança para pegar a fila mais cedo no dia seguinte.
No meio de toda essa balbúrdia eclode uma confusão lá no canto da sala. Muita gente correu para a rua, outros correram para o quintal, mas aos poucos foram voltando e continuaram bebendo, dançando e namorando. Naquela confusão garrafas e copos foram estilhaçados no chão, murros e pontapés foram trocados, mas com a chegada de dois policiais, a calmaria voltou.
Os policiais passavam pela rua na hora em que as pessoas saíram correndo do cabaré. Os dois conseguiram separar os brigões, que se acalmaram e foram mandados para casa. Não foram detidos porque eram pessoas conhecidas e o que houve foi apenas uma desavença banal. Os dois soldados deixando a situação controlada, foram até o bar, pediram uma cerveja e ficaram bebendo encostados ao balcão. Tomaram apenas uma cerveja e saíram pelo salão até o fusquinha que ficara estacionado na calçada.
Não se passou muito tempo e os dois policiais voltaram.
Estacionam o fusquinha de novo sobre a calçada, entram no cabaré e procuram uma mesa no fundo da sala. Em seguida uma das meninas vem até a mesa com uma cerveja e dois copos. Minutos depois a própria dona Bia traz para eles um prato de fígado acebolado. Polidamente cumprimenta os policiais e retorna para o bar.
Com a presença dos policiais no cabaré as pessoas se controlam e até pagam bebidas para os meganhas. Enquanto isso, a radiola de ficha soava uma melodia escolhida por um freguês que cochilava sobre uma mesa.
O dia clareava e as meninas já estavam em seus quartos, algumas sozinhas, outras acompanhadas. O fusquinha continuava sobre a calçada, enquanto os dois policiais bebiam no canto do salão. Àquela hora da madrugada havia apenas duas mesas ocupadas, uma com os dois policiais num canto e dois camponeses a uma mesa na entrada do cabaré.
Finalmente os dois camponeses vão embora, sendo seguidos pelos policiais, enquanto dona Bia fechava o cabaré e colocando a caixa de sapatos debaixo do braço, recolheu-se. Era nessa caixa que ela guardava a féria da noite. Naquele momento aquela casa dormia, enquanto toda a cidade acordava.
O sábado amanheceu bem quente.
Na rua o movimento já era grande, mas dentro do cabaré tudo ainda era silêncio. Neste dia com certeza todo mundo naquele bordel iria levantar-se mais tarde, pois foram deitar-se quase ao amanhecer. No salão a radiola de ficha piscava o mostrador, ficara ligada na tomada e as mesas estavam desarrumadas com garrafas, copos e pratos sujos. Os cinzeiros também estavam abarrotados de bituca de cigarros.
Nos bares, nas oficinas e nas borracharias, o comentário era sobre a adolescente que chegara ao cabaré.
— A danada é gostosa!
— E não tem nem quinze anos ainda — enfatizava outro.
— Onde dona Bia achou aquela beldade?
— Aquilo é mercadoria trazida de longe.
— É não. — Um borracheiro parava o seu serviço e aparteava. — Disseram que essa menina vivia vadiando nas ruas daqui mesmo.
— Não pode ser — duvidava outro borracheiro.
— Agora vou prestar mais atenção nessas meninas de rua. — Era o dono do carro em conserto que se lamentava.
Finalmente a noite do sábado envolve a cidade e as portas do cabaré já estão abertas e aos poucos as pessoas vão entrando e se acomodando. Logo todas as mesas estão ocupadas e a casa novamente envolvida por uma confusão de vozes e o salão invadido pela fumaça de cigarro.
Dona Bia, por precaução, colocou algumas mesas na calçada para atender a demanda daquela noite. Os vizinhos é que não gostavam das mesas na calçada devido à depravação. Nesses dias a vizinhança se recolhia mais cedo, fechando portas e janelas. Eles já estavam cansados de ouvirem das autoridades que aquele cabaré seria mudado para a beira do rio, mas até agora ele continuava ali, no seio de várias casas de família.
O salão fervia e a radiola de ficha com o volume topado, enquanto as meninas ganhavam dinheiro e dona Bia no bar, “sorrindo de orelha a orelha”.
Já de madrugada uma mulher chega de supetão e adentrando o salão procura alguém. Depois se dirigindo para a mesa escolhida, vai desembestada atropelando todas as mesas que encontra no seu caminho, deixando para trás garrafas e copos espatifados no chão e algumas pessoas boquiabertas com aquela inesperada aparição. As meninas, como sempre, correram para o quintal e dona Bia não se assustou, já havia passado por vários momentos como este e ficou no bar, acotovelada no balcão assistindo de longe. Lindalva ao ouvir o barulho das mesas virando e o tilintar das garrafas e copos se quebrando, ajoelhou-se atrás do balcão e só se levantou quando dona Bia lhe tocou a cabeça e disse-lhe que estava tudo bem.
Quando a mulher furiosa escolheu uma mesa e desenfreada avançou para lá, fora apenas para arrancar o seu marido do cabaré, que sem nenhuma reação foi levado para casa puxado pelo braço e ouvindo um sermão pelo caminho.
Sempre depois de um imprevisto desse, o cabaré não se demorava a arrumar tudo, e depois da confusão o ambiente aos poucos voltava ao seu clima normal. As mesas eram recolocadas no seu lugar, a radiola nem sempre era desligada e as pessoas aos poucos voltavam a se divertir novamente.
Depois dessa confusão frustrada, um senhor gorducho, de aparência forte, calça e camisa de linho branco, botas até o meio da perna, chapéu de massa na mão, sendo cumprimentado efusivamente, entra de casa adentro e vai para a cozinha, seguido por dona Bia.
Na cozinha ele destampa as panelas até encontrar uma de onde retira um pedaço de carne, enquanto dona Bia vai até o bar para pegar uma cerveja. Depois de comer aquele pedaço de carne, ele se senta à mesa e fica esperando dona Bia trazer-lhe a bebida. Este era um dos muitos casos amorosos da matrona do bordel, aparentemente o único que resistiu ao tempo, apesar de os encontros agora serem fortuitos.
A história desses dois começou quando Dona Bia ainda era adolescente e chamava-se Beatriz. Era uma menina que trabalhava na fazenda do pai desse homem que agora bebia em sua cozinha. Beatriz trabalhava no casarão ajudando na limpeza, enquanto seu pai, além de vaqueiro, fazia o serviço pesado da fazenda. Durante muito tempo Beatriz teve que encarar pai e filho. Ela morou naquela fazenda por quase vinte anos, deixando-os logo depois que morreu o pai dele, e como resultado desse relacionamento, ganhou uma casa, que depois transformou em bordel, e um amante que ainda a procurava.
Depois de a mesa cheia de garrafas vazias e alguns pratos sujos de tira-gosto, os dois foram deitar-se. A essa altura o salão estava silencioso, sinal de que o cabaré já estava fechado.
No domingo o cabaré não funcionava. As meninas folgavam e podiam dormir até mais tarde. Também podiam escolher o divertimento que achassem melhor para aquele dia.
Dona Bia amanheceu ao lado de seu velho amante, que não demorou muito tempo para ir embora. Não esperou sequer pelo café da manhã. Levantou-se, vestiu-se, e sem acordá-la saiu na ponta dos pés e jogou a chave por baixo da porta.
A essa altura as beatas já desciam pela rua para a catedral que badalava os sinos convidando os fiéis para a primeira missa do domingo. Algumas olhavam de soslaio ao cruzarem com o fazendeiro que estava saindo do cabaré àquela hora, e seguiam de rua abaixo resmungando.
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