CAPÍTULO DOIS
Mesmo distante, depois de tanto tempo, Maria não esqueceu a sua família, como também não esqueceu a casa de sua infância, no meio da natureza. Muitas vezes quando estava num restaurante requintado, com um prato delicioso na mesa, lembrava-se daquele prato de estanho cheio de batata-doce e daquele outro prato com os preás assados. O copo de vinho fazia-a lembrar-se daquela água barrenta apanhada no riacho para beber. Precisava ser forte nesses momentos; essas lembranças às vezes a fazia deixar a mesa e correr para chorar no banheiro.
Para convencer a si mesma de que não havia esquecido os seus parentes, ajudava-os com pequenas quantias enviadas pelo banco para a sua mãe. Era Severino quem soletrava o telegrama avisando da chegada do dinheiro.
Depois de alguns anos, Mary recebeu uma carta de sua mãe, letra desenhada e bonita, com certeza de alguém com o ofício de escrever cartas para analfabetos, porque Idalina nunca aprendera a ler e nem a escrever; mas a missiva narrava fatos relacionados a seu pai. Idalina dizia na carta que agora Isidoro era um presidiário, e continuando, dizia também que o filho do coronel estava debaixo do chão a sete palmos, porque Isidoro o tinha matado. Em seguida escrevia que Isidoro agora também estava morando na capital, só que na cadeia, num lugar chamado Aníbal Bruno.
Ao ler aquela carta Maria por alguns instantes ficou pensativa; dobrou o papel, colocando-o na bolsa. Naquele momento ela sentiu dó de seu pai, mesmo depois de tudo que acontecera. Ficou pensando como seria a vida dentro do presídio, como estaria seu pai numa cela abarrotada de meliantes, agarrado nas grades olhando para o corredor, e à noite dormindo no chão frio perto da latrina.
No dia seguinte releu a carta de sua mãe mais umas duas vezes, ainda duvidando de sua autenticidade, porque sem dúvida fora escrita por um estranho que poderia ter deturpado a verdade. Na dúvida resolveu visitá-lo no presídio Aníbal Bruno.
Quando procurou as amigas para saber onde ficava essa cadeia, uma delas até se ofereceu para acompanhá-la, porém no dia marcado Maria desistiu. O medo de não ser recebida pelo pai apertou-lhe o coração, deixando passar mais um domingo de visitas. Assim vários domingos se passaram e os alimentos que comprava para seu pai eram jogados no lixo.
Finalmente num determinado domingo ela tomou coragem e convidando a amiga que iria acompanhá-la, saíram para o presídio Aníbal Bruno. Essa decisão foi tomada tarde demais, pois não havia mais naquele presídio o homem que ela procurava. Havia sido assassinado há vários dias.
Os carcereiros ainda se lembravam dele.
Maria insistiu para saber como o seu pai fora assassinado, mas o carcereiro sabia apenas que ele fora morto por outro detento, e sem tirar os olhos de seu decote, pediu para as duas acompanhá-lo até a cela onde Isidoro ficara trancafiado.
Como era domingo, dia de visitas, os presos estavam no pátio com os seus parentes, só algumas celas estavam ocupadas com alguns casais que aproveitavam aquelas poucas horas juntos para se reproduzirem. Os três foram caminhando por um corredor entre as celas até o momento em que o carcereiro parou e apontou para um cubículo escuro e gradeado.
— Foi nessa cela aí.
Maria agarrou-se as grades, encostou o rosto nas barras de ferro frias e não resistindo a tanta emoção, começou a chorar.
Enquanto isso, o carcereiro e a amiga dela haviam se afastado para o fim do corredor, deixando-a diante da cela para que imaginasse àquele buraco cheio de meliantes e seu pai no meio deles, sentado encostado à parede.
Depois de alguns minutos, o carcereiro voltou acompanhado da amiga. Tocando levemente em Maria, disse:
— Não demore. Daqui a pouco os
detentos serão recolhidos para as celas.
Em seguida, com um aceno, convidou a colega de Maria a deixarem o local.
Os dois já se encaminhavam para o pátio quando foram surpreendidos por um grito vindo lá dos fundos do corredor. Viraram-se e avistaram Maria que vinha correndo para alcançá-los. Ficaram parados esperando-a, e quando ela os alcançou, vociferou:
— Quero saber como mataram meu pai! — E continuou caminhando ao lado deles.
— Como sempre matam aqui dentro — respondeu calmamente o carcereiro. — E caminhando para a saída, foi explicando:— Aqui dentro quase todos os dias há um homicídio, mas o povo só toma conhecimento quando a imprensa flagra. Quando não tem câmera filmando, cada detento desfila no pátio com um chuço. A direção faz “vista grossa” e nós jogamos os mortos no camburão. Quanto ao seu pai...
A essa altura Maria já estava na frente do carcereiro, impedindo-o de caminhar. Este a olhando bem nos olhos, ainda acrescentou:
— A morte de seu pai não foi diferente. Um detento numa certa manhã em que todos estavam tomando banho de sol aproveitou-se da desatenção dos guardas e da vulnerabilidade de seu pai e meteu-lhe o punhal até vê-lo desabar no chão. A segurança das guaritas viu tudo, mas nessas horas eles dão as costas e fazem de conta que nada está acontecendo no pátio.
Maria ficou pasmada com a denúncia do carcereiro e desistiu de fazer mais perguntas; e puxando a sua amiga pelo braço, saiu caminhando pelo corredor, enquanto o horário de visitas terminava. No meio de toda aquela gente que estava saindo, Maria foi levemente tocada no braço pelo carcereiro que a levou até a cela de seu pai.
— Escuta aqui menina, eu sei onde seu pai está enterrado.
Maria olha-o dentro dos olhos, e com raiva, não dele, mas do sistema, puxa a sua amiga pela mão e apressadamente deixa o presídio Aníbal Bruno.
Depois daquele domingo, Maria nunca mais voltou a ser Mary e também não teve coragem de visitar o túmulo de seu pai.
Foi depois dessa visita frustrada ao presídio que a sua vida desandou.
Agora dificilmente ela passava na mansão; e as suas noites se resumiam em festinhas na periferia da cidade e nos morros. Estava agora misturada com a ralé, e só frequentava espeluncas; e até dormia sobre as mesas desses bares. Quantas vezes não fora roubada pelos próprios vagabundos que agora a levavam para a cama. Quando comprava uma joia à tarde, porque ainda lhe restava algum dinheiro, a noite entregava tudo para os meliantes nas bebedeiras. Ficou tão envolvida nesse submundo, que começou a usar drogas pesadas. Ela já não se deitava com os poderosos, e a sua vida deu uma reviravolta tão acima da curva que quando a mansão soube de suas estripulias, fecharam-lhe o portão.
Agora, seus poucos programas terminavam no apartamento. Com o passar do tempo, já não havia mais pudor: entregava-se nas areias da praia, de madrugada, embriagada, perdida de si mesma. Nessas madrugadas, suas joias desapareciam uma a uma, e o dinheiro, como se fosse pó, evaporava-se no ar.
Quantas manhãs não foram marcadas pela presença da polícia, chamada para recolher um corpo abandonado na areia? Um corpo que as ondas fustigavam, respirando com dificuldade — e que, invariavelmente, era o de Maria.
Quase todos os dias era levada à delegacia de Boa Viagem. E, quando enfim a liberavam, saía tropeçando pelas ruas, arrastando consigo a sombra da própria ruína até o apartamento.
Mesmo depois de toda essa mudança em sua vida, o proxeneta, aquele que tentou mudar a sua vida trazendo-a de Águas Belas para Recife, ainda lhe sugava as últimas moedas que tilintavam na sua bolsa. Se não aparecesse dinheiro, as drogas achadas no apartamento eram levadas. Aquela era uma dívida que jamais seria quitada, enquanto Maria ganhasse algum trocado com o seu corpo. Naquele momento ela não conhecia nenhum caminho que a levasse para uma botija. Estava tão atolada em dívidas que foi despejada de seu apartamento. Agora não tinha mais onde morar; às vezes dormia na casa de uma amiga, outras vezes acordava na cama de um vagabundo na favela. Já não estranhava amanhecer numa favela de Peixinhos, e ao acordar sair caminhando pela Avenida Presidente Kennedy até cair sentada nas areias da praia de Casa Caiada.
No frenesi de seus desvarios, chegou a descer o morro da Conceição pela escada sentada, degrau a degrau até chegar ao asfalto da Avenida Norte. Ali mesmo deitava-se, porque não conseguia levantar-se com o traseiro em brasa e dormia na calçada.
Ocorrera muitas vezes ser acordada pela polícia, apenas de calcinha e sutiã. Os vadios haviam roubado toda a sua roupa. Era levada de novo para a delegacia; e depois de liberada, saía de rua afora, enrolada num lençol que ganhara dos policiais, tropeçando nas próprias pernas, e quando não aguentava mais, caía na calçada e dormia, até acordar sóbria e voltar para o seio da patuscada.
O tempo foi passando, e cada dia que se passava a sua situação piorava. A esquina onde outrora fazia ponto já não mais atraía os fregueses habituais e com uma colega que também não estava satisfeita com o local de trabalho, resolveram descer para o centro da cidade.
As duas desceram no dia seguinte, a pé, pela Avenida Boa Viagem.
No caminho, quase chegando à praia do Pina, resolveram tomar um banho de mar na esperança de afastar aquele encosto que acreditavam fora a causa de suas desgraças. Depois do banho retomaram a caminhada.
Não levaram bagagem, apenas uma bolsa a tiracolo com os seus pertences, que não era muita coisa, haja vista o tamanho da bolsa de cada uma. Continuaram caminhando pela calçada.
Agora estavam na Avenida Antônio de Góes, sentido centro. Algumas buzinadas, alguns olhares indecentes e muitos assovios. Elas sabiam que estavam provocando toda aquela excitação nos homens, afinal as suas vestes eram provocantes e chamavam à atenção.
Continuaram caminhando, decididas a chegarem ao centro da cidade e durante o percurso ficou acordado que iriam fazer ponto na pracinha do Diário. Continuavam caminhando. Agora estavam passando pelo Porto de Estelita. Cruzaram a calçada à beira da maré e chegaram à Avenida Dantas Barreto, e continuaram caminhando.
Enfim, chegaram à pracinha do Diário, chamada assim porque ao seu redor destacava-se o edifício do Diário de Pernambuco — o jornal mais antigo da América Latina. Também ficava ao redor dessa praça a matriz de Santo Antônio e vários prédios modernos.
Já era quase noite quando elas chegaram àquela praça. As pessoas se dirigiam apressadas para as paradas de ônibus, e a pracinha a essa altura fervilhava. Completamente desnorteadas, entreolharam-se e decidiram sentarem-se num banquinho próximo ao chafariz no meio da praça.
Quando a madrugada já se arrastava em seu silêncio de condenação, as duas contaram o magro apurado da noite e, sem alternativas, entregaram-se a um daqueles quartos ocultos nos becos — antros lúgubres, onde a miséria se adensa nas paredes úmidas e o ar parece apodrecer junto delas. Ali, em cubículos desprovidos de dignidade, restava-lhes apenas a resignação: dormir como sombras que, pouco a pouco, se apagavam da vida.
Como agora o dinheiro delas ficava a cada dia mais difícil de achar na bolsa, resolveram alugar apenas um quarto com uma cama de casal para ambas. As duas dormiram aquela primeira noite nos braços de Hipnos (originalmente o deus do sono) que as levou para o descanso abençoado e restaurador. Dormiram até quase o meio-dia, e quando acordaram é que se deram conta de onde haviam passado a noite.
Ainda no quarto, sentadas na cama, sentiam na bunda o lastro de madeira; e quando procuraram o banheiro, tiveram que sair pelo corredor até achá-lo depois de passarem por todos os quartos. Depois de aliviadas, desceram a escada e na portaria entregaram a chave. Voltaram para a pracinha.
Enquanto caminhavam saindo daquele beco, elas discutiam aquela fase de suas vidas:
— Hoje foi que eu vi como era aquele quarto — começou Maria.
— Os lençóis mal lavados, manchados — acrescentou a sua amiga.
— O meu travesseiro era mole e fedia.
— Nem me limpei. No banheiro não havia papel.
— Nem a descarga estava funcionando.
— Daqui pra frente vai ser assim. Temos que nos acostumar.
— Ainda vou voltar ao meu antigo padrão de vida.
— Que Deus te ouça!
Finalmente as duas chegaram à pracinha.
Ficaram circulando, olhando as bancas, e quando a fome apertou, pararam numa barraca e almoçaram cachorro-quente acompanhado de suco artificial.
Depois dessa refeição as suas bolsas poderiam ser viradas para baixo que não caía uma moeda. Era voltar para a praça e recomeçar a enchê-la de novo.
Uma tarde quente e abafada cobria aquela praça, mas mesmo assim elas não desistiam, pois precisavam comer e dormir novamente num quarto daqueles becos.
Sentadas na praça, uma delas sugeriu:
— Vamos nos separar — falou a amiga de Maria.
— Por que queres deixar-me sozinha?
— Se cada uma de nós marcarmos a sua área ficará mais fácil de agarrarmos um homem.
— Então, tudo bem. Urina naquele poste e demarca a tua área.
Sorrindo, sua colega levanta-se e se mistura com as pessoas que transitavam pela praça. Maria ficou sozinha sentada na beirada do chafariz.
Mesmo separadas, a vida não estava fácil naquela praça. A concorrência era acirrada e os homens que procuravam diversão eram de baixo poder aquisitivo, na sua maioria desocupados que passavam o dia circulando e jogando na bolsa das meninas os trocados que ganhavam prestando pequenos favores aos camelôs. Eram esses os clientes que Maria tinha pela frente.
Dias depois as duas eram vistas com vários daqueles desocupados caminhando pela praça e já dividiam os cigarros de maconha e as garrafas de cachaça. Agora estavam ganhando só para comer e pagar a dormida.
Às vezes quando se encontrava sozinha num banco da praça, Maria ficava rememorando o começo de tudo em Águas Belas. Ela não estava sentindo nenhuma dificuldade para viver naquele ambiente, pois as pessoas que vagabundeavam pela pracinha eram iguais aos seus coleguinhas das ruas de Águas Belas, e os homens com quem ela agora saía eram rudes e descuidados quanto os que frequentavam a casa de dona Bia.
Depois de meses perambulando pela praça, ruas e becos, um desconhecido chamou a atenção de Maria. Todos os dias ele passava pela pracinha, saindo do trabalho para pegar o ônibus. Ela já o tinha visto várias vezes, também já havia notado que ele sempre saía com mulheres diferentes todos os dias antes de correr para o seu ponto de ônibus. Agarrava sempre a primeira que cruzava o seu caminho. Num certo dia, Maria conseguiu ficar no seu caminho e foi a escolhida daquela noite.
Ela agora era a escolhida daquele homem, mesmo não estando no seu caminho, era procurada por ele. Até o acompanhava, de mãos dadas, para o ponto de ônibus.
Agora Maria tinha um trocado garantido todos os dias.
Ela não sabia nada de sua vida, e quando o questionava, ele fingia não ouvir ou respondia com outra pergunta. Continuaram saindo juntos ainda por um bom tempo, até que um dia ele sumiu.
Passaram-se vários dias, alguns meses, e nada daquele homem reaparecer na praça. Maria para não passar fome e também para não dormir nas calçadas, voltou àquela vida de sair com vários parceiros, mas não demorou muito para que ela tivesse notícias dele. Foi numa noite quando conversando com uma colega na praça, ela ficou sabendo o paradeiro de seu amante fujão.
— Aquele cara que caminhava contigo nesta praça de mãos dadas?
— É, mulher! — Maria agitou-se no banquinho querendo logo o final da história, mas a menina ao seu lado acendeu um cigarro, deu uma tragada forte e um pouco receosa, desembuchou:
— Pois aquele dito cujo que saía contigo e que pegou quase todas as meninas desta pracinha morava no meu bairro, da minha casa para cima um pouco.
— Sim, e daí? Ele mudou-se de lá?
A colega de Maria levantou-se, ainda fumando, olhou para as pessoas que circulavam apressadas pela praça e colocando a mão sobre o ombro de Maria, confidenciou:
— Na verdade ele mudou-se de lá, e foi para um lugar que acho que vai ficar para sempre. A sua morada última.
Nessa hora Maria também se levantou, mal se segurando nas pernas e olhando para o chão ouviu o desfecho dessa história. A sua colega continuou:
— Ele morreu... E dizem no bairro que foi de AIDS, essa praga que tá matando todo mundo.
A essa altura Maria já estava cruzando a avenida em direção ao quarto que agora dividia com sua amiga, chorando e desesperada. A amiga estava com alguém no quarto.
Enquanto esperava, caiu sentada no corredor e chorou copiosamente.
Quando retornou daquela escuridão em que se achava enfiada, bateu de frente com uma dúvida: — “Será que tinha pegado aquela moléstia que matou aquele vagabundo? Se tivesse contraído aquele mal, agora seria o fim de tudo, pois para essa doença ainda não havia cura. O que iria fazer da vida a partir de agora, se a única coisa que aprendera na vida fora ganhar dinheiro na cama. Iria contaminar os seus parceiros”? Eis o dilema que agora a atormentava. A sua vida teria que continuar, mesmo que fosse por pouco tempo. O pior de tudo é que não tinha dinheiro para pagar os exames que iriam comprovar o que ela já sabia. Os seus dias agora naquela praça eram de temor, pois devido ao que acontecera com o seu amante, todos os homens agora eram suspeitos. O preservativo ainda não era popular naquele meio. Nessa época as doenças venéreas eram tratadas com injeções ou com comprimidos antibióticos. Essa nova doença era coisa de afeminados e ainda não havia nem injeção nem comprimido para curá-la.
Dias depois a sua amiga de quarto desapareceu, deixando sobre a cama um bilhete escrito num guardanapo: “Amiga, te cuida. Essa doença é perigosa e contagiosa”.
A sua amiga soube de sua doença através das meninas da praça e ficou com medo de também ser contaminada através de um espirro de Maria; e sumiu daquele quarto e também da pracinha. Tamanha era a ignorância das pessoas com tal enfermidade.
Maria simplesmente pegou o guardanapo, leu-o, amassou-o nas mãos e jogou-o no canto da parede. Depois se deitou e dormiu.
No dia seguinte acordou bem cedo, como de costume procurou a sua colega com uma das mãos e só alguns segundos depois é que se lembrou do guardanapo. Virou-se para o lado da parede e dormiu mais um pouco.
No fim da tarde ela acordou e muito pensativa, ultimamente havia adquirido esse hábito, olhou para o teto e de repente tomou uma decisão.
Levantou-se, atravessou o corredor, entrou no banheiro e demorou-se ali. Já tomada banho, voltou para o quarto, trocou de roupa, juntou as poucas vestes que lhe restavam, colocou tudo numa sacola de plástico e dirigiu-se para a recepção. Com alguns trocados amassados na mão, pagou o seu pernoite e desceu as escadas em direção à rua. Sem muita pressa caminhou entre os transeuntes com destino à estação do metrô. Estava decidida a voltar para a sua terra.
Já acomodada no vagão do trem, ela via tudo passar rapidamente, mas sua parada ainda estava distante. Havia embarcado rumo à rodoviária.
Ao desembarcar na estação de destino, seguiu a multidão que também desembarcara, e foi em direção ao terminal rodoviário com sua sacolinha de plástico presa à mão. Adentrando o terminal, deparou-se com uma praça de alimentação, vários guichês de vendas de passagens e muitas lojinhas com lembranças de Recife. Sentou-se à mesa numa lanchonete, tirou de dentro do sutiã o seu dinheirinho todo amassado e fixou o olhar na tabela de preços. Contou a sua ninharia e desapontada chegou à conclusão que aquela mixaria só dava para uma sopa.
— "Deus queira que a sopa venha acompanhada com um pãozinho" — ela pensou, enquanto decidia se tomava a sopa ou se ia verificar o preço da passagem. Nem se levantou do lugar, de cara percebeu que aquele trocado na mão só dava para pagar a sopa. Pediu o prato de sopa.
Satisfeita, pegou a sua mochila de plástico e saiu vagarosamente da lanchonete cantarolando baixinho até o guichê onde vendia passagem para o seu destino.
Ficou na fila, que estava grande e andava devagar, mas depois de algum tempo chegou à sua vez. Não tinha mais dinheiro, apenas algumas moedas, mas mesmo assim ela queria saber quanto cobravam para deixá-la fora dessa maldita cidade.
Com o valor da passagem já conhecido, deixou o guichê para trás e voltou a circular pelo terminal, olhando as vitrines e de vez em quando entrando no banheiro. O seu desafio agora era saber como ganhar o dinheiro para comprar a sua passagem.
Passou a noite vagando pelas dependências da rodoviária, sem nada comprar, só bebendo água nos bebedouros espalhados pelos andares e desviando-se das muitas investidas dos desocupados. A sua esperança de voltar para o interior ficava cada vez mais distante.
Quando já estava amanhecendo, depois de uma noite cochilando em um banco na área de embarque, ela foi surpreendida por um policial que terminava o seu plantão, acordando-a e oferecendo o banco de seu carro para que ela pudesse dormir com mais conforto. O carro estava no estacionamento e Maria não pensou duas vezes e foram os dois para o carro. Ela não dormiu até ter o dinheiro de sua passagem na mão. Naquela mesma manhã comprou a sua passagem e embarcou. Destino: Águas Belas.
O ônibus saiu vagarosamente do terminal, pegou a rodovia sentido interior e foram apagadas as luzes do salão. Começava a chover naquela manhã em Recife, e Maria estava acomodada na cadeira 27, janela, e fechando as cortinas, arriou a poltrona para trás e adormeceu, enquanto o ônibus deslizava pelo asfalto entre o verde que acompanhava a estrada de ambos os lados. Era um longo caminho até o destino final de Maria.
O ônibus vai deslizando pela estrada fazendo algumas ultrapassagens, outras vezes ficando atrás de um caminhão, mas na hora certa lá estava o ônibus de novo rasgando a estrada sem obstáculos e na frente apenas uma tira preta perdendo-se no horizonte.
Depois de passar por várias cidadezinhas de um lado da estrada, povoados do outro lado, entrando e parando em algumas, o ônibus finalmente deixou a estrada que seguia até Paulo Afonso e entrou a direita rumo a Águas Belas. Daquele entroncamento até a cidade contavam-se uns dois quilômetros. Era uma entrada estreita e reta até que se vislumbrassem as primeiras casas da cidade. Enquanto o ônibus percorria aquele trecho em velocidade reduzida, algumas pessoas caminhavam pelo acostamento.
Durante a viagem Maria só foi acordar em Garanhuns, quando teve uma parada para o almoço. Todos os passageiros foram obrigados a descerem e o ônibus ficou fechado na plataforma de embarque e desembarque.
Ela não almoçou, foi ao banheiro, tomou água no bebedouro e depois foi sentar-se numa bancada de cimento até que os passageiros que almoçaram retornassem para o embarque.
Quando Maria sentou-se na cadeira 27, abriu a cortina de sua janela, arriou de novo a poltrona para trás e fechou os olhos, forçando uma soneca para enganar a fome. Só acordou quando o ônibus estava fazendo a curva no entroncamento para entrar na estrada que dava acesso a Águas Belas. Pela janela de sua cadeira 27, ela podia ver no acostamento da estrada as pessoas que passavam, e algumas casinhas isoladas no meio do mato.
O ônibus garbosamente, com freadas e aceleradas invade a cidade, parando na praça da feira, defronte a uma lanchonete. Naquele sequencial de bares e lanchonetes as pessoas embarcavam e desembarcavam de seus ônibus. Não havia terminal rodoviário naquela cidade.
O motorista foi o primeiro a descer para abrir o bagageiro e entregar as bagagens, seguido dos passageiros que apressados iam tomando cada qual o seu destino.
Maria desceu do ônibus, olhou a sua volta, caminhou pela calçada com a sua sacola na mão e sentiu-se uma estranha na sua própria terra. Quase todas as lanchonetes estavam cheias àquela hora, mas só alguns perceberam dela, que continuava procurando pelo menos um banco vazio. Mais à frente conseguiu não só um banco, mas uma barraca apenas com o dono com os cotovelos no balcão, olhando para a rua. Maria tomou coragem e foi até lá, não tinha um centavo sequer, mas iria pedir apenas água para enganar a fome.
Chegou, sentou-se, e pediu um copo d'água. O dono da lanchonete percebeu que aquela jovem estava com fome. Minutos depois Maria já estava dentro do balcão, sentada a mesa devorando um sanduíche acompanhado de um copo de refrigerante. Daquela lanchonete à casa de dona Bia era um pulo, mas ela demorou a chegar. Não porque fosse sua intenção, mas depois de satisfeita com o lanche, o dono da lanchonete não ia deixá-la sair sem o pagamento da refeição. Tudo foi pago à sua maneira.
Depois de ambos satisfeitos, Maria se lavou, beijou-o e seguiu de rua afora até o cabaré de dona Bia. Ainda se lembrava da rua e quase anoitecendo bateu na porta do cabaré. Demorou a ser aberta a porta. Ela teve que repetir as batidas até que aquela maldita porta fosse aberta.
O primeiro abraço foi dado em Solange, que quase não a soltava. Quando estavam cruzando o salão, as meninas apareceram do nada e se jogaram sobre as duas, caindo todas no chão. Dona Bia chegou esgueirando-se pelos cantos e para surpresa de todos, ligou a radiola de ficha a todo volume. As meninas se levantaram, entreolharam-se, e num impulso começaram a dançar.
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