A lua cheia reinava alta no céu naquela noite, um círculo brilhante cercado por nuvens esparsas, iluminando a pequena vila de Greifswald com uma luz prateada, quase surreal. Dentro da forja, as chamas do forno ardiam intensamente, projetando sombras dançantes nas paredes de pedra. O som constante do martelo de Johann batendo contra o metal ecoava na noite silenciosa, quebrado apenas pelos passos leves de Catarine, que diligentemente ajudava o pai como sempre. Suas mãos estavam sujas de fuligem, mas sua expressão era séria, como a de alguém muito além de sua idade. De repente, o sino da igreja começou a tocar. Um som que os dois já conheciam bem. Catarine parou de trabalhar, os olhos arregalados, enquanto Johann continuou martelando, seu rosto impassível. O sino havia se tornado parte de suas noites. Mais um ataque. Mais mortos. Seria apenas outra noite comum de horror na vila. Mas dessa vez, não era. O padre apareceu à porta da forja, o rosto pálido e a respiração ofegante. Johann largou o martelo e se virou, a tensão em seu corpo perceptível. “Johann,” disse o padre, sua voz baixa e grave, o que já anunciava algo muito pior que o habitual. “Foi na sua cabana...”
O coração de Johann disparou como nunca antes. "Não..." foi tudo o que ele conseguiu murmurar, a expressão do padre confirmando seus piores medos. Sem pensar duas vezes, ele agarrou Catarine nos braços, puxando-a para cima do cavalo com um movimento rápido e desesperado. O ar frio da noite golpeava seus rostos enquanto ele cavalgava a toda velocidade em direção à cabana. Cada galho que passava se tornava um borrão, e o som dos cascos contra o solo parecia se misturar aos batimentos de seu coração, rápidos e pesados. Quando chegaram, o cheiro da destruição os atingiu primeiro. Uma mistura de madeira queimada, sangue e algo pior... algo podre, como a morte. Johann parou o cavalo abruptamente e saltou para o chão, com Catarine ainda agarrada em seu peito. Seus olhos, antes firmes e resolutos, agora estavam tomados pelo pavor. O que ele viu fez seu estômago se revirar e suas pernas fraquejarem. A cabana que ele havia construído com tanto suor estava completamente destruída. As paredes de madeira haviam sido despedaçadas, como se algo enorme e selvagem tivesse atravessado o lugar com uma fúria imparável. O telhado estava em pedaços, as vigas caídas como cadáveres de árvores. Havia marcas de garras por toda parte, profundos cortes nas portas e nos móveis quebrados. O cheiro de sangue era avassalador.
Johann olhou ao redor, cada cômodo agora um cenário de pesadelo. Ele segurava Catarine com força, como se temesse que ela também fosse arrancada dele pela mesma força que havia arruinado seu lar. Cada passo que dava fazia seu peito doer mais. Havia um medo primal em seu coração, um medo que ele mal conseguia controlar. Foi então que ele a viu. No centro do que costumava ser sua sala, em meio aos destroços, estava o corpo de Elisabeth. Ela estava caída de lado, suas roupas rasgadas e encharcadas de sangue. Johann caiu de joelhos, o corpo tremendo, sentindo o mundo desabar ao seu redor. O rosto de Elisabeth, antes tão sereno e forte, agora estava pálido, seus olhos abertos em um olhar vazio, sua boca entreaberta como se estivesse tentando gritar, mas nenhum som saiu. Seu corpo estava dilacerado de maneira horrível. Havia profundos cortes em seus braços e pernas, e suas costelas estavam visivelmente quebradas, como se algo tivesse mordido e rasgado a carne com dentes afiados. O sangue cobria a terra ao redor dela, e os ossos de suas mãos estavam expostos, como se ela tivesse tentado se defender até o último instante. Havia marcas de mordidas em seu pescoço, onde a pele fora arrancada, deixando uma mancha escura e macabra.
“Elisabeth...” Johann sussurrou, sua voz falhando. Ele rastejou até o corpo da esposa, tocando suavemente seu rosto gelado. Uma dor insuportável invadiu seu peito, como se uma lâmina o atravessasse. O desespero era esmagador. Ele apertou os punhos contra o chão, gritando de pura angústia. “Não! NÃO!” Sua voz ecoou pela noite, mas o silêncio em resposta era ensurdecedor. Catarine, nos braços de seu pai, olhava com olhos arregalados e cheios de lágrimas. Ela não compreendia completamente o que estava acontecendo, mas a imagem da mãe ensanguentada e sem vida se gravou profundamente em sua mente. A inocência que ainda restava em seu coração foi brutalmente despedaçada naquele momento. "Mamãe..." ela sussurrou, as lágrimas correndo pelo rosto sujo de fuligem. “Mamãe, por favor, acorde...” Mas Elisabeth não acordaria. E, naquele instante, Catarine entendeu o significado do medo e da perda de uma forma cruel e definitiva. Johann segurou o corpo da esposa, chorando silenciosamente, sua dor transformando-se em uma fúria que queimava dentro dele como as brasas na forja. Ele havia perdido a mulher que amava, e isso o consumia por completo. Seu coração estava em pedaços, mas havia algo mais: uma raiva descomunal, uma sede de vingança. "Esses malditos lobos... Eles vão pagar," rosnou entre os dentes, o olhar perdido na escuridão da noite. Catarine se encolheu nos braços do pai, soluçando, enquanto o vento frio soprava, levando consigo o último resquício de paz que a pequena família já conhecera.
O amanhecer trouxe uma luz cinzenta e fria sobre a vila de Greifswald, como se o céu refletisse a tristeza que havia se abatido sobre seus moradores. Ao longe, o som pesado de pás afundando na terra úmida ressoava no cemitério da igreja. Um grupo de homens, seus rostos sombrios e endurecidos pela vida, cavavam covas rasas lado a lado, preparando-se para enterrar os corpos das vítimas daquela noite de horror. Eram muitos — mais do que qualquer um estava disposto a admitir. A lua cheia havia ceifado vidas mais uma vez, e cada mês que passava, a lista de mortos crescia. Entre os mortos, estava Elisabeth. O enterro era simples, quase apático. Não havia espaço para cerimônias grandiosas ou despedidas prolongadas. A pobreza que assolava a região impunha uma realidade dura: os mortos eram enterrados rapidamente, sem luxo ou adornos. As famílias choravam em silêncio, enquanto a terra era devolvida àqueles que dela vieram. Elisabeth foi colocada em uma cova rasa, envolta em um lençol de linho velho. Ao seu redor, outros corpos também eram sepultados, quase em conjunto, sem distinção. O padre, com seu manto surrado e olhar cansado, recitava as orações de costume, abençoando as almas que agora retornavam ao solo. "Senhor, acolha estas almas em Seu reino, livre-as do sofrimento da carne e conceda-lhes o descanso eterno." Ele levantou a mão e fez o sinal da cruz sobre cada corpo. Sua voz, ainda que cansada, era firme. Havia um peso em suas palavras, um reconhecimento de que as mortes estavam se tornando mais frequentes, mais violentas. Era como se a própria vila estivesse sendo engolida pela escuridão.
Ao redor, os homens mais fortes da vila cochichavam entre si, suas vozes baixas carregadas de tensão. "Isso está fora de controle," murmurou um deles, um homem robusto, com os braços cruzados e o rosto fechado em uma expressão de preocupação. "Os lobos estão ficando mais ousados, atacando cada vez mais perto. Precisamos agir, ou não sobrará ninguém até o próximo inverno." Outro homem assentiu, apertando o punho em torno de uma pá. "Temos que nos preparar, aumentar as patrulhas. Precisamos de mais armas... prata, se for verdade o que andam dizendo." As conversas seguiam, baixas, mas cheias de uma urgência crescente. As palavras "vingança" e "defesa" se entrelaçavam, mas também havia medo. Eles sabiam que estavam lutando contra algo além de sua compreensão. Algo que a prata, talvez, não fosse o suficiente para conter. Enquanto isso, Johann estava ajoelhado à beira do túmulo de Elisabeth, o corpo encolhido, os olhos vazios. Ele não conseguia desviar o olhar do monte de terra que começava a cobrir o corpo de sua esposa. O luto que pesava sobre ele era quase palpável, como se o ar ao seu redor estivesse carregado de desespero. Cada punhado de terra que caía sobre o corpo de Elisabeth parecia bater diretamente em seu coração, esmagando-o ainda mais. Ele não conseguia chorar. Suas lágrimas haviam secado, substituídas por uma raiva insuportável, uma sede de vingança que o corroía por dentro.
"Eu juro..." Johann murmurou, a voz rouca e quebrada. "Esses lobos... esses malditos monstros... vão pagar. Eu vou matar cada um deles." Seu punho se apertou com tanta força que seus dedos ficaram brancos, os nós dos dedos estalando. Havia dor em suas palavras, mas também uma fúria que nascia da perda irreparável que havia sofrido. A seus pés, Catarine agarrava suas pernas com força, os pequenos braços tremendo de tanto chorar. A menina não entendia completamente o que havia acontecido, mas sabia que sua mãe não voltaria. “Mamãe... mamãe... não vá...” Ela soluçava baixinho, enterrando o rosto sujo nas calças do pai. As lágrimas desciam pelo rosto infantil, misturando-se à poeira e fuligem da forja. Cada lágrima era um grito silencioso de dor, um reflexo de sua inocência sendo dilacerada pelo sofrimento. Johann, com os olhos fixos no túmulo de Elisabeth, não sabia como consolar a filha. Sua alma estava partida, e o peso da perda era tão esmagador que ele não conseguia reunir forças para abraçá-la. A única coisa que o mantinha de pé era a promessa que havia feito a si mesmo: vingar a morte da esposa, acabar com a ameaça que assombrava sua família e sua vila. O vento frio varreu o cemitério, levantando as folhas secas que se amontoavam aos pés dos túmulos. As orações do padre terminaram, e o silêncio voltou a reinar, quebrado apenas pelos soluços de Catarine e o som abafado da terra caindo nas covas. Mas o medo persistia, como uma sombra que pairava sobre todos, e os murmúrios entre os homens deixavam claro: algo precisava ser feito.
Nas semanas que se seguiram ao enterro de Elisabeth, Johann tornou-se uma sombra do homem que fora. O brilho em seus olhos havia desaparecido, e o ferreiro robusto que outrora falava com força e determinação, agora era um vulto marcado pela dor e pela raiva. Ele oscilava entre a embriaguez completa e a vigília incansável, todas as noites à caça de lobos. Sua sede de vingança era insaciável, e qualquer lobo que cruzasse seu caminho, fosse uma simples criatura da floresta ou algo mais, era morto sem piedade. Johann não hesitava, e cada vez que empunhava suas armas, o peso da perda o guiava. Para Catarine, que agora tinha apenas seis anos, a realidade era dura e implacável. A casa que antes era seu lar, destruída pelos lobos, deixara de existir, e o único abrigo que restava era a forja. Aquela mesma forja, onde tantas vezes vira o pai trabalhar, agora era onde ambos dormiam, com o calor das brasas e o cheiro constante de metal e carvão impregnando o ar. O pai, muitas vezes exausto e embriagado, desmaiava sobre a bancada de trabalho ou em algum canto, incapaz de lidar com sua própria dor. Nos momentos em que Johann adormecia de exaustão, seu corpo ainda tensionado, as mãos sujas de fuligem e prata, era Catarine quem se encarregava de cuidar dele. Com mãos pequenas e trêmulas, ela cobria o corpo do pai com um manto surrado, protegendo-o do frio da noite. Embora fosse uma criança, ela sabia que agora eram só os dois. E, mesmo que a morte de sua mãe não tivesse amolecido o coração do pai, algo dentro dela ainda a fazia querer cuidar dele. Ela o observava trabalhar durante horas, forjando e refazendo espadas e lanças de prata, como se a prata fosse sua última esperança de vingança.
Mas Johann mudara. Sua dor havia se transformado em algo mais, em uma rigidez cruel que ele descarregava sobre Catarine. A cada dia, sua exigência aumentava. Ele já não via mais uma filha; via uma aprendiz, e não havia espaço para falhas. A pequena garota era obrigada a carregar materiais pesados, a manusear martelos, a aprender a forjar armas perfeitas. Ele não aceitava erros. Se o ferro não tomasse a forma exata que ele queria, se a lâmina não brilhasse como prata líquida, ele a repreendia severamente. E isso não era o pior. Johann, obcecado em eliminar a ameaça dos lobos, decidiu que Catarine também deveria aprender a lutar. “Não me importa se você é uma menina,” ele repetia, com o olhar duro e voz afiada. “Você vai aprender a lutar como um homem. Vai aprender a sobreviver. E, se um dia os lobos vierem, vai matar eles com suas próprias mãos.” Catarine, ainda tão jovem, sentia o peso das palavras do pai como um fardo insuportável. Cada dia era uma batalha para agradá-lo. Ele a obrigava a treinar, a segurar espadas pesadas, a desferir golpes contra sacos de areia como se fossem inimigos. E quando ela não conseguia — quando seu corpo pequeno e frágil falhava sob a pressão — ele a castigava. Com violência física, e também com palavras duras e frias que cortavam tão profundamente quanto qualquer lâmina. “Você é fraca. Não vai sobreviver desse jeito. Se não for forte, os lobos vão te pegar, assim como pegaram sua mãe.”
Catarine chorava, mas escondia suas lágrimas. O pai não aceitava fraqueza. E, mesmo que a dor da morte de Elisabeth ainda latejasse em seu peito, Johann não dava espaço para luto ou conforto. O mundo era cruel, e ele estava decidido a fazer com que a filha estivesse pronta para enfrentá-lo. Nas noites de lua cheia, o sino da igreja continuava a ecoar pela vila, e a cada toque, o medo nascia novamente no coração dos habitantes. Os ataques não cessavam, e mais corpos apareciam. Mulheres, crianças, homens. As vítimas aumentavam, e Johann mergulhava cada vez mais fundo em sua missão de vingança. Para ele, a única coisa que restava era a luta — e ele arrastava Catarine junto consigo, ignorando sua idade, seu gênero, e até mesmo a dor silenciosa que ela carregava. Agora, ambos viviam como sombras, sobrevivendo no calor da forja e no frio das noites que seguiam os ataques. E a cada golpe que Catarine desferia nas armas, a cada tarefa que ela cumpria sob os olhos vigilantes do pai, uma parte de sua infância se esvaía.
Era mais um dia exaustivo na forja, com o calor sufocante e o som constante de metal se chocando contra metal. O corpo de Catarine, agora com sete anos, já não era tão pequeno, mas ainda era frágil demais para suportar o peso das expectativas do pai. Johann observava cada movimento com olhos de águia, e qualquer erro seria notado. Catarine segurava a espada com as mãos trêmulas, tentando imitar os golpes que ele havia lhe ensinado, mas seu corpo estava cansado, seus músculos doíam e a lâmina parecia mais pesada a cada segundo. Ela desferiu mais um golpe, tentando manter o equilíbrio, mas seus pés deslizaram no chão sujo de carvão. Seu corpo desequilibrado fez com que a espada caísse de suas mãos, o metal pesado atingindo o chão com um estrondo ensurdecedor. Johann, que já estava irritado, explodiu de fúria. Seus olhos se estreitaram, e sua boca se torceu em um esgar de desprezo. Ele caminhou até ela com passos firmes, as botas ecoando no chão de pedra da forja. "Você é uma desgraça, Catarine!" gritou ele, sua voz soando como um trovão. "Se não aprender a lutar, vai morrer igual sua mãe. É isso que você quer?!"
Catarine, apavorada, caiu de joelhos, com lágrimas escorrendo pelo rosto sujo de fuligem. Seus pequenos ombros tremiam de medo, e ela mal conseguia levantar os olhos para encarar o pai. "Não, papai, por favor... Não me bata... Eu sinto muito..." As palavras saíam entre soluços, sua voz quase inaudível. Johann, porém, não se comoveu. A frustração e a dor que ele carregava desde a morte de Elisabeth o consumiam, e sua raiva extravasava na única pessoa que restava. "Não, Catarine," ele respondeu friamente. "Hoje, você não vai receber um tapa. Sua punição será outra." Ele pegou a espada que ela havia deixado cair e apontou para fora da forja, em direção às montanhas próximas, onde a terra escondia os valiosos veios de prata que Johann tanto cobiçava. "Quero que pegue a picareta e vá minerar. Só volte quando tiver prata o suficiente para a semana inteira!" Sua voz era implacável, e ele não deixou espaço para discussão.
Catarine, sem forças para protestar, levantou-se lentamente. Seus braços doíam, as pernas estavam pesadas, mas ela sabia que desobedecer ao pai só traria mais punições. Limpando as lágrimas com a manga da túnica suja, ela pegou a picareta e saiu em direção às montanhas. O sol já estava se pondo, e as sombras das árvores se alongavam, criando um cenário ainda mais sombrio. O peso da picareta nas mãos de Catarine parecia esmagador, mas ela continuou andando, os soluços abafados em seu peito. Sabia que aquele não seria o último castigo, que ainda mais exigências viriam, mas tudo o que ela podia fazer era continuar, na esperança de que, algum dia, seu pai voltasse a amá-la como antes. Enquanto ela desaparecia nas colinas em busca da prata, Johann ficou para trás, na forja, o olhar perdido em suas próprias memórias e frustrações, incapaz de ver o quanto sua filha estava sendo destruída pelo peso de sua vingança.
Catarine caminhou sozinha pela trilha estreita e rochosa que levava às montanhas, suas mãos pequenas segurando a pesada picareta com dificuldade. A caminhada era longa, e o peso da tarefa que seu pai lhe impôs parecia crescer a cada passo. O céu começou a se tingir de laranja à medida que o sol se punha, mas Catarine continuou determinada, como sempre. Chegando à base da montanha, ela escolheu um ponto onde a rocha parecia menos densa, lembrando-se das lições que Johann lhe ensinara sobre como encontrar prata. O som seco da picareta atingindo a pedra ecoava ao seu redor, e a menina se concentrava em seu trabalho, golpe após golpe, separando pedaços de minério com todo o cuidado possível. Mas suas mãos, ainda tão pequenas e delicadas, não estavam acostumadas com tanto esforço. Logo, pequenos cortes começaram a surgir em seus dedos. O metal da picareta rasgava sua pele a cada golpe. O sangue, vermelho e brilhante, escorria pelas mãos dela, misturando-se à poeira e ao suor. Com lágrimas nos olhos, Catarine pegou um pedaço de pano velho que guardava no bolso e enrolou nas mãos, tentando estancar o sangue. A dor era aguda, mas ela não podia parar. Não podia falhar novamente com seu pai. O tempo passava, e o céu escurecia rapidamente, até que a escuridão da noite caiu por completo. Mesmo assim, Catarine continuava. Cada movimento parecia um esforço sobre-humano, seus braços pesados e cansados, mas ela não se permitiria descansar. Apenas quando a exaustão finalmente a dominou, e seus braços mal conseguiam levantar a picareta, ela se permitiu parar. Largou a ferramenta no chão e caiu de joelhos, sentindo as lágrimas quentes descerem por suas bochechas sujas.
"Eu sinto muito, mãe..." murmurou ela para si mesma, as mãos latejando de dor, a mente exausta. "Eu só queria agradar ele..." Foi então que ela ouviu o primeiro som que fez seu coração parar por um segundo: um uivo. Distante, mas inconfundível. Seus olhos se arregalaram de medo. "Lobos..." ela sussurrou, a voz mal saindo de seus lábios. Ela sabia o que aquilo significava. Os ataques estavam se tornando cada vez mais frequentes.
Desesperada, Catarine enfiou a mão no bolso de sua túnica e puxou uma adaga de prata, a única proteção que tinha. A lâmina brilhava fracamente sob a luz da lua, mas ela não se sentia segura. Os uivos começaram a se repetir, mais próximos agora. A menina olhou ao redor, tentando enxergar através da vegetação densa que cercava o local, mas as sombras das árvores dificultavam sua visão. Tudo parecia opressivo e sombrio. Com mãos trêmulas, Catarine rapidamente amarrou o minério de prata que havia extraído em um pedaço de pano improvisado. Juntou tudo o que podia, incluindo a picareta, e jogou sobre os ombros magros, pronta para voltar correndo para a vila. Seu coração batia acelerado, e cada passo parecia ecoar ainda mais alto em seus ouvidos. Ela corria o mais rápido que podia, o som das folhas secas estalando sob seus pés, enquanto os uivos continuavam, agora tão próximos que ela podia sentir o arrepio percorrer sua espinha. O vento frio da noite cortava sua pele, e a escuridão ao seu redor parecia engolir tudo.
"Estou com medo..." ela murmurava para si mesma, apertando a adaga com força, como se aquilo fosse suficiente para afastar o perigo. As sombras pareciam se mover, e o som dos lobos vinha de todos os lados. Seus passos rápidos se transformaram em corrida. A menina se movia em meio à vegetação, as árvores passando como vultos ao seu redor, enquanto ela tentava desesperadamente alcançar a segurança da cidade. O uivo mais alto ecoou pela montanha, mais perto do que nunca, e Catarine sentiu seu coração parar por um segundo. Ela sabia que estava sendo seguida. O som dos passos pesados atrás de Catarine ressoava entre as árvores, aproximando-se rapidamente. O coração dela parecia querer saltar do peito, cada batida um lembrete desesperado da fragilidade de sua vida. Ela correu o mais rápido que pôde, com os olhos cheios de lágrimas que borravam sua visão. O medo tomava conta de seu corpo pequeno e cansado, enquanto seus pés tropeçavam nas raízes e pedras do caminho. "Não... Eu vou morrer..." pensou, ofegante, tentando conter o pânico. A respiração acelerada e os soluços presos na garganta faziam seu peito doer. O rosnado profundo, vindo de trás, ecoava cada vez mais alto, um som selvagem que a fazia correr ainda mais, seus pequenos pés batendo no chão com força. Mas, por mais que corresse, não era rápida o suficiente. E então, aconteceu. Um lobo gigantesco, de pelagem negra como a própria noite e olhos azuis brilhantes, saltou à frente, em um movimento veloz e mortal. Suas garras afiadas cortaram a perna de Catarine com um só golpe, e a dor intensa fez a menina gritar, desequilibrando-se e caindo no chão. Ela rolou entre as folhas e galhos secos, espalhando o minério de prata e a picareta por toda parte.
Catarine tentou se levantar, sua perna latejando de dor, mas o corte era profundo demais. Ela mal conseguia mover-se. Seu olhar desesperado se fixou no lobo, e o pavor tomou conta de seu corpo quando percebeu o que estava diante dela. A criatura não era apenas um lobo comum. Era algo muito maior, algo místico e terrível. O lobisomem, com músculos extraordinários e pelagem densa que parecia brilhar à luz da lua, avançava lentamente em sua direção. Cada movimento era uma ameaça. Suas patas enormes afundavam no solo da floresta, e seus olhos, de um azul gelado, refletiam uma fome selvagem e instintiva. Catarine recuou, se arrastando sobre o chão áspero, o medo a sufocando. Ela puxou a adaga de prata com mãos trêmulas, segurando-a diante de si como um último esforço de defesa, enquanto lágrimas quentes escorriam por suas bochechas sujas. "Fique longe de mim..." ela choramingou, a voz falhando, quase um sussurro de puro desespero. O lobisomem rosnou, um som grave e gutural que ressoou no ar da noite, carregado de ameaça. Sua saliva escorria de suas presas enormes e afiadas, brilhando sob a luz fraca da lua. O cheiro de suor e sangue enchia o ar, e Catarine podia sentir o peso daquele olhar fixo sobre ela, como se estivesse sendo caçada. A criatura avançava, lenta e deliberadamente, como se saboreasse cada momento de terror que ela sentia. Catarine tentou se afastar mais, rastejando pelo chão com o coração disparado, mas estava machucada demais. Suas mãos, ainda cobertas de sangue dos cortes que havia feito enquanto minerava, escorregavam nas folhas úmidas. "Por favor..." ela sussurrou, quase sem fôlego, sua voz entrecortada por soluços. O lobisomem se aproximava mais e mais, até que estava tão perto que ela podia sentir o calor de sua respiração, o rosnado profundo reverberando em seus ouvidos. Catarine tremia, suas mãos pequenas segurando a adaga com força, mas o pavor a dominava completamente. "Eu vou morrer... eu vou morrer...", repetia para si mesma, seus olhos apertados enquanto sentia a saliva grossa e quente do lobisomem pingar em sua perna ferida. O cheiro era insuportável, e ela estava paralisada pelo medo, esperando o golpe final. Mas então, o silêncio da noite foi rompido por outro uivo, alto e profundo. O lobisomem negro, que estava prestes a atacá-la, parou bruscamente, suas orelhas se erguendo ao som. Um segundo lobo apareceu, surgindo das sombras como um espectro — sua pelagem completamente branca, brilhando à luz da lua, e seus olhos vermelhos como brasas ardentes. Sua presença era tão imponente quanto a do lobo negro, se não mais.
Antes que Catarine pudesse processar o que estava acontecendo, o lobo branco jogou seu peso contra o negro, afastando-o dela com um golpe poderoso. O impacto entre os dois gigantes fez a terra tremer, e a menina observava em choque, seu coração ainda acelerado, enquanto as duas criaturas ficavam frente a frente, o ar carregado de tensão. "Basta, Demétrio." O lobo branco rosnou, sua voz grave e carregada de desaprovação. Era uma voz diferente, quase humana, que cortava o ar como uma lâmina afiada. O lobisomem de pelagem negra, Demétrio, soltou uma risada gutural, seu olhar se voltando para o lobo branco com diversão cruel. "Não atrapalhe meu lanche, Christian," ele disse, as palavras saindo com um tom sádico. "Essa criança está implorando para ser devorada, andando sozinha pelas minhas terras em uma noite de lua cheia como essa." Catarine, ainda em choque e com a perna latejando de dor, mal conseguia acreditar no que estava acontecendo. Esses... esses lobos estavam falando? Ela apertou a adaga em sua mão, tentando se afastar, mas a dor em sua perna a impedia de se mover muito. Christian, o lobo branco, soltou um rosnado feroz, seus olhos vermelhos brilhando com intensidade. "Não vou deixar você matar mais nenhum humano, Demétrio. Pare agora mesmo." Sua voz era firme, carregada de autoridade, como se não estivesse dando uma opção ao outro lobisomem.
Demétrio deu um passo à frente, suas garras cavando o solo enquanto ele encarava Christian com um sorriso predatório. "Você perdeu o instinto, Christian. Esqueceu-se do que somos?" Ele lambeu os lábios, seus olhos azuis gélidos brilhando de excitação. "Somos predadores. E essa garota... é apenas mais uma presa." Mas Christian não recuou. Ele avançou lentamente, bloqueando a visão de Demétrio sobre Catarine, como se estivesse disposto a protegê-la a qualquer custo. "Isso não é uma caçada. Ela é apenas uma criança, e você sabe disso. Não somos monstros, Demétrio." A tensão entre os dois lobisomens crescia, e Catarine, mesmo com a dor latejando por todo o corpo, conseguia sentir a mudança no ar. Não era mais apenas um confronto físico; era algo muito maior, uma disputa de ideais, uma luta por algo mais profundo que ela ainda não compreendia. Com as lágrimas escorrendo por seu rosto sujo, Catarine sussurrou, quase inaudível: "Por favor...", implorando por sua vida, sem saber se alguém realmente a escutaria. Demétrio rosnou, seu peito inflando com fúria. "Não desafie minhas ordens, Christian, eu sou a porra do alfa!" Seu olhar gélido perfurava o lobo branco, mas Christian não cedeu. "Basta," ele replicou com firmeza, sua voz grave ressoando entre as árvores. "Ficar devorando humanos não é o caminho, não pode ser o caminho!"
Demétrio deu um passo ameaçador à frente, seus olhos brilhando com um ódio profundo. "Quem você pensa que é para falar o que é certo ou não? Saia da minha frente, ou eu vou rasgar você no lugar dessa criança!" Christian permaneceu imóvel, sua postura inabalável. "Não vou sair, Demétrio," ele rosnou de volta. O lobo negro soltou um grunhido irritado, seus músculos tensionando enquanto ele encarava Christian com desprezo. "É por isso que sua pelagem está tão branca... você é fraco, Christian. Há quanto tempo não come ou bebe carne humana?" A voz de Demétrio era repleta de desdém. Christian olhou fixamente para o chão por um breve momento antes de responder: "Eu não preciso mais disso, Demétrio. Eu aprendi a tirar minha energia da natureza!" Demétrio gargalhou, uma risada cruel e sarcástica que ecoou pela floresta. "Natureza, Christian? Isso é patético. Um desperdício do poder que eu te dei!" Christian, com os olhos vermelhos brilhando de raiva, retrucou: "Não vou deixar você machucar nenhum humano. Não enquanto eu estiver aqui." Antes que a tensão entre eles explodisse em violência, o som distante dos sinos da igreja soou, seu toque ressoando pela floresta e chegando aos ouvidos dos dois lobisomens. Christian congelou, seu olhar rapidamente se voltando para a direção do vilarejo. Um pânico tomou conta dele. "Merda..." ele murmurou, já entendendo o que estava acontecendo. A alcateia de Demétrio estava atacando a aldeia novamente.
Demétrio, percebendo o medo de Christian, sorriu com satisfação, uma expressão sombria e satisfeita em seu rosto lupino. "Parece que minha alcateia está se divertindo," ele disse com uma voz áspera antes de disparar em direção ao vilarejo. Christian soltou um rosnado frustrado, raiva e impotência se misturando em sua expressão. "Porra, mas que droga..." Ele ficou por um momento parado, claramente dividido entre seguir Demétrio ou cuidar da garota ferida ao seu lado. Enquanto isso, Catarine, tentando com todas as forças se levantar, sentiu uma dor lancinante em sua perna e caiu novamente, sua mão manchada de sangue. O desespero tomou conta dela, mas mesmo assim, ela lutava para se defender. Ao ver Christian se aproximando, ela num gesto desesperado apontou a adaga de prata para ele, a lâmina tremendo em sua pequena mão. "Fica longe de mim, seu monstro!" ela gritou, sua voz cheia de medo e raiva. Christian parou no mesmo instante, seus olhos vermelhos fixos nela. Por um breve momento, ele apenas a observou, depois soltou uma risada baixa, quase divertida. "Monstro?" ele repetiu com sarcasmo. "É assim que você me agradece por salvar sua vida, pirralha?" Catarine, ainda em pânico, manteve a adaga apontada para ele, seus olhos cheios de lágrimas. "Fique longe!" O lobo branco suspirou, balançando a cabeça levemente. "Se eu quisesse te matar, você já estaria morta, garota. Não sou como Demétrio." Ele deu mais um passo à frente, e Catarine se encolheu ainda mais, sem saber o que fazer.
Christian parou, olhou para a ferida em sua perna, e disse com voz grave: "Você está machucada. Se não fizer algo sobre isso logo, vai morrer de qualquer jeito." Apesar de seu medo, Catarine percebeu a verdade nas palavras dele. Ela não confiava em Christian, mas sabia que precisava de ajuda. A dor em sua perna era insuportável, e o sangue não parava de escorrer. Christian rosnou suavemente, mais para si mesmo do que para ela. "Eu posso ajudar você, se me deixar." Catarine hesitou, ainda segurando a adaga com força. Ela estava entre o medo e a necessidade, entre confiar naquele lobo misterioso ou enfrentar a morte sozinha. Catarine, ainda tremendo, olhou nos olhos brilhantes de Christian, tentando encontrar alguma evidência de que ele não era a fera que parecia. O lobo branco estava calmo, embora houvesse uma intensidade em seu olhar que ela não conseguia ignorar. A dor na perna pulsava, e o medo a paralisava, mas a ideia de morrer ali, sozinha, a motivou a considerar suas opções. "O que você vai fazer?" ela perguntou, sua voz um sussurro trêmulo. Christian inclinou a cabeça, como se estivesse ponderando a pergunta. "Primeiro, você precisa parar de sangrar. Aquele ferimento pode se tornar mais perigoso do que você imagina." Ele fez uma pausa, olhando ao redor. "Se você me deixar, eu posso cuidar disso." Catarine hesitou. O instinto de sobrevivência estava lutando contra o medo que sentia dele. "E se você me trair?" ela murmurou.
Christian soltou um pequeno rosnado, uma mistura de frustração e compreensão. "Se quisesse te trair, já teria feito isso. Acredite em mim, não estou aqui para te machucar." Ele então deu um passo adiante, mantendo uma distância segura, mas parecendo mais acessível. "Eu não quero morrer," ela finalmente disse, sua voz carregada de desespero. "Então me deixe ajudar," ele respondeu, sua voz mais suave agora. "Se você confiar em mim, eu posso parar o sangue e ajudar você a voltar para casa." Ela olhou para a adaga em sua mão e lentamente a baixou, o peso de sua decisão quase a sufocando. "Certo," ela disse com um fio de voz. "Mas se você tentar algo, eu..." "Eu sei," Christian interrompeu, movendo-se rapidamente em direção a ela. "Só fique calma." Christian observou Catarine com cuidado, percebendo que ela finalmente abaixava a adaga de prata, suas mãos trêmulas refletindo o pavor e o cansaço. O lobo branco deu um passo adiante, os olhos vermelhos ainda fixos na pequena figura humana diante dele. Lentamente, sua forma começou a mudar. O pelo branco, antes espesso e imponente, começou a se retrair, enquanto o corpo musculoso e lupino encolhia, transformando-se gradualmente. Ossos estalavam, mudando de posição, e o som de tendões se ajustando era quase audível na quietude da noite. O que restava agora não era mais a criatura gigante e selvagem, mas um homem.
À luz fraca da lua cheia, Christian se ergueu diante de Catarine, completamente humano. Seu corpo era escultural, esculpido como o de um guerreiro. Os músculos sob sua pele clara eram bem definidos, mas não de maneira exagerada, denotando força e agilidade em perfeita harmonia. O cabelo, longo e liso, era tão escuro quanto a noite e caía até a sua cintura, movendo-se levemente com a brisa da montanha. Seus olhos, antes vermelhos e selvagens, agora eram de um preto profundo, com um olhar frio e distante, mas ainda com uma aura de autoridade. Christian vestia uma túnica medieval negra, simples, mas elegante, que parecia pertencer a alguém de status. Ao redor de seus braços e pulsos, ele usava diversos acessórios de prata, que refletiam discretamente a luz fraca da lua. Várias tatuagens intricadas cobriam partes de seu corpo, desenhos que pareciam antigos, com símbolos que indicavam sua ligação com o sobrenatural, com a alcateia, e talvez até com rituais antigos. Cada movimento que ele fazia era firme e controlado, como se cada passo fosse calculado.
Catarine olhou para ele com os olhos arregalados, surpresa com a transição de besta para homem. O medo ainda a consumia, mas a visão de Christian em sua forma humana a deixou ainda mais confusa. A aparência dele, embora imponente, não refletia o monstro que ela esperava. Na verdade, havia algo quase tranquilizador em sua presença, embora seus olhos ainda traíssem uma frieza que a mantinha em alerta. Christian se ajoelhou ao lado dela, seus movimentos suaves, mas precisos. "Deixe-me ver sua perna," ele disse, com uma voz agora mais calma e serena, mas ainda carregada de autoridade. Catarine hesitou, ainda segurando o pano ensanguentado que cobria o ferimento. "Você é um... um lobisomem," murmurou, enquanto afastava o olhar, temendo que qualquer contato visual prolongado pudesse irritá-lo. "Sim," ele respondeu simplesmente, sem nenhum traço de orgulho ou vergonha. "Mas não sou o inimigo que você pensa." Ele começou a remover o pano com cuidado, inspecionando o corte profundo na perna da garota. O sangue ainda escorria, e ela soltou um leve gemido de dor. "Fique quieta," ele disse, sua voz quase gentil agora, enquanto amarrava um pedaço de tecido limpo ao redor do ferimento, firmando-o para estancar o sangramento. "Isso vai segurar até você estar em um lugar seguro." Enquanto ele trabalhava, suas mãos, embora fortes, se moviam com surpreendente delicadeza.
Catarine, ainda em estado de choque, observava tudo com uma mistura de medo e fascinação. Ela não sabia o que pensar desse homem que, momentos atrás, era uma criatura assustadora. Agora, ele parecia mais humano do que a maioria dos homens que ela conhecia — mas, ao mesmo tempo, ainda carregava o peso de algo muito além de sua compreensão. O corte na perna da garota era profundo e havia um feixe de sangue que escorria, tingindo a grama ao redor. "Você é mais forte do que pensa," ele disse, olhando em seus olhos enquanto trabalhava. "Muitas crianças teriam desmaiado com uma dor assim." Catarine se concentrou na dor, tentando ignorar a presença do homem que, de maneira incomum, a estava ajudando. "Meu pai... ele... ele não vai ficar feliz quando eu voltar com esse ferimento," ela murmurou, lembrando-se da rigidez e da frieza de Johann.
"O que aconteceu com seu pai?" Christian perguntou, parando por um instante, mas Catarine não estava disposta a compartilhar detalhes de sua vida pessoal com ele. Ela apenas balançou a cabeça, não querendo reviver as memórias de dor e raiva. "Você não precisa falar," Christian disse, finalizando os primeiros socorros. "Mas você precisa ser cuidadosa. Os humanos são rápidos em se deixar levar pelo orgulho, dor e pelo ódio. Isso pode fazer vocês se machucarem." O silêncio se instalou entre eles enquanto Catarine observava Christian terminar o curativo, a tensão de sua situação ainda pairando no ar. Com a perna envolta em tecido improvisado, ela sentiu um pouco de alívio, embora o medo da noite ainda a consumisse. "Você não é como os outros," ela disse lentamente, hesitante, mas com um toque de curiosidade. Christian olhou para ela, os olhos negros brilhando com uma sabedoria antiga. "Nem todos os lobos são monstros, garotinha. Nem todos são Demétrio." Ela respirou fundo, as palavras dele ecoando em sua mente. "Por que você se importa?" Christian sorriu, um gesto inesperado em um rosto que parecia tão feroz. "Porque eu já estive no seu lugar. Eu sei o que é sentir medo, dor e solidão." A declaração o tornou um pouco mais humano aos olhos de Catarine. Ela sentiu que havia algo mais profundo por trás de sua aparência feroz.
"Mas e as pessoas da aldeia? E seu alfa?" ela perguntou. "O que você vai fazer sobre eles?" Christian franziu a testa. "Eu não posso salvar todos, mas posso fazer a diferença. Se eu não agir, mais humanos vão morrer. Precisamos mudar isso." A conversa ficou pesada e Catarine começou a perceber que havia um mundo além do que conhecia. O lobo branco não era apenas uma criatura, mas alguém que lutava contra a própria natureza. "E você me ajudaria a voltar para casa?" ela questionou, a esperança começando a crescer dentro dela. "Sim," Christian afirmou, levantando-se e estendendo a mão para ajudá-la a se levantar. "Mas primeiro, você precisa se manter em segurança. A noite ainda é jovem e Demétrio não vai parar." Catarine hesitou, mas decidiu confiar nele. Com um último olhar para a floresta escura, ela pegou a mão de Christian e se levantou, sentindo a dor pulsar em sua perna, mas determinada a não desistir. "Vamos," Christian disse, guiando-a por entre as árvores. "Juntos, podemos fazer isso." Conforme avançavam pela escuridão, Catarine começou a perceber que sua vida estava prestes a mudar de maneiras que ela nunca poderia imaginar. O caminho à frente era perigoso, mas havia algo mais valioso do que a sobrevivência: a chance de lutar por um futuro, um futuro que poderia ser diferente do que ela conhecia.
Catarine caminhava com dificuldade, cada passo uma luta contra a dor que irradiava de sua perna ferida. Ela mancava, e suas mãos pequenas se agarravam a qualquer apoio que encontrava, fossem galhos ou pedras à beira do caminho. Atrás dela, Christian a seguia de perto, observando atentamente. Ele havia notado, com um olhar rápido, as várias cicatrizes que marcavam o corpo da jovem garota. Não eram cicatrizes comuns de infância, mas marcas de alguém que já havia enfrentado muito mais do que deveria, para sua idade. Ela carregava uma determinação incomum para alguém tão jovem. Mesmo em sua fragilidade e medo, havia uma força que resplandecia em seus olhos, uma vontade inabalável de sobreviver e lutar. Christian, apesar de sua natureza reservada, não pôde deixar de sentir uma certa admiração por aquela jovem. "Meu nome é Christian," ele quebrou o silêncio, sua voz educada, mas firme. "Christian Sastre." Catarine, que até então evitava olhar diretamente para ele, virou-se para encará-lo, seus olhos ainda cheios de desconfiança. "Sou Catarine Schmied," ela respondeu, sua voz dura, mas fraca devido ao cansaço. Ela parou de andar por um momento, a dor aguda em sua perna a forçando a respirar fundo para suportá-la.
Christian suspirou e, percebendo a dificuldade dela, deu mais um passo à frente, oferecendo ajuda. "Nunca vamos chegar à vila nesse ritmo," disse ele, a voz carregada de paciência, mas também de determinação. "Vem, eu carrego você." Ele se inclinou levemente, preparando-se para pegá-la no colo, mas antes que pudesse fazer qualquer movimento, Catarine recuou, quase tropeçando de novo, os olhos ardendo com uma mistura de raiva e dor. "Por que eu deveria confiar em você, lobo?" Ela cuspiu a palavra como se fosse uma maldição. "Sabia que a sua matilha devorou minha mãe?" Christian parou de se aproximar, seus olhos escuros encontrando o olhar furioso dela. A raiva de Catarine era uma dor crua, profunda, que transbordava em cada palavra. Ele a observou por um momento, silencioso, sentindo o peso do que ela disse. Ele conhecia o legado sombrio de sua matilha, especialmente o de Demétrio, e a devastação que eles haviam causado. "Eu sei," ele respondeu, com a voz pesada. "E eu lamento profundamente por isso." Catarine o olhava com olhos estreitos, como se quisesse perfurá-lo com aquele olhar. Sua raiva era compreensível, justificada. "Lamento não traz minha mãe de volta," ela sussurrou, sua voz quebrando um pouco no final. "Vocês tiraram tudo de mim."
Christian assentiu, sem desviar o olhar. "Eu sei que o que aconteceu é imperdoável. Mas não sou como eles, Catarine. Eu não escolhi esse caminho de destruição. E se eu pudesse mudar as coisas, eu mudaria." A jovem permaneceu em silêncio por alguns segundos, processando suas palavras. O peso da dor e da desconfiança ainda estava lá, mas havia uma pequena fresta de hesitação em seu olhar. Mesmo que fosse mínima, era o suficiente para que Christian sentisse que ela estava, pelo menos, considerando suas palavras. "Não vou pedir que confie em mim agora," ele disse suavemente, dando um passo para trás, respeitando o espaço dela. "Mas, por enquanto, deixe-me ajudar você a voltar para a vila. Essa é a única coisa que posso fazer por você agora." Catarine olhou para ele, ainda relutante, mas a dor e o cansaço estavam começando a sobrepujar sua resistência. Ela sabia que, sozinha, não conseguiria chegar à vila antes que algo pior acontecesse. Com uma expressão rígida e ainda carregada de mágoa, ela finalmente assentiu com a cabeça. "Mas isso não significa que confio em você," ela murmurou, sua voz vacilando entre a dor e a raiva. Christian não respondeu, apenas se aproximou lentamente, e desta vez, ela não recuou quando ele a pegou com cuidado nos braços. O toque dele era firme, mas surpreendentemente suave, e ele a levantou como se ela não pesasse nada. Catarine, mesmo em seu sofrimento, manteve a adaga de prata firmemente em sua mão, pronta para reagir a qualquer sinal de traição. Ela ainda não sabia o que pensar daquele lobo misterioso, mas uma coisa era certa: sua jornada ao lado dele estava apenas começando.