Havia manchas nas paredes próximas aos quatro anjos silenciosos, agora solitários; assim como naquelas que cercavam Heráclio, levado por Miriam a uma terrível profundidade.
Ali, mostrou surpresa ao ver, atrás de grades, um homem idoso em batina vermelha, acorrentado, com a cabeça baixa e os cabelos brancos desgrenhados jogados sobre a fronte. Ao levantar o olhar, revelou um rosto
barbado, repleto de cicatrizes e com uma expressão animalizada.
– Mas é um padre vermelho! O que fizeram com ele?
– Apenas o necessário para que nos revelasse algumas verdades. Não pense que o torturamos; em um primeiro momento, nos limitamos a deixá-lo à mercê dos
espíritos que ele mesmo convocou para a sua proteção quando o capturamos, e que depois de vencidos se voltaram contra seu evocador, culpando a fraqueza interna dele pela força que não puderam
demonstrar. Então fomos nós que passamos a protegê-lo.
– Como vou acreditar em vocês? Posso não acreditar em uma única palavra do que você vai dizer, muito menos no que talvez ele seja forçado a falar.
– Você é um cruzado, não é? Heráclio, se não me engano. – O sacerdote humilhado se pronunciou.
– Como sabe o meu nome? Alguma bruxaria? Não me lembro de ter conhecido o senhor. Outra coisa: – Voltou-se para Miriam. – E se for um falso padre, só um velho
qualquer usando uma batina? Tudo talvez não passe de alguma artimanha sua.
– Olhe para mim, não para ela. Nos vimos poucas vezes, você não deve se lembrar porque foi de passagem pelos corredores do Palácio de Latrão. Mas eu
me lembro, e o padre Honorius me falou de você. O meu nome é Caio.
– Padre Caio… Acho que agora estou me lembrando. Mas o senhor não usava barba.
– Barbas crescem nos homens, isso é natural, não é? Ah, me esqueci que você não é totalmente humano.
– Cristo era divino e humano, ou não?
– Aí que está o problema. Em outros tempos, estaria rindo da sua situação! Mas não há do que rir, a situação é séria
demais para isso. Séria e triste, eu diria. Cometi muitos pecados no passado, agora estou pagando por isso, e ainda terei muito a pagar. Espero que Deus me dê algumas anistias! Espero que compreenda que me arrependi.
– Como vou saber se não está sendo induzido por ela?
– Você confiou nela a ponto de vir até aqui, não confiou?
– Ela me pareceu confiável. Teve a oportunidade de me matar e não o fez. Mas não sou idiota nem ingênuo. Sei que pode estar me usando para ganhar aliados contra
a Igreja.
– Você é um cruzado. Pode ler e sentir forças e energias espirituais em algum grau. É, portanto, capaz de discernir discursos magicamente induzidos de discursos
sinceros – interveio a maga.
– Confesso que sou meio bronco nisso. Não sou Cavalcanti ou Raja. Eles sim são bons nesse aspecto.
– Não se subestime. Olhe nos olhos desse homem e tente perceber se ele mente.
– Não sei nem se uma visão que tive há anos, depois da minha vida ser salva, foi real ou fruto da minha imaginação, ou ainda indução de
algum demônio. Como vou saber se ele está sendo induzido, se é um mentiroso ou se fala a verdade?
– Mas você era um cruzado na época em que teve essa visão?
– Ainda não, só que não acho que mudei tanto assim. Ou não estaria buscando respostas para aquilo até hoje. Há horas em que isso cansa.
– Se ela fosse a bruxa que pensávamos que elas fossem, já teria me matado, como disse em relação à sua pessoa. Inclusive me salvou dos espíritos
que um dia foram meus aliados. – O padre confirmou o que Miriam dissera. – Quando eu disse que revelaria toda a verdade se me protegessem deles, elas me
protegeram.
– Espíritos! Está querendo me confirmar que o senhor é alguma espécie de mago?
– Não só eu como todos os padres vermelhos. Irmãos Maiores e Menores.
– Começamos a estudar mais atentamente os cruzados depois que Gabriela me relatou ter sentido uma energia maligna em volta de um deles. Que não era necessariamente um homem
cruel. – Miriam se antecipou à fala do ex-pirata. – E quem melhor do que um padre da Ordem do Graal para nos revelar algo? Por isso, seguimos alguns deles e por fim capturamos o padre Caio. Ou melhor, eu
o capturei durante minha estadia em Florença.
– Você não imagina o trabalho que ela teve... mas eu tive ainda mais. – O sacerdote vermelho abriu um sorriso de orgulho ferido. – Ela foi até a catedral,
onde eu estava hospedado, em plena madrugada. E eu convoquei todos os meus ajudantes! Ajudantes espirituais, sejamos claros. Ainda assim, não consegui pará-la.
– Estou cansado de suspense. Digam de uma vez o que têm a me dizer. Só queria antes perguntar uma coisa: por que é mantido preso se já não é uma
ameaça? Que espécie de proteção é essa?
– Para elas não sou mais uma ameaça, de fato. Mas sou uma ameaça para mim mesmo. Estas são correntes imantadas magicamente, assim como esta cela. Se colocar
os pés para fora dela, as correntes ainda vão me proteger como uma espécie de armadura, mas não vou aguentar por mais de uma hora os ataques espirituais que vou sofrer. Já suportei demais,
tanto que envelheci acho que vinte anos em muito menos tempo. Se aquelas criaturas me agredissem outra vez, envelheceria outros vinte e então o meu tempo na Terra estaria esgotado. Talvez não se lembre muito
de mim por isso. Quando se lida com o Inferno, com o Abismo, não há perdão.
– Mas que encruzilhada...
– Se você tivesse uma visão espiritual aguda, bem desenvolvida, enxergaria alguns monstros em volta desta cela. Sorte nossa que não estão materializados. Por
outro lado, isso é ruim porque se movem e se ocultam em um nível de extrema profundidade nas trevas, próximo do Abismo, que mesmo as bruxas não alcançam, e portanto elas não podem
me libertar. Ainda que os afastassem temporariamente, em um momento de sono ou distração eu seria feito em pedaços.
– Só estou começando a sentir o ambiente em volta muito denso e pesado. Está me dando um embrulho no estômago também...
– São eles. Para esses seres, somos todos apetitosos pedaços de carne.
– Já lidei com demônios. Mas por que você não fica sem as correntes dentro da cela?
– Elas complementam a proteção. Se retirá-las, a imantação do ambiente pode não funcionar. Como acabei de dizer, são minha armadura.
– E o que tem a me revelar além do seu arrependimento?
– Que os cruzados não adquirem seus poderes e capacidades excepcionais graças ao sangue de Cristo. O que os padres vermelhos levam consigo não tem nada que ver com
o sangue de Cristo.
– Quer dizer que o Santo Cálice é uma farsa?
– Esse que é guardado pelos padres vermelhos sim.
– Então me diga de uma vez o que somos. – Heráclio avançou em direção à cela e sua barriga queimou, mas era difícil conter a ansiedade.
– Fique calmo. Caso se aproxime da cela com emoções perturbadas, a proteção mágica irá interpretá-lo como um demônio e sairá
machucado. – Miriam o advertiu.
– O sangue usado pelos padres vermelhos é sangue de demônios – replicou então Caio, com uma expressão fria.
Heráclio, ao retroceder, ficou tonto. Aquelas palavras, somadas ao conflito espiritual que permeava o lugar, ribombaram em sua mente e fixaram em seu peito manchas corrosivas e miasmas
que espalhavam uma podridão inconteste. Ficou sem saber como reagir à fraqueza das pernas e ao entorpecimento da língua.
– É mentira. – Lutou para movê-la e resmungar.
– Tenho muito mais a revelar. Basta que mostre paciência. Logo irá se dar conta de que não é mentira.
– Como pode me provar? – Teve início uma dor de cabeça de arrebentar o crânio. – Talvez tudo aqui não passe de um grande embuste de uma bruxa e
de um traidor!
– Sei que é difícil aceitar algo assim. Ainda mais os padres vermelhos sendo especialistas em mentir… Como eu também era. Entendo que pense que tudo não
passe de feitiçaria, ilusionismo e trapaças! Por isso, acho que posso cumprir melhor a minha parte lhe fazendo uma outra pergunta. Seu próprio interior irá lhe dar uma resposta: o que pensa que
são os possuídos?
Como se induzido por uma força maior, Heráclio atentou a si mesmo. Silenciou e, ao se aprofundar em seu peito e em sua mente, um arrastar de pés interrompeu a quietude.
Transformou-se em passos pesados e, por fim, em uma corrida tensa.
Então, pior do que qualquer movimento do corpo, tudo o que havia cedeu lugar a um urro absoluto, que esmagou e deixou para trás cada migalha de humanidade que existia em seu ser.
Pela escuridão ou pela luz, não importava, eram absorvidos seu medo, sua fome, seu ódio, sua raiva, suas mágoas, suas dúvidas, seu desespero, seu escárnio, seu orgulho, seu terror,
suas fugas e pesadelos, suas desculpas e pesares, suas culpas, sua preguiça, sua gula, sua luxúria, sua avidez; seu pânico.
Uma aberração montou em suas costas. Era uma cruz óssea e carnosa cuja base era uma ponta de lança, que se fincava em uma rosa. Aliás, aquela cruz era toda
arestas. Rasgava as pétalas da flor, e só não chegaria a perfurá-lo por inteiro, estraçalhando seus órgãos, porque uma pétala que estava no chão se recompôs
e foi trazida de volta por um vento fundo que não saberia explicar.
The mind is its own place, and in itself
Can make a heaven of hell, a hell of heaven. – John Milton, Paradise Lost.
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