CAPÍTULO SEIS
Treze anos depois.
Isidoro agora estava satisfeito com a quantidade de filhos para as suas condições, mesmo ignorando que a fila para a reencarnação só aumentava.
Depois da chegada de Maria, veio em seguida, mesmo depois de alguns anos, o caçula Nicodemos, criado com muito mimo pelos pais e aporrinhado pelos irmãos. Fecharam a conta com Deus, quebrando uma antiga tradição de que os habitantes da zona rural tinham muitos filhos porque as crianças ajudavam os pais nas plantações. Só que Isidoro parou de fazer filho, mas trazia consigo esse costume.
O caçula Nicodemos nascera com uma deficiência: era zaroio. Diziam os mais crentes que a causa dessa deformidade era porque Isidoro e Idalina eram primos legítimos.
Severino, outrora o pequeno Bil, já não era mais aquela criança que fora buscar a parteira. Hoje era um mancebo com dezoito anos, e sua irmã Maria, aquela que nascera naquele dia chuvoso, agora estava com treze anos. Foi crescendo às carreiras como uma planta daninha, e desde pequena fora espevitada, não havia puxado a ninguém daquela casa; e Idalina sempre dizia em tom de zombaria que àquela menina só podia ser filha da parteira. Aquela mesma, que depois do parto ainda passou uma semana na casa de Isidoro acompanhando a recuperação de Idalina e quando foi embora deixou para trás um monte de garrafas vazias entulhadas no quintal. Todo santo dia ela mandava comprar uma garrafa de pinga. Naqueles dias, o pequeno Bil fora o escolhido para essa incumbência.
Antes de esvaziar uma garrafa, ela tirava de dentro do sutiã o dinheiro que estava amarrado num lenço encardido, puxava uma cédula amarrotada e levemente velha e dava para o pequeno Bil, que já sabia o que fazer e saía em disparada para a bodega que estava do outro lado do rio, na entrada de Águas Belas. Ele voltava bem rápido, quase sem fôlego, porque sabia que o troco seria seu. De vez em quando ele ia verificar na cozinha se a garrafa que trouxera há pouco já estava vazia, porque a cada viagem feita para comprar uma nova garrafa de aguardente, as moedas de troco iam multiplicando-se no seu bolso.
Nicodemos estava com quatro anos, nascera em 1975, e Isidoro agora estava mais enrugado, talvez vivendo rápido demais as fases de sua vida. Dizem que depois de certa idade, os dias ficam mais curtos e o fim da estrada mais próximo.
Idalina, coitada, sem mais nenhum traço de seu corpo outrora viçoso, apenas carregando no rosto algumas rugas que insistiam em modificar a sua aparência, e alguns cabelos brancos substituindo os pretos de ontem. Até já se esquecera de limpar as solas dos pés com cacos de telha, e o estojo de barbear de Isidoro agora era usado por ela com irregularidade.
Contudo eles continuavam vivendo naquele sítio, cuidando do roçado e da pequena criação que vivia ao redor da casa. O lugar ideal para Isidoro e Idalina criarem seus filhos, e não tinham do que reclamar porque viviam num lugar parecido com o céu. Além do mais, ninguém reclamara até agora a propriedade daquelas terras. Isso desde o sumiço do patrão depois daquela invasão ao sítio.
Todo sábado e toda segunda-feira, Isidoro continuava armando a sua barraquinha nas feiras de Itaíba e Águas Belas, respectivamente, para vender macaxeira, mandioca, batata-doce, jerimum, as frutas da estação, e quando estava no tempo de colher feijão e milho, ele catava as vagens e as espigas e também levava na cangalha do burro para vendê-las.
De madrugada Isidoro acordava, colocava os caçuás presos às cangalhas no lombo do jegue, enchia de mantimentos, acordava Severino e Maria e saiam de estrada afora para a feira. Maria montada na cangalha do jegue e os dois caminhando atrás pelo acostamento da estrada, chegando a Itaíba com o dia já amanhecendo.
Idalina agora ficava em casa com o pequeno Nicodemos.
Ela também acordava de madrugada nesses dias; não conseguia dormir até mais tarde por causa do barulho que Isidoro fazia arrumando os mantimentos para a feira. Levantava-se em silêncio, sem acordar Nicodemos, acendia o fogo de lenha no fogão de barro — que tinha um buraco na frente por onde escorria toda a cinza morna —, colocava a panela de barro com feijão e água e deixava fervendo. Em seguida, forrava a cama — havia apenas uma na casa — e dobrava as redes dos meninos, pendurando-as nos ganchos pelo punho. Nessa hora, o pequeno Nicodemos já estava na cozinha, sentado à mesa, fazendo seu desjejum.
Mais tarde, pegava a roupa suja, colocava numa bacia e saía para o riacho, com Nicodemos no cós de sua saia segurando uma baleadeira para matar calango na beirada do mato. Quando Idalina, lá do riacho, sentia o cheiro de feijão cozinhando, gritava para Nicodemos, que sorrateiramente, estilingue esticado, mirava a catenga que cochilava sobre uma pedra. Essa teve sorte, fugiu de uma só rabiscada ao ecoar no ar o grito estridente de Idalina.
— NICÓ! VAI TIRAR DO FOGO A PANELA DO FEIJÃO, CORRE!
Ao clarear o dia, Itaíba já estava agitada com os feirantes chegando e armando as barracas no lugar demarcado para cada um.
De longe dava para ouvir o barulho de gente que transformava o açougue num formigueiro. Eram os açougueiros entrando e saindo do mercado. Os que entravam levavam às costas as bandas de boi; outros estavam nas tarimbas amolando as facas num barulho ensurdecedor de metal contra metal.
Era uma agitação anormal o amanhecer de sábado no centro de Itaíba.
Nas tendas que ficavam na calçada do açougue e naquelas armadas em frente ao mercado de farinha, que por sua vez estava de frente para o açougue, já havia cuscuz quentinho na cuscuzeira, carne de boi e galinha guisada, miúdos, sarapatel, arroz branquinho na panela fumegando, cachaça, zinebra e até café quentinho feito na hora.
Os bancos compridos de madeira já não tinham mais espaço para acomodar ninguém. Enquanto isso muita gente fazia fila na calçada esperando uma vaga.
Isidoro entrava na cidade com Maria sentada no lombo do jegue, sobre a cangalha; Severino logo atrás, já cansado da caminhada e seguiam até a praça da prefeitura, que era o lugar demarcado para Isidoro. Antes de chegar à praça, eles faziam o desjejum numa dessas tendas na calçada do açougue.
Chegando à praça, Isidoro arriava os caçuás, enquanto Severino corria para buscar no beco do urubu as partes da barraca que ficara guardada depois da feira passada. O coitado fazia várias viagens até conseguir trazer todas as peças. À medida que os caixotes e as traves de madeira eram trazidos, Isidoro ia montando a barraca até o momento de jogar o encerado por cima. Era a parte final e estava pronta a barraquinha. A tarefa que cabia a Maria era tirar as coisas de dentro dos caçuás e distribuí-las sobre o tabuleiro.
O jegue, depois de tudo arrumado, Severino o pegava, montava nas suas costas nuas e saía trotando até o campo de futebol, que ficava por trás da praça, onde muitos outros animais, como cavalos, jumentos, vacas, cabras e ovelhas ficavam recolhidos durante quase toda a feira; uns deitados e outros parados a olhar o chão, e por vezes um jumento rinchava e as cabras e ovelhas berravam. Os mais comportados eram as vacas e os cavalos. Havia naquele campo animais de carga que esperavam o fim da feira, e animais que eram trazidos para serem vendidos.
Quando Isidoro levantava a sua barraca, e todos os demais feirantes também o faziam, a feira de Itaíba estava pronta para receber os consumidores que já circulavam nas ruas.
As bancas ficavam enfileiradas, uma ao lado da outra, na beira da calçada, de cada lado da rua. Elas eram armadas de modo que o consumidor sabia onde encontrar o que procurava. A maioria ficava na praça. Poucas bancas ficavam nas ruas adjacentes.
A farinha, o feijão e a carne achavam-se numa rua fora da praça. Nessa rua ficava o açougue, o mercado de farinha e de calçada afora vários sacos de feijão.
As bancas de frutas e verduras ficavam na Praça Coronel Francisco Martins, de um lado e do outro. Descendo no sentido de Negras, estavam as bancas com miudezas e confecções, de um lado e outro da calçada. Todas eram colocadas no calçamento, beirando a calçada, de modo que estas ficassem livres para que as pessoas tivessem acesso às bodegas e as mercearias, que estavam de todos os lados, viradas para a feira.
Esse amontoado de barracas e todo espaço ocupado pelos feirantes tinha um preço. Eles pagavam uma taxa aos cofres municipais; era uma taxa cobrada pelos fiscais da prefeitura com a maior pontualidade.
Na feira de Itaíba o sábado era sempre tranquilo, só algumas discussões aconteciam, mas logo eram apaziguadas pelas autoridades, porém sempre havia um dia atípico na feira de Itaíba.
Aconteceu que num certo sábado, um criador de porcos saiu cedo de casa para vender um barrão a um magarefe seu conhecido, mas logo depois desta venda, ficou num boteco ao lado do açougue tomando uma cachacinha e se esqueceu de que alguém em casa o esperava. Quando pensou em voltar para casa já passava do meio-dia; mas voltou. Estava com dinheiro no bolso para fazer a feira, vendera bem o seu porco, e este já estava aos pedaços pendurados na tarimba do açougueiro que o comprara.
Passados alguns minutos depois que o criador de porcos foi para casa, avistou-se ele voltando desabalado, com uma faca na mão, atrás de um rapaz seminu, só de cueca, que corria na sua frente. O rapaz foi alcançado em frente à barraca de Isidoro. Caiu no calçamento e foi golpeado mortalmente pelo criador de porcos. Morreu na hora. A feira ficou deserta por alguns instantes; apenas dois homens eram vistos no meio da rua. Um deitado no calçamento sobre uma poça de sangue e o outro por cima metendo-lhe a faca.
Depois o criador de porcos se levantou, jogou a faca suja de sangue para o lado, que foi cair exatamente sobre as batatas de Isidoro e fugiu pelo beco do urubu, atravessando o campo de futebol e sumindo de mato adentro.
Soube-se depois que o motivo de toda aquela violência foi porque o criador de porcos ao chegar à casa, depois de ter vendido seu barrão, ter tomado várias cachaças e levado o dinheiro para fazer a feira, teria encontrado a sua mulher na cama com o rapaz esfaqueado à frente da banca de Isidoro.
Dias depois daquele assassinato na feira, o criador de porcos voltou às escondidas e matou a esposa adúltera.
Fora esses imprevistos, as feiras em Itaíba eram tranquilas e vantajosas para os feirantes. Nas outras vezes em que havia alguma confusão era pela empolgação de algum bêbado, mas logo era reprimida pela polícia.
Já anoitecendo, quando a feira estava acabada, a agitação agora ficava por conta dos feirantes desarmando suas barracas e carregando-as, nas costas ou em carroças, para guardá-las amontoadas no beco do urubu. Isidoro também fazia o mesmo.
Era nessa hora que as calçadas ficavam sujas com as sobras de feira. Eram restos de alface, repolho, tomates estragados e outras frutas podres. Os mendigos e várias pessoas da periferia, inclusive crianças e mulheres, na maioria, nessa hora entravam na feira catando o que pudesse ser aproveitado.
Depois de tudo arrumado, o jumentinho já trazido do campo onde passara o dia, eles desciam de rua abaixo fazendo o caminho de volta para casa, mas na saída de Itaíba, todo sábado depois da feira eles tinham por hábito fazer algumas compras antes de irem embora. Era numa mercearia que ficava na esquina da Rua Santa Cruz, rumo à saída da cidade.
Severino e Maria ficavam sentados na calçada tomando conta do jegue, que também aproveitava a parada para ficar comendo papel ao longo do meio-fio, e Isidoro entrava na mercearia. Apoiava-se no balcão, geralmente num canto onde ainda havia espaço, porque a essa altura a vendinha já estava lotada; muita algazarra, fumaça de cigarro barato flutuando com o seu acre odor de nicotina e muitos vaqueiros misturados aos feirantes, já bêbados, berrando e gesticulando apoiados no balcão cheio de copos e garrafas.
Dentro do balcão, despachando, apenas o dono da mercearia e sua esposa.
Isidoro esperava pouco tempo para ser atendido. Já era freguês contumaz e o dono da bodega, assim como a mulher, sabiam bem o que ele comprava todo sábado e corriam para servi-lo, colocando sobre o balcão o querosene, a farinha, o sal, um pacote de café, uma barra de sabão, uma rapadura e uma garrafa de cachaça. Antes mesmo de as compras serem colocadas no balcão, serviam-lhe um copo cheio de pinga, que Isidoro ficava degustando enquanto a conta era somada. A essa altura, os meninos, lá fora, na calçada, já estavam tomando uma cajuína com um pacote de bolacha salgada.
Depois de tudo pago, ainda sobrava uns trocadinhos que ele ia juntando, feira após feira, para Idalina ir a Águas Belas comprar nas bancas alguma roupa para vestir um e outro, porque o dinheiro não dava para vestir todos de uma vez só.
Terminada as compras naquela mercearia, Isidoro colocava tudo nos caçuás, Maria montava no jegue e seguiam de estrada afora, chegando a casa tarde da noite, encontrando Idalina e Nicodemos sentados na soleira da porta da frente, esperando-os.
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