A taverna estava envolta em uma penumbra abafada, o cheiro forte de álcool e madeira envelhecida misturando-se ao ar enquanto Christian afundava em sua solidão. A caneca de metal pesava em sua mão, o conteúdo já morno, mas ele continuava a beber, tentando silenciar a voz que insistia em ecoar na sua mente: “Aberração.” A palavra cortava seus pensamentos, voltando repetidamente como uma lâmina fria. Catarine havia escolhido Wenzel, e cada lembrança daquela noite só intensificava a miséria que sentia por sua própria natureza, algo que ele nunca poderia mudar. A porta da taverna rangeu ao abrir, e Demétrio, o alfa de sua alcateia, cruzou o limiar, imediatamente atraindo olhares. Seus passos eram firmes, o porte seguro, e ele se aproximou de Christian com um olhar de quem já havia visto aquele tipo de autodestruição antes. “Levante-se, Christian,” disse Demétrio, a voz profunda e autoritária. Ele não esperava uma resposta, apenas cruzou os braços e aguardou. “Não posso ter um de meus melhores guerreiros se esvaindo por causa de uma humana.” Demétrio respirou fundo, um traço de compaixão emergindo de sua expressão rígida. “Existem milhares de humanas por aí, Christian. Não seja tolo. Nenhuma vale a sua queda.” A resposta de Christian saiu num sussurro, mas carregada de uma dor sincera que Demétrio não podia negar. “Eu sei. Mas nenhuma delas é Catarine.” Demétrio balançou a cabeça, frustrado, mas talvez compreendendo o peso das palavras de Christian. A força imensa de seu guerreiro era inegável, mas ele sabia que o coração de Christian estava arruinado, as feridas abertas sangrando pela escolha de Catarine.
Catarine estava sentada no canto de seu quarto, observando pela pequena janela o dia lá fora passar lentamente, enquanto a vida, que antes parecia tão cheia de possibilidades, agora lhe escapava. O quarto era espaçoso, mas parecia apertado, sufocante. Cada parede era uma lembrança amarga do que ela havia perdido. Seus dedos, antes calejados pelo trabalho na forja de seu pai, estavam agora lisos e sem utilidade. O som de metal batendo contra a bigorna, um som que lhe trazia paz desde a infância, havia se tornado um eco distante, um sonho inalcançável. Seu pai havia sido claro. Desde a noite em que ela voltou com Wenzel, envergonhada e assustada, ela não teria mais permissão para sair de casa. Mantida praticamente em cárcere privado, sua liberdade havia sido arrancada. Ele não a deixava sequer pôr os pés na forja, aquele lugar que era parte de sua essência, onde ela moldava o ferro com a mesma precisão que moldava seus próprios sentimentos. Agora, tudo o que ela podia fazer era suspirar, o som carregado de arrependimento e tristeza, e lamentar sua escolha.
Ela se levantou, andando pelo quarto com passos lentos, os olhos marejados de lágrimas. O som das vozes de seu pai e Wenzel vinha do andar de baixo, uma conversa que parecia ser constante nos últimos dias. Eles estavam discutindo os preparativos do casamento, como sempre faziam. Wenzel, arrogante, mal podia esperar para tê-la como sua noiva, seu troféu, a mulher que ele finalmente domaria. “Em breve, ela será minha, sem nada para impedir,” ele dizia, a voz carregada de uma satisfação que fazia Catarine se encolher de desgosto. Ela fechou os olhos, a mão apertando a cortina da janela. Não havia nada mais ao seu redor além de paredes, grades invisíveis que a mantinham prisioneira, e a promessa de um casamento que ela não desejava. Tudo o que ela queria era a liberdade de ser quem era, de trabalhar na forja, de ser dona de suas escolhas. Mas, ao invés disso, tudo o que restava era o arrependimento amargo e o vazio que Wenzel e seu pai haviam colocado ao redor dela. Catarine se sentia como o metal que costumava forjar: dobrada, moldada à força, e prestes a quebrar.
Naquela noite, Catarine estava deitada em sua cama, a cabeça enterrada no travesseiro, abafando os soluços que escapavam de sua garganta. A luz fraca da lua entrava pela janela, lançando sombras pelo quarto vazio e gelado. A solidão e o peso do destino que se aproximava a sufocavam mais a cada segundo. O casamento com Wenzel, marcado para daqui a uma semana, parecia uma sentença irrevogável, uma prisão eterna. Ela não conseguia ver uma saída, e o desespero apertava seu peito como correntes invisíveis. Foi nesse silêncio torturante que ela ouviu uma risada suave, quase sedutora. Uma voz que ecoava nas profundezas de sua mente, sombria e perigosa. "Então é isso, Catarine Schmied," a voz soou pelo quarto, como uma brisa fria que a fez estremecer. "Você será reduzida a uma simples esposa?" Eros, o vampiro que aparecia sempre nos momentos de maior fraqueza, estava de pé no canto do quarto, envolto em sombras. Seu sorriso era de puro veneno, os olhos brilhando com uma malícia predatória.
"Vai embora," ela murmurou, virando-se no travesseiro, sua voz carregada de desgosto e cansaço. Ela não tinha forças para confrontá-lo, não agora. Mas ele apenas riu, aquele som baixo e profundo que fazia seus nervos se retraírem. "Vamos, garota," ele disse, caminhando lentamente em sua direção, as botas dele quase não fazendo som no chão de madeira. "Você é uma guerreira. Não foi feita para viver assim, presa, enjaulada por homens medíocres. Aperte minha mão, e essa agonia vai acabar." Ele estendeu a mão para ela, a pele pálida brilhando à luz da lua, como uma tentação maldita. Catarine se levantou lentamente, seus olhos inchados de lágrimas, fixando-se nele com uma mistura de curiosidade e raiva. "Por que é tão importante assim eu fechar um trato com você?" Ela perguntou, a voz firme, mas com um tom de cansaço. "O que você tem em mente, Eros?" O vampiro inclinou a cabeça e sorriu de maneira maliciosa, seus olhos afiados como lâminas. "Ah, minha querida," ele riu, um som que parecia reverberar pelo quarto. "O que eu tenho em mente? Isso não importa para você. O que importa é que se você entrar naquela igreja vestida de branco daqui a uma semana, sua vida como você conhece acabará para sempre." Ele deu um passo mais perto, sua presença pesada e opressora. "Você será reduzida a uma mulher que apanha do marido em silêncio. A guerreira em você vai desaparecer, e o que restará será apenas uma sombra do que já foi."
Catarine engoliu em seco, o coração acelerado. As palavras dele penetravam sua mente como veneno, e ela sabia que ele estava jogando com seus medos mais profundos. "E o que eu sou para você, Eros?" ela sussurrou, a voz tremendo. "Por que você quer tanto que eu faça esse pacto?" "Porque, Catarine," ele disse, sorrindo friamente, "você é mais valiosa do que imagina. E quando você perceber o seu verdadeiro valor, terá poder suficiente para mudar tudo. Você tem uma alma que eu preciso, uma alma que pode incendiar o mundo. Mas, primeiro, você precisa se libertar dessa prisão." Ele estendeu a mão novamente, os olhos fixos nos dela, tentando seduzi-la com promessas sombrias. Ela hesitou. As correntes de sua vida atual eram sufocantes, mas o que Eros oferecia... seria uma libertação ou outra forma de prisão?
“Aperte minha mão, garota. Seu tempo está se esgotando.” A voz de Eros era um sussurro envolvente, uma promessa tentadora envolta em uma escuridão implacável. Ele a encarava com aqueles olhos profundos, capazes de despir sua alma e despertar os desejos mais ocultos. Catarine o olhou com firmeza, tentando não se deixar abalar pela intensidade hipnótica daquele olhar. “E como você planeja me livrar desse casamento, Eros?” Ela falou, a voz carregada de desafio. “Vai fazer o barco de Wenzel afundar, por acaso?” Eros apenas riu, um som grave e divertido que parecia vibrar no quarto, arrepiando-a. “Oh, querida,” ele respondeu com um sorriso torto, “não me reduza a planos fáceis e fúteis. Eu sou um lorde das trevas. O rei dos vampiros. Afundar o barco daquele marinheiro seria o mínimo, e sem graça.” Ele se aproximou, seu rosto a centímetros do dela, a voz baixa e carregada de mistério. “Meus planos são mais… exóticos. Mas de uma coisa eu te dou certeza, Catarine. Você ficará livre das amarras do seu pai, de Wenzel e dessa vila para sempre. Será livre para escolher o próprio caminho, até para viver ao lado do lobo que ama. Christian.” Essas palavras golpearam Catarine com uma força inesperada, seu coração batendo mais forte ao ouvir o nome de Christian. Ela hesitou, sabendo que um acordo com Eros nunca viria sem um preço terrível. Mas, ao pensar no destino que a aguardava ao lado de Wenzel, a prisão que seu pai lhe impusera, a dor de abrir mão do amor que sentia, percebeu que já não tinha nada a perder.
Num gesto sombrio e decidido, ela estendeu a mão e a apertou contra a de Eros. “Eu aceito,” sussurrou, as palavras saindo com uma firmeza inesperada. Eros sorriu, seus olhos brilhando com um malicioso contentamento. Riu baixinho, o som rasgando o silêncio com uma intensidade que a fez estremecer. “Excelente... O pagamento pela sua liberdade...” Ele se inclinou, sua voz sussurrando em seu ouvido, suave e ameaçadora. “Vou cobrar em breve, mas... não agora.” Antes que ela pudesse reagir, ele desapareceu em uma nuvem de fumaça, deixando-a sozinha, encarando o vazio. O ar denso e envenenado pela presença de Eros parecia apertar o coração dela, e uma inquietação a dominou. Em que ela havia se metido? E qual seria o preço sombrio de sua liberdade?
O céu estava cinzento e denso sobre o porto enquanto o navio de Wenzel se preparava para zarpar em direção a Copenhague. Uma última transação marítima antes do casamento com Catarine. As especiarias para a vila prometiam trazer um lucro generoso e abastecer as prateleiras com aromas raros, essenciais para os negociantes locais. Mas, mais do que o lucro, Wenzel queria essa viagem finalizada o quanto antes. Estava decidido a voltar em uma semana. Afinal, cada dia que passava era um dia a menos entre ele e a cerimônia de casamento. A bordo, o ambiente era frenético. Tripulantes corriam entre cordas e velas, ajustando o mastro e amarrando barris, suas mãos calejadas e rostos marcados pela pressa. Cada grito de ordem era abafado pelo som das ondas batendo no casco, e o cheiro salgado do Mar Báltico invadia o ar enquanto o navio avançava para além do porto, mergulhando cada vez mais na vastidão escura e gelada. Wenzel observava tudo de seu posto, o olhar firme sobre a linha do horizonte, ansioso para deixar tudo atrás. Ele queria retornar com o vento a seu favor, rápido e eficiente, a mente já planejando como agilizaria a carga ao chegar na Dinamarca. Estava determinado a fazer dessa a travessia mais veloz de sua vida. As nuvens pesadas no céu pareciam um presságio, mas ele afastava qualquer pensamento negativo. Nada o impediria de voltar a tempo. Este casamento, a reivindicação de Catarine, tudo estava à sua espera, e ele não permitiria que nada, nem mesmo as intempéries do mar, atrasassem o destino que ele mesmo traçara.
O navio avançava, cortando as ondas com firmeza, cada movimento calculado e cada ordem atendida com precisão quase militar. O silêncio pesado de seus pensamentos era quebrado apenas pelo ranger das madeiras e o murmúrio dos homens. "Uma semana... exata," murmurou para si, com a confiança e ambição que só ele sabia ter. O navio de Wenzel cruzava o Mar Báltico, cortando as ondas geladas que refletiam o céu tempestuoso. O vento assobiava, e a tripulação seguia as ordens de Wenzel com precisão. Havia uma urgência em cada movimento, uma tensão palpável entre os homens, e Wenzel observava tudo com impaciência, seus olhos fixos no horizonte como se quisesse controlar o próprio tempo para retornar logo a Catarine. Acima do navio, sem ser visto, Eros os observava, flutuando como uma sombra maligna, quase se fundindo ao cinza tempestuoso do céu. Ele pairava sobre a embarcação, rindo baixinho, seus olhos brilhando de satisfação enquanto observava a inquietação de Wenzel e sua pressa em atracar no porto de Copenhague. A viagem transcorreu sem incidentes até o momento em que finalmente avistaram o porto, e o navio atracou com agilidade. A tripulação de Wenzel desceu rapidamente e começou a carregar as especiarias para bordo. Entre o vai e vem dos trabalhadores no porto, Eros sentou-se displicentemente sobre uma das grandes caixas de madeira, suas vestes escuras contrastando com a pálida iluminação do dia. Ele observava cada movimento com um sorriso traiçoeiro nos lábios, um riso baixo e malicioso escapando enquanto os homens passavam apressados ao seu redor, alheios à sua presença.
De repente, o olhar de Eros se fixou em um rato negro que farejava o chão úmido do porto. Com um simples apontar de seus dedos esguios, ele o controlou, seus olhos cheios de crueldade enquanto observava a pequena criatura se mover segundo sua vontade. O rato hesitou por um segundo, e então, sob o comando de Eros, entrou nas caixas de especiarias, deslizando por entre os sacos de grãos e temperos. O sorriso de Eros se alargou ainda mais, seus olhos dançando de prazer enquanto via as caixas infestadas, o pequeno animal enterrando-se mais fundo, oculto de qualquer um que pudesse notá-lo. Satisfeito, Eros se levantou, caminhando para as sombras do porto, desaparecendo lentamente como a própria neblina. Ele sabia que sua semente estava plantada, e enquanto Wenzel comemorava a eficiência da viagem, Eros já esperava pela calamidade que ele deixara escapar para dentro daquele navio.
A viagem de Wenzel continuava, sem que ele soubesse do destino sinistro que acompanhava sua tripulação. A cada parada que faziam, ao descarregar e reabastecer, as caixas de especiarias liberavam pequenas sombras que se infiltravam no convés: ratos negros, pequenos e quase imperceptíveis, mas numerosos. Os olhos deles brilhavam com uma fúria instigada, movendo-se em filas silenciosas enquanto as pulgas saltavam de suas costas para o chão e os pés dos homens que passavam por perto. Sem saber, Wenzel e seus homens levavam consigo um fardo mortal. Eros, de longe, observava. Oculto nas sombras, ele ria, um riso baixo que parecia entrecortado pelo chiado dos ratos, uma melodia doentia que ele mesmo havia orquestrado. Com o controle de cada uma dessas criaturas, Eros ordenava aos ratos que infestassem o navio, guiando-os em seus esconderijos dentro dos barris e caixas. Durante a noite, quando o convés estava em silêncio e os marinheiros dormiam em seus beliches, as pulgas infestadas com a praga saltavam sobre as roupas e pele da tripulação, mordendo sem que ninguém notasse. Era um trabalho meticuloso, cada mordida era uma contagem regressiva para a peste. Alguns dias depois, os primeiros sintomas começaram a se manifestar. Um dos marujos, suando e pálido, sentiu uma leve dor de cabeça e febre, mas continuou trabalhando, achando que era apenas o cansaço da longa viagem. Outro marinheiro tossiu no silêncio da noite, o som ecoando pelas paredes do casco. No entanto, a doença progredia silenciosamente, pois Eros havia calculado tudo com precisão.
Quando o navio se aproximou do último porto antes de retornar, metade da tripulação já estava afetada pela febre alta e manchas negras pelo corpo. Eros pairava invisível acima do navio, um sorriso sombrio acompanhando cada suspiro febril, cada gemido abafado de dor que rompia o silêncio da madrugada. E assim, a praga da Yersinia pestis, a peste negra, se alastrou de forma invisível. Wenzel ainda tentava comandar seus homens, mas a cada manhã notava que mais deles estavam apáticos, suas faces cobertas por suor e com olhos opacos. O odor da doença, denso e pesado, já começava a se acumular no ar, anunciando o inevitável. Eros, satisfeito com sua obra, desapareceu nas sombras, deixando Wenzel e sua tripulação no silêncio mortal da peste que ele havia desencadeado.
O navio de Wenzel finalmente rumava de volta a Greifswald, mas a vitória que ele tanto desejava ao trazer especiarias preciosas para seu casamento logo se transformou em um pesadelo aterrador. No convés, o ar pesado e úmido parecia fermentar o cheiro agridoce da doença. Os marinheiros, que antes trabalhavam com vigor e risadas, agora eram sombras de si mesmos, seus rostos marcados pelo cansaço, suor e um brilho febril nos olhos. No segundo dia da volta, o primeiro sinal alarmante surgiu: um dos marujos, tombando subitamente, tossiu um espesso fio de sangue que manchou o convés de carmesim. Seus colegas se entreolharam, murmurando inquietos, sem compreender a gravidade do que estavam presenciando. No entanto, Wenzel os instigava a continuar, crendo que a febre poderia ser causada pela fadiga. “Aguentem firme! Logo estaremos em casa e isso tudo passará,” ele dizia, sem saber que o pior ainda estava por vir. Naquela mesma noite, enquanto o mar calmo refletia a lua pálida, outro marinheiro deu um grito abafado ao notar uma protuberância escura e dolorida crescendo em sua axila, semelhante a um tumor. Outro homem começou a murmurar em delírio, com febre tão alta que a pele de seu rosto parecia derreter sob o suor. "Não... não deveria ser assim... isso é... é como uma maldição..." murmurava um deles, apavorado, enquanto outro marinheiro segurava um pano contra a boca, tentando estancar o sangue que escorria de seus lábios.
"Essa febre... ela está nos matando," murmurou um dos marinheiros, com os olhos fundos e trêmulos. "Hans caiu ontem, e agora é Sven... todos vamos perecer antes de ver terra firme?" A inquietação no convés aumentava, e Wenzel, vendo o medo em seus homens, se aproximou e tentou manter o controle. "É apenas uma febre! Um veneno dos mares, talvez... mas já estamos quase em casa. Não entreguem suas almas à morte tão cedo," ele disse, mas até suas palavras soavam vazias, sem o mesmo fervor de antes. Porém, ao amanhecer, outros dois homens jaziam mortos no convés, os rostos contorcidos de dor e os corpos cobertos por bolhas negras, um espetáculo mórbido que ninguém compreendia. “O que é isso? Como a doença se espalha tão rápido?” sussurrou um marinheiro para seu companheiro, os dois se entreolhando, aterrorizados. “Alguém nos amaldiçoou... ou... ou trouxemos uma praga de algum porto maldito,” murmurou outro, com a voz quase sumindo de terror. Ao quarto dia de viagem, metade da tripulação estava morta ou à beira da morte, o convés de madeira tingido pelo sangue e suor dos homens que tossiam e suplicavam por alívio. “Não faz sentido,” murmurou Wenzel para si mesmo, o rosto tão pálido quanto os cadáveres ao seu redor. Ele então encarou o horizonte vazio, o frio da morte ao redor de seu navio — e em seu peito, o medo de que talvez nunca mais visse a costa, nem o lar. Enquanto o navio avançava, o ar dentro dele se tornava mais espesso e fétido, carregando o cheiro metálico do sangue e o odor da morte. Os poucos marinheiros que ainda podiam se mover mantinham-se a distância dos mortos, estremecendo ao passar por eles, mas o pavor se intensificava ao ver que alguns, mesmo caídos, pareciam se contorcer, como se a praga ainda os possuísse. As febres dos homens restantes eram tão altas que o delírio os fazia balbuciar coisas incoerentes sobre sombras, maldições e bestas invisíveis. Wenzel, sempre seguro e confiante, agora estava irreconhecível. Sua aparência antes altiva estava tomada por uma expressão desolada e agoniada, como se a energia vital estivesse sendo drenada junto dos corpos de seus homens. Ele passava horas na proa, os olhos fixos no horizonte, esperando desesperadamente ver a linha da costa de Greifswald, mas a neblina do mar parecia zombar de seus esforços, ocultando qualquer esperança de salvação.
No quinto dia, um dos poucos sobreviventes, com olhos alucinados e uma febre que parecia derreter sua sanidade, arrastou-se até Wenzel. "Capitão..." ele sussurrou, voz rouca e gasta, "alguém nos amaldiçoou. Vi um vulto, algo que não era deste mundo, no porto... foi ele, foi ele que trouxe isso para nós." Wenzel tentou ignorar o desespero do homem, afastando a ideia de maldição como tolice de superstição, mas a lembrança do riso malicioso de Eros, do olhar predador do vampiro, voltou à sua mente, e pela primeira vez ele sentiu a fina lâmina do medo em seu peito. Logo, restavam apenas Wenzel e dois homens, e ambos estavam à beira da morte, com os bubões escurecendo a pele, exalando um cheiro pútrido e indescritível. “Nós... vamos afundar esse navio maldito. Ou ele nos levará direto ao inferno,” um deles murmurou entre tossidas, sem forças para levantar. Wenzel, atormentado e sem saída, decidiu que não voltaria a Greifswald com a praga a bordo. Ele ordenou que o navio fosse direcionado para o mar aberto, onde ele seria abandonado para afundar em segredo. Mas sua decisão veio tarde demais, pois a própria força lhe faltava, e ele já sentia a morte pesando sobre si, como uma sombra impiedosa que o abraçava lentamente.
No sétimo dia, enquanto o navio derivava no mar, quase imóvel e com Wenzel estirado sobre o convés, ele viu um vulto flutuando sobre a neblina, uma figura alta e fria, vestida de negro. Era Eros. Ele sorria, e o brilho de seus olhos parecia cintilar no meio da penumbra. "Então, marinheiro... como é ter seu próprio fardo de escuridão?" disse o vampiro, sua voz ecoando como um sussurro envenenado. "Você... você fez isso..." Wenzel murmurou, a voz enfraquecida. "Você envenenou meus homens, amaldiçoou meu navio..." O vampiro apenas inclinou a cabeça, satisfeito, como se as palavras de Wenzel fossem um elogio. “Agora, nada mais o prende a essa vila, não é?” Eros falou, ironicamente gentil. "Deixe-me poupar-lhe o esforço e levarei uma mensagem a sua noiva... de que você, infelizmente, jamais retornará." Wenzel, com suas últimas forças, tentou se levantar, a raiva e o terror brilhando em seus olhos, mas era inútil. Ele assistiu, impotente, enquanto Eros desaparecia na neblina, a risada reverberando como uma melodia fria e imortal. Naquele mesmo dia, o navio, repleto de cadáveres e assolado pela maldição, foi tragado pela neblina, como se o próprio mar o quisesse devorar, desaparecendo nas águas profundas.
O navio de Wenzel balançava pesadamente em direção ao porto de Greifswald, como um cadáver flutuante, desgastado e marcado pela tragédia. A febre queimava sua pele, os bubões em seu corpo pulsavam com uma dor insuportável, e seus marinheiros, uma vez vibrantes e cheios de vida, agora eram sombras pálidas, arrastando-se pelo convés, muitos já caídos, vítimas da praga que havia devastado a tripulação. Os gritos de dor ecoavam sob o céu nublado, enquanto o mar, antes apaziguador, tornara-se um cemitério de desespero. Wenzel estava cercado por corpos, seus amigos e companheiros de viagem, agora inertes, transformados em relíquias de uma jornada fatídica. Apenas ele permanecia, um sobrevivente isolado, mesmo que a vida o tivesse abandonado. Finalmente, com um último esforço desesperado, ele conseguiu atracar o navio. Os olhos nublados pela dor e pela febre olhavam para a terra firme, como se ela representasse uma promessa de salvação. Mas, ao pisar no cais, a realidade se desdobrou em sua mente como um pesadelo: ele era o único que restava, o único a testemunhar a calamidade que assolara sua embarcação. "Não..." ele sussurrou, a voz quase perdida em um sopro. "Não pode ser..." A vila parecia respirar em silêncio, observando enquanto ele lutava para permanecer de pé, mas a fraqueza o dominava. A dor e a culpa se entrelaçavam em sua mente; cada respiração era um lembrete do que ele perdera. Com os amigos e marinheiros que o acompanhavam agora mortos, a desolação tomava conta de seu coração.
A dor em seu corpo se intensificou e, enquanto ele vacilava, a verdade irrompeu em sua mente: ele era o único culpado. A praga não escolhera apenas aqueles que estavam a bordo; era uma maldição que se alastrava por sua própria arrogância. O riso distante de Eros ecoava em seus ouvidos, um eco maligno que celebrava sua solitária sobrevivência. Antes que pudesse se recuperar da revelação, seus joelhos se curvaram e ele caiu, derrotado. Com um esforço desesperado, ele se levantou, os joelhos quase cedendo sob seu peso. O chão de madeira do cais parecia dançar sob seus pés, mas, por fim, Wenzel conseguiu pôr os pés no solo de Greifswald. As sombras da noite caíam pesadas sobre a vila, e um silêncio pesado pairava no ar, como se o próprio lugar estivesse esperando o que viria a seguir. Contudo, ao dar o primeiro passo, seus olhos se abriram em horror.
Uma visão macabra o aguardava: uma nuvem de ratos negros emergiu das sombras, seus olhos brilhando como pequenos pontos de luz no escuro. Eles pareciam se mover como um único organismo, serpenteando pelas ruas e escuridões, cruzando a visão de Wenzel em um momento de terror absoluto. Ele gritou, mas o som mal saiu de sua boca, abafado pelo pânico e pela dor. "Não..." ele balbuciou, tentando recuar, mas seu corpo não obedeceu. O calor em seu corpo começou a se dissipar, e ele se sentiu como se estivesse sendo puxado para um abismo profundo e escuro. O riso de Eros ecoava em sua mente, como uma canção de ninar macabra, prometendo que a escuridão que agora dominava sua alma era sua herança, um pagamento por seus pecados. Quando Wenzel finalmente caiu, a força da morte o abraçou, e o chão frio do cais acolheu seu corpo sem vida. Ao redor dele, os ratos negros se espalhavam como uma onda sombria, entrando nas casas, nos estabelecimentos e nas ruas de Greifswald, enquanto a vila começava a sentir o peso de sua tragédia. O caos e a agonia estavam apenas começando, e o riso distante de Eros parecia dançar no ar, celebrando o início de um novo pesadelo.
Catarine estava sentada em seu quarto, perdida em pensamentos, enquanto o dia do seu casamento se aproximava como uma nuvem pesada prestes a desabar. Ela suspirou, a mente cheia de temores e ansiedades. A expectativa de que seu pai entrasse no quarto, seguido por Wenzel, a esmagava como uma sentença de morte, mas ao invés disso, o silêncio ecoava pelas paredes da casa, intensificando sua inquietude. Enquanto o dia se arrastava, a ausência de notícias de seu pai e de Wenzel a deixou cada vez mais ansiosa. Ela se levantou e começou a andar de um lado para o outro, o coração batendo forte no peito. O que poderia ter acontecido? O silêncio, antes reconfortante, agora se tornava uma fonte de tensão. Dois dias inteiros sem a notícia de seu pai, um silêncio angustiante. Ela estava presa no quarto, janelas e portas trancadas. Ela tentou bater na porta e chamar por alguém, mas ninguém respondia. Um desespero começou a tomar conta do seu corpo. E se seu pai tivesse trancado ela ali para morrer de fome como forma de castigo? Os minutos se transformaram em horas, a sede e a fome começavam a apertar Catarine, quase dois dias inteiros sem notícias de seu pai, ou de Wenzel. Então, um barulho quebrou a quietude, e Catarine virou-se abruptamente, os sentidos aguçados. A porta do seu quarto foi arrombada de forma abrupta. Ela saltou, mas a visão que se apresentou diante dela a deixou sem palavras. Era Christian.
"Christian..." A voz dela saiu em um sussurro quase inaudível, enquanto ela corria para ele, envolvendo-o em um abraço apertado, como se temesse que ele pudesse desaparecer a qualquer momento. Ele a abraçou de volta, e a sensação de estar nos braços dele trouxe um alívio imediato, mas a expressão em seu rosto revelava desespero e preocupação. "Você está bem?" Christian a verificava, seus olhos percorrendo seu rosto, buscando qualquer sinal de que ela estava machucada. A preocupação dele era palpável, e Catarine olhou para ele, confusa. "Eu estou bem... mas... como você entrou aqui? E meu pai?" A pergunta escapou de seus lábios, e a preocupação cresceu em seu peito ao perceber a hesitação de Christian. Ele parecia contido, como se as palavras que ele precisava dizer pesassem em sua garganta. Catarine notou a tensão em seu olhar e a inquietação que o envolvia. Ele estava agitado, e seu instinto dizia que algo terrível havia acontecido. "Christian, o que está acontecendo?" A ansiedade em sua voz crescia. Ele respirou fundo, sabendo que ela não tinha ideia do caos que havia tomado conta da vila. "Catarine, há algo que você precisa saber..." As palavras ficaram presas, e, por um momento, o silêncio pairou novamente entre eles. O que Christian estava prestes a revelar mudaria tudo, e ela sentiu um calafrio percorrer sua espinha, como se o destino estivesse prestes a se desdobrar de maneira irrevogável.
Christian segurou firme nas mãos de Catarine, seus dedos entrelaçados, transmitindo uma força que ela não sabia que precisava. "Você precisa ser forte...", ele advertiu, a seriedade em sua voz fazendo seu coração disparar. Ele sabia que a cena que ela estava prestes a ver era sombria, e não queria que ela se sentisse sozinha nesse momento. "O que você vai ver não será fácil." Com um último olhar para ela, ele guiou Catarine para fora do quarto e começou a descer as escadas. Cada passo parecia mais pesado, e a tensão no ar era palpável. O silêncio da casa agora parecia ameaçador, como se os próprios muros sussurrassem segredos que não deveriam ser revelados. Quando chegaram ao andar de baixo, Catarine viu o que a fez parar abruptamente. Johann Schmied, seu pai, estava deitado no sofá, uma cena que a deixou paralisada. Ele não parecia o homem robusto e autoritário que ela conhecia; o corpo estava pálido e sem vida, a pele cinza como a sombra que se projetava na sala. Seu pai estava envolto em um manto de sujeira e exaustão, a respiração havia cessado, mas não era isso que a horrorizava. A peste havia deixado sua marca cruel. Catarine conseguiu distinguir os bubões que haviam se formado em seu corpo, áreas incharam como se a própria carne estivesse se rebelando contra ele. Manchas escuras se espalhavam pelo rosto, onde antes havia uma expressão de autoridade e determinação. Agora, as feições estavam distorcidas, o que restava do semblante de Johann era uma mistura de dor e desespero. Um líquido escuro e coagulado escorria dos cantos de sua boca, e Catarine sentiu um nó se formar em sua garganta. O cheiro da morte a atingiu em cheio, e ela cobriu a boca com a mão, sufocando um grito que ameaçava escapar. "Não... não pode ser."
Christian, ao seu lado, percebeu a fraqueza em suas pernas e a puxou para mais perto, segurando-a com firmeza. "Catarine, eu sei que é difícil, mas você precisa ver isso. É a realidade do que aconteceu." Sua voz era suave, mas implacável. "Eu não posso olhar para ele assim..." ela murmurou, os olhos marejados. "O que aconteceu, Christian? Como isso pôde acontecer?" "Eu não sei," ele respondeu, frustração e desespero misturados em sua expressão. "As pessoas estão apavoradas. Temem que algo terrível esteja prestes a acontecer. "Os rumores falam de uma praga... alguns dizem que é um castigo divino, outros falam sobre o Juízo Final."
Christian segurou as mãos de Catarine com firmeza, a tensão pulsando entre eles. Ele a puxou pelas ruas da vila, o cenário ao redor era desolador. Os habitantes, uma vez cheios de vida, agora apareciam pálidos e doentes, seus rostos marcados pela dor e pelo desespero. Alguns tombavam nas calçadas, tossindo sangue, enquanto outros apenas olhavam em volta com olhos vazios, como se não conseguissem compreender a tragédia que os cercava. A cada esquina, eles se deparavam com mais cenas de desolação. Famílias se reuniam nas ruas, chorando a perda de entes queridos, enquanto outras tentavam escapar da vila, incapazes de suportar a dor que parecia transbordar de cada lar. Christian mantinha o olhar fixo à frente, determinado a não ceder ao pânico. "Vamos para a floresta," ele disse, puxando Catarine mais para perto. Ela olhou para ele, insegura, mas determinada. Enquanto Christian a guiava pelas ruas da vila desolada, Catarine sentia o pavor crescer em seu peito. O lamento abafado dos doentes, as manchas sombrias nas peles febris, o cheiro metálico do sangue... tudo parecia sufocá-la, como se a própria vila tivesse se transformado em um pesadelo. Ela segurava a mão de Christian com força, mas seu olhar estava distante, perdido em uma culpa que a consumia.
“E se isso fosse tudo culpa minha?” A pergunta ecoava em sua mente, atravessando-a como uma lâmina gelada. Lembrou-se do trato com Eros, do aperto de mão que havia selado aquele pacto sombrio. Naquele momento, tudo o que desejava era a liberdade, um escape das amarras impostas por seu pai e por Wenzel. E, com isso, a promessa de Eros de que estaria ao lado de Christian havia sido irresistível. Mas agora, ao ver sua vila mergulhada no horror, um calafrio percorreu sua espinha. “Eu sabia que Eros tinha algo em mente... mas... e se ele causou tudo isso? E se essa praga, esse sofrimento, é o preço pelo meu desejo egoísta?” Ela pensava, enquanto Christian a puxava firmemente para a floresta. Ela olhou de soslaio para Christian, cuja expressão sombria indicava sua própria angústia e confusão. “Christian,” ela sussurrou, com a voz trêmula. “E se... e se isso tudo estiver acontecendo por minha causa?” Ele parou, virando-se para ela com um olhar de preocupação e surpresa. “Catarine, do que está falando?”
Ela engoliu em seco, as palavras parecendo pesadas demais para serem ditas. “Fiz um trato, Christian. Com Eros… Ele me prometeu liberdade, que me livraria de Wenzel e do controle de meu pai. Mas agora… agora, sinto que talvez tenha condenado a todos nós.” Christian a puxou com força pela mão, o rosto contorcido de raiva, enquanto avançavam pela floresta. “Eu avisei você para ficar longe de Eros!” Ele gritou, a voz carregada de frustração. As palavras cortaram o ar, afiadas como lâminas. Ele a olhou por um instante, os olhos brilhando com uma fúria que ela nunca tinha visto nele. Catarine tentou segurar o passo, mas ele puxava com força, como se quisesse distanciar-se o máximo possível do vilarejo e do que quer que tivesse desencadeado. “Eu sei, Christian, mas o que você queria que eu fizesse?” ela retrucou, com a voz trêmula de culpa e frustração. “Meu pai e Wenzel iam nos separar! Eu não ia suportar…” “E isso justifica colocar todo mundo em risco?” Ele a interrompeu, soltando sua mão de repente e se virando para encará-la. “Eros não é alguém com quem se barganha, Catarine! Você sabe disso! Eu avisei, mas você…” Ele passou as mãos pelos cabelos, respirando fundo para conter a raiva. “Agora, as pessoas estão morrendo. Isso é o que nos custou o seu pacto.” Catarine deu um passo para trás, a garganta apertada. Ela queria gritar de volta, dizer a ele que tudo o que fizera tinha sido para eles, que seu amor por ele era a única coisa que a mantinha forte. “Você acha que eu não sei o que fiz?” Ela murmurou, com os olhos marejados. “Mas eu só queria uma chance para nós dois. Eu nunca pensei que...”
Christian olhou para Catarine, o peso da situação refletindo em seu rosto, mas havia algo de diferente em seu olhar. Ele não parecia tão amedrontado quanto ela. Como lobisomem, ele era imune às doenças humanas; o terror que assolava a vila não tinha o mesmo efeito sobre ele. Ele apertou a mão dela, mais firme, mas com uma calma inesperada. “Escute, Catarine,” ele disse, a voz firme, mas controlada. “Eu vou tirar você daqui. Levo você para a minha alcateia. Lá, você estará segura.” Ela o olhou, surpresa. “Sua alcateia? Christian, eu… eu não posso simplesmente abandonar tudo.” Ele soltou um suspiro, como se tentasse encontrar as palavras certas. “Não há mais nada aqui para você, Catarine. “Seu pai e Wenzel já se foram,” ele disse com gentileza, mas também com uma firmeza que não deixava espaço para dúvidas. “Não há mais nada que você possa fazer.” Ela fechou os olhos, sentindo o aperto firme e constante da mão dele, e se deu conta de que, talvez, ele estivesse certo. A vida que um dia conhecera parecia agora uma memória distante, e a única constante, a única coisa segura que restava, era ele. “Você tem certeza de que serei bem-vinda lá?” Ele assentiu. “Sim. E lá, Eros não poderá te alcançar como fez aqui.” Ele lançou um último olhar para a vila antes de puxá-la suavemente para seguir em direção à floresta. "Venha comigo, Catarine. Esse é o nosso caminho agora." Com um suspiro, ela apertou a mão dele, decidida, e seguiu Christian, deixando para trás o que um dia fora sua casa.
Catarine seguiu Christian em silêncio, os olhos marejados e a mente a mil, enquanto as árvores ao redor começavam a se fechar em um corredor verde e denso. A vila que deixavam para trás parecia um pesadelo distante, uma sombra que se desvanecia à medida que adentravam a floresta. Ela observava o perfil determinado de Christian, que, em meio ao caos, havia se mantido ao seu lado. Ele era, agora, a única coisa que a ligava à realidade, a única figura familiar em um mundo que havia desmoronado em uma praga avassaladora. “Suba em minhas costas,” ele disse com uma tranquilidade que beirava o surreal, enquanto seu corpo começava a se metamorfosear. Pelos brancos surgiram onde antes havia pele, os músculos se expandiram e a forma de um grande lobo surgiu diante dela, uma criatura majestosa e imponente. Ela hesitou por um momento, sentindo-se pequena e perdida, mas a determinação em seus olhos a incentivou. Subiu nas costas dele, apoiando-se com firmeza enquanto ele, com força e precisão, começou a correr pela floresta. A sensação de liberdade era arrebatadora, mas com ela vinha um peso amargo. Cada som das patas de Christian contra o chão, cada rajada de vento que cortava seu rosto, trazia à tona memórias das pessoas que ela deixava para trás. Seu pai estava morto, e, embora ele tivesse sido uma presença autoritária e rígida, ainda era seu sangue. Ela jamais voltaria a ver a expressão severa dele ou ouvir sua voz dura; essa era uma ausência que, por mais dolorosa que fosse, agora parecia vazia e incerta.
E Wenzel… Ela nunca quis aquele casamento, nunca quis que ele fizesse parte de sua vida, mas a visão de sua vila devastada, o sofrimento que todos haviam passado, o toque gelado da morte em cada canto de cada casa… Seria este o preço de sua liberdade? Ela finalmente era livre, livre para seguir com Christian, para ser quem ela sempre quis ser ao lado dele, mas a que custo? Cada rosto conhecido que agora estava para sempre perdido pesava em sua alma. Catarine sentia um aperto no peito, um misto de culpa e dor que obscurecia cada fragmento de alegria. Era como se uma sombra se apoderasse de seu coração, um vazio impossível de preencher. Seria possível, ela se perguntava, que tudo aquilo fosse realmente sua culpa? O pacto com Eros pairava em sua mente como uma sentença condenatória, uma decisão que parecia ter feito com a inocência de uma menina apaixonada, mas que agora se revelava como um pacto sombrio, um preço altíssimo demais para sua liberdade. Ela baixou a cabeça, deixando que uma lágrima solitária caísse e desaparecesse no vento. A cada passo que a aproximava de Silver Moon, a alcateia de Christian, a dúvida e o conflito em seu coração aumentavam. Agora estava livre para viver ao lado dele, mas, ao mesmo tempo, tudo o que havia conhecido se tornara um deserto de dor e desolação. Ao longe, o som de um rio fluía calmamente, e as luzes da aldeia dos lobisomens já podiam ser vistas por entre as árvores. Para ela, esse novo lar representava esperança, mas também um constante lembrete de que sua liberdade vinha com um peso sombrio, e que o custo de tudo isso era uma marca indelével em sua alma.
Enquanto as árvores densas da floresta passavam como borrões ao seu redor, Catarine sussurrou para si mesma, quase como se estivesse tentando convencer o próprio coração. “Foi tudo tão… fácil…” Suas palavras saíram trêmulas, e ela quase temeu que Christian pudesse ouvi-la, embora ele continuasse correndo em sua forma lupina sem diminuir o ritmo. “Terrivelmente… fácil…” O eco de sua própria voz trouxe um arrepio sombrio ao seu peito. Era uma liberdade há muito desejada, mas tê-la em suas mãos agora era dolorosamente simples, como se o destino tivesse lhe dado o que queria apenas para arrancar todo o resto. Ela se lembrava do pacto que havia feito, do acordo com Eros que prometera dar-lhe uma vida ao lado de Christian, longe das imposições de seu pai e da aliança com Wenzel. Não havia sido difícil; um aperto de mãos, uma promessa sussurrada… e a vida de todos ao seu redor parecia ter se desfeito como um castelo de areia. Catarine fechou os olhos, permitindo que uma lágrima escapasse enquanto seu corpo balançava nas costas de Christian. Tinha agora o amor que desejava, mas ao custo das vidas e do sofrimento daqueles que um dia fizeram parte de sua existência. O que mais a atormentava era como, no fundo, sabia que desejara aquilo — e como o universo, terrivelmente irônico, lhe entregara esse desejo de maneira tão cruel e rápida. "Era pra ser assim tão fácil?" A pergunta reverberou em seu peito, carregada de angústia e dúvida.