Um odor misto de fezes e carne apodrecida invadiu as narinas de Heráclio, despertando-o. Abriu os olhos enquanto o céu jogava tinas de água sobre uma noite escarpada.
Passava ao seu lado uma lenta procissão de capuzes brancos, os corpos de braços magros demais, ossudos e cinzentos assim como as pernas que escapavam pelas túnicas curtas e finas. Molhavam os pés quebradiços em poças de lama e sangue.
Soluços e lenços encharcados; meninos e meninas se chicoteavam, batiam nas próprias costas com força.
Já o pirata não tinha energias para se reerguer. Apenas rastejava sobre pedras alcantiladas.
– Uma cobra ou um verme! Um animal desprezível e asqueroso. Pior do que um animal, já que animais não pecam, agem por instinto. É o que você é. – Sentado ali por perto sobre uma rocha úmida, segurando seu joelho direito, estava um demônio nu e sem pelos no corpo, de pele arroxeada e olhos crivados de ódio em sua direção. – E agora vai passar a ser meu escravo preferido. – Sua cabeça seria lisa se não fossem os calombos ósseos.
– Do que está falando? Quem é você? Não sou nada seu, seja lá o que for.
– O meu nome é Choronzon, muito prazer. Você não precisa se apresentar. Sei que é o imperador dos mares de Bizâncio. É mesmo comum imperadores rastejarem na lama, lambendo a merda e não dizendo coisa com coisa, clamando por direitos e poderes que nunca possuíram.
– O que quer de mim? Não consigo me levantar.
– E por que precisaria ficar de pé? Imperadores não ficam em seus tronos, confortavelmente instalados, sem nunca precisarem ficar de pé?
– Nunca fui dessa espécie de imperador. Se me conhece de alguma maneira, sabe muito bem disso.
– Admito que foi valente. Tentar a travessia do mar Tenebroso, com a cara e a coragem! Uma pena que tudo o que foi seu será meu. Pena para você! Porque para mim está sendo muito divertido! – Um báratro vermelho que mais lembrava uma boca, vermelha e repleta de dentes, com as gengivas inchadas, se escancarou, sem, no entanto, engolir o apavorado pirata, que se mantinha acima junto com o demônio como se estivessem sobre uma camada de vidro.
Embaixo, uma serpente monstruosa, escura e grosseira, movia-se junto com bestas tentaculares e os piores tipos de preadores espirituais, que às vezes se chocavam contra o piso de proteção e voltavam para baixo, onde podiam torturar suas vítimas.
Entre estas, Heráclio reconheceu Milo, Melissa, Arístaco e seus demais companheiros.
– O que está fazendo com eles? Deixe-os em paz!
– Não consegue nem mesmo ficar de pé e quer ditar ordens? Deixe de ser pretensioso. – O sarcasmo deu lugar a uma seriedade aterradora. – Aqui o capitão é outro.
Os olhos do pirata arderam. Seu peito queimava e os braços formigavam.
– Estou morto. Não acredito!
– Maldita hora em que decidiu avançar rumo ao desconhecido, governado por suas ambições em lugar de governá-las, Heráclio. Este é o resultado.
– Você não sabe de nada, demônio. Nunca foi um ser humano! Não faz ideia do que é ser como nós.
– Os humanos se superestimam. Sou um ser vivo e isso basta, mesmo que não viva na matéria.
– Vocês vivem através de nós. Acho que estou começando a entender.
– Não entende nada. Ainda está se superestimando.
– Heráclio! Ajude-me! – Do abismo, o pirata ouviu o pedido de Melissa; e escutou também alguns de seus pensamentos: "Onde estão os deuses? Apolo, Hermes, preciso de ajuda! Por que me abandonaram?" A tristeza era tanta que subjugava as dores que pareciam físicas e a revolta.
– Você pode ajudá-la, não é? Por que está hesitando? Se é um imperador...
– Não estou hesitando, monstro maldito. – Ainda caído, deu um soco na vidraça. Sem resultado.
– Mas que pena! Não tem nenhuma força. Pode fazer o que quiser… em sua mente. Porque aqui eu governo, eu sou o senhor! – Culpa, sensação de impotência e arrependimento arranhavam o coração do pirata, que se perguntou sobre seus equívocos, se fora abandonado pelo verdadeiro Deus porque se envolvera com o paganismo.
Quando todas as esperanças tinham ido embora, um sol invadiu aqueles céus e ocorreu uma reviravolta: tratava-se de um astro a princípio vermelho-claro, que foi ficando rubro-forte, quente não para ele, apenas para o demônio, em cuja pele apareceram horrendas queimaduras. Choronzon urrou de dor. Heráclio enfim conseguia ficar de pé.
O vidro embaixo escureceu e o que havia não mais seria visível, substituído por um chão rochoso.
"Alguma coisa de diferente está acontecendo; outra coisa diferente. Melissa, ainda vou salvar você, me aguarde", apesar de não vê-la mais, recuperou as esperanças, da mesma forma no que estava relacionado ao resto da tripulação, seus preciosos companheiros.
O sol vermelho se transformou em uma cruz de ouro cravejada de rubis e quem a segurava era o Salvador, enorme, de barba e cabelos negros compridos e olhos escuros e profundos. Impunha uma ordem absoluta. O demônio desapareceu e o ambiente pedregoso ao redor se transformou em um paraíso, povoado por flores e pássaros coloridos. Estava salvo?
– Uma nova chance lhe será dada, meu filho. – A voz do Cristo ribombou, imponente, pelos ouvidos do pirata, que não resistiu e ficou de joelhos. – Você viverá. – Mas estava entendendo bem aquilo que era dito? Não estava morto? – E terá a oportunidade de se redimir na Terra. Apesar de todos os seus crimes, sua alma não está totalmente corrompida, ao contrário de outras que viu no Inferno. Sinto muito se algumas delas eram seus amigos.
– O senhor é mesmo quem estou pensando? – Ousou indagar.
– Sou eu sim, meu rapaz. Não precisa me temer. Nem ficará aqui por muito tempo.
– Não sei o que dizer. Para ser sincero, nunca acreditei no senhor... – Seu coração deu um murro em seu peito. – Por outro lado, agora que está diante dos meus olhos, não tenho coragem nem vontade de continuar a renegá-lo. – Nunca se sentira daquela forma, subjugado; e grato ainda que sem flagrantes motivos para sentir gratidão.
Peso e glória, prazer e dever; era tudo uma coisa só.
– Os homens são livres mesmo para se esquecerem de Deus.
– Não me esqueci. A magia, afinal, fazia-me acreditar em deuses e conviver com espíritos. Mas não acreditava no senhor. Com toda a sinceridade, a sua me parecia uma doutrina ultrapassada, que limita os homens e impõe um número excessivo de normas e preceitos derrotistas.
– Apenas o necessário para frear o caos no mundo. No entanto, os homens são livres para seguirem suas próprias leis. Só observe os resultados dessa liberdade.
– Então no fundo não somos livres. Melissa está mesmo no Inferno?
– Falou da magia. Pois que fique bem claro: a magia é a arte dos demônios e foi um demônio quem deu aquela substância diabólica à mulher com a qual vivia em pecado. Como um ser humano poderia ser imortal? Nas Escrituras meu pai deixou claro: do pó veio, ao pó voltará. Só há um meio justo de se conseguir a imortalidade, que é por meio de meu sangue, o sangue da Redenção.
– Não posso fazer nada para salvá-la? E quanto aos meus companheiros?
– Alguns deles irão para o Purgatório. Outros não têm esperança. Para ela, a eternidade será de brasas e ranger de dentes. Pela magia, tentou desafiar as leis de Deus. Portanto, será condenada pelas mesmas leis, que não conhecem subterfúgios.
– Tenho razão, portanto, que na prática não existe liberdade?
– Claro que existe. Ela apenas tem suas consequências, nem sempre boas. Você já compreendeu, meu filho, meu irmão.
– E os deuses pagãos são demônios?
– Todos, sem exceção. Por isso, nunca faça como ela fez. Nunca adore ídolos mortos.
– Agora sei qual é a verdade, então… Mas por que me salvou? Mesmo sabendo de tudo agora, certas coisas ainda me incomodam, sou relutante demais, um espírito rebelde.
– Você não sabe o que é rebeldia. O único verdadeiro rebelde está na profundidade do Abismo, trancado a setenta e sete chaves. É ignorante demais para compreender.
– E sempre serei ignorante?
– Já não lhe basta ter a vida salva?
– Talvez não baste. – O diálogo foi ficando nebuloso. O Paraíso se desfazia em brumas e a visão dava lugar ao devaneio.
Sonhando, pouco a pouco voltava à realidade; e quando se deu conta estava esfarrapado sobre areias quentes, em uma praia desconhecida, debaixo de um sol agressivo. Tossiu ao recuperar a consciência. "Será que foi verdade? Estou louco, vi realmente o Cristo ou foi algo induzido por um terceiro? Aquelas palavras ao mesmo tempo me convenceram e não me convenceram." Ergueu apenas o tronco, apoiando os cotovelos sobre a areia. "Será porque sou revoltado demais? Se a Criação é desse jeito mesmo, bem que queria que fosse diferente. Mas o que não quero, depois do que vi, é conhecer o Inferno de perto. Melissa, você pode ter ido longe demais… Mesmo assim, ainda a ouço gritar e gostaria de salvá-la. Peço perdão a Deus. Ou não deveria pedir perdão nesse caso? Afinal, é um sentimento puro.
Bem… talvez puro não seja, está cheio de desejo. Mas é forte, intenso! Não tenho como deixar isso de lado. Se é onipotente, senhor das alturas, por que não resgata suas criaturas do fundo do poço? Se não é onipotente, então não é Deus. Se é e não faz nada, é um monstro cruel.
Não sei o que pensar. Por que só eu sobrevivi? Não quero ser ignorante e viver na dúvida. Quero saber a verdade!" Ficou de pé, sem saber para onde ir. Se ficasse mais tempo debaixo do Sol, de tão ardido que estava, teve a impressão de que queimaria como em uma fogueira. Sua alma era um rebojo de remorsos, perguntas e meias respostas. "Preciso me manter vivo. Se essa dádiva me foi dada, pelo menos isso tenho que fazer. Com o tempo, quem sabe compreenda algo", era sua esperança. Não estava mais tão grato assim por ter sido salvo; a gratidão no momento lhe parecia uma forma de subjugação.
O que queria era entender.
***
Os dias se passaram. Heráclio não soube quantas semanas ou meses. Em um lugar onde não existia o menor rastro de civilização ou de seres humanos, nem mesmo selvagens. Não teve coragem de montar uma jangada. Estava com medo demais do mar Tenebroso para isso. E se Deus lhe concedera a vida de volta, fosse aquela visão verdadeira ou não, não o fizera para que a desperdiçasse em seguida, entre baleias e pássaros monstruosos. Queria vingança, algum dia destruir aquelas criaturas que haviam provocado as mortes de seus companheiros e o afundamento do Heraclonas; não era fácil conseguir um drómon. E pensava em se vingar também, caso tudo tivesse sido real, dos demônios que torturavam Melissa.
Apesar de ser uma bruxa pagã, não conseguia se conformar que nunca poderia fazer nada por ela e que Deus condenasse alguém pela eternidade: "Seria muita pobreza de espírito, muita falta de amor. Se um ser humano é capaz de perdoar, por que Ele não seria?" Alimentava esperanças de algum dia redimi-la. Por mais cético que fosse, não o era quanto ao perdão.
Nos dias que transcorreram, improvisava fogueiras e viveu de frutos e caça, pois, para seu júbilo, ainda tinha sua spatha para abater animais.
Descobriu também alguns lagos repletos de peixes, nos quais mergulhava e pescava de vez em quando.
Sua barba e seus cabelos ficaram enormes e foi como um bruto que numa certa alvorada, enquanto acompanhava o nascer do Sol como gostava de fazer assim que despertava, foi invadido por uma alegria arrebatadora: atirou-se ao chão e rendeu graças a Deus por avistar uma nau veneziana que se aproximava da praia. Reconhecera-a pela bandeira do leão alado de São Marcos, ao lado da qual havia um estandarte da Santa Sé, com as chaves de São Pedro, e portanto também devia carregar eclesiásticos.
O que estariam buscando por ali? Quiçá um sinal de Deus? Ou algo mais prosaico, como tesouros que estariam procurando ou escondendo em ilhas no mar Tenebroso?
Àquela altura só queria ser salvo e juraria guardar qualquer segredo.
– Não é possível. Há um homem ali e certamente não é quem procuramos – disse, na embarcação, um sacerdote vermelho caolho e careca, baixo e carrancudo; na praia, Heráclio corria e gesticulava.
– De fato não é. Ele não se apresentaria assim, e não há nenhum mau espírito por perto – falou um gigante de armadura pesada em azul e prata, toda fechada, com um elmo pontiagudo sem espaço sequer para olhos, nariz ou boca; sua voz era abafada, metálica. – Trata-se de um homem comum, perdido. – Passava dos dois metros de altura e trazia, apoiada sobre um ombro, uma espada montante com uma empunhadura na qual um demônio era envolvido por uma cobra.
– É provável que se trate de algum navegador imprudente que saiu pelo mar Tenebroso sem ter ideia dos perigos que este abriga.
– Um pobre náufrago. Vamos ajudá-lo.
– Claro. – O semblante daquele prelado se contorceu, pois sentia dores na língua e nos maxilares sempre que falava mais do que acreditava ser o necessário.
O homem de armadura desceu junto com ele. O resto da tripulação ficou no navio. Na praia, deu-se o encontro com Heráclio:
– Estou honrado em recebê-los nesta ilha que não é minha. Já não aguentava mais seguir por aqui!
– Seu latim não é dos melhores – foi a imediata observação do sacerdote vermelho, que encarou o pirata, ambos caolhos.
– Perdoe-me, padre. Se pudermos falar em grego, eu agradeceria.
– De onde você é? – A pergunta já veio em grego.
– Sou de Constantinopla. – "Não posso dizer quem sou, ou é capaz de nem me resgatarem. Tenho que inventar um outro nome. Já sei!"
– E como se chama?
– Odisseu. O meu pai apreciava os mitos dos antigos. – E o prelado olhou para o lado, na direção do gigante. "Idiota! Paganismo não! Nada de paganismo! Fiz a escolha errada."
– Está bem. Saiba que respeito muito o povo grego. Com sua filosofia, a Grécia antecipou a doutrina cristã, que para além da fé é também racional.
– Obrigado, padre. Admito que sou um tanto inculto. Mas ao menos a minha fé me bastou para ser salvo. – "De uma forma ou de outra, isso é verdade."
– Como veio parar aqui?
– Sou o único sobrevivente de um navio de mercadores.
– Mas o que vieram fazer no mar Tenebroso?
– Nosso capitão se deixou levar pela gula por ouro. Em vez de continuar a comerciar, achou que deveríamos procurar por tesouros e que os encontraríamos do outro lado da Terra, na parte inferior do globo, que para os que lá estão deve ser a superior!
– Francamente, ao que leva a ganância humana!
– Desde o início não concordei com a empreitada. Mas eram meus companheiros, meus irmãos.
– Entendo. Perdeu um dos olhos aqui?
– Sim, padre. Quando acordei, ainda atordoado, estava sobre o pedaço de navio com o qual vim parar nestas bandas. Furei o meu olho em uma ponta afiada. Por raiva e necessidade, queimei então aquela madeira para fazer uma fogueira.
– Sinto muito, meu filho. Por ter sido provavelmente o único a não concordar com essa aventura insana e cúpida, Deus o poupou.
– Estou certo disso. Apesar de ter saudades dos meus amigos e de lamentar suas mortes.
– Espero que Deus os tenha perdoado.
– Digo o mesmo, padre. – Olhava com certo receio para o gigante de armadura, que parecia mudo. O sacerdote percebeu isso:
– Noto que fita com algum temor o meu irmão, mas não tenha medo. É um cruzado, um dos guerreiros da fé que tem em suas veias o sangue de Cristo. Com ele nem mesmo é preciso temer o mar Tenebroso: os monstros se ocultam e os poucos que ousam enfrentá-lo são humilhados. – O que fez com que Heráclio se lembrasse das palavras que escutara em sua visão sobre a única imortalidade possível. – Estamos aqui para exterminar um mago que vem enviando demônios para as nossas terras.
– Quer dizer que há um feiticeiro nesta ilha?
– De fato. Por isso nos surpreende que ainda esteja vivo. Talvez porque a esse inimigo do gênero humano não interessem náufragos sem pertences.
– Impressionante. Dou mais uma vez graças a Deus por estar vivo. – "Um cruzado, um exterminador de bruxos e monstros! Se eu pudesse ser um, conseguiria me vingar de todos os que me fizeram mal e confirmar minha visão. Ter algum conhecimento! Mas como me tornar um? Como eles se tornam o que são?" Levou um susto porque aquele homem enorme, em um avanço brusco, deixou os dois de lado e desapareceu nas matas próximas à praia.
– Ele já se foi. Agora podemos ir embora. – Foi o seguinte comentário do padre vermelho, que surpreendeu Heráclio:
– O quê? Como assim? Vão abandoná-lo aqui?
– A luta será longa. Na verdade, será uma guerra. Não durará um dia ou dois. Dentro de uma semana, um outro navio virá aqui. Se tiver vencido, estará nos esperando na praia. Não se preocupe porque ele é um pouco especial. E nem mesmo cruzados comuns precisam de muita comida ou água. – Teve que fazer uma pausa, o queixo dolorido, antes de retomar, estralando os maxilares, o que causou estranheza no pirata. – Embora aqui nem uma coisa nem outra faltem. Você virá conosco, não é? Lutar contra um mago como o que ele enfrentará, repito, será uma guerra. Em pouco tempo, os demônios conjurados pelo bruxo tomarão conta da ilha. Por isso seria perigoso demais permanecermos, mesmo por perto, dentro do barco.
– Sim. Vou com vocês, é claro. Ou não teria feito tanto esforço para que me notassem.
– Está bem. – E Heráclio refletiu na sequência: "Deus me enviou essas pessoas? Tudo está ocorrendo como se os Céus estivessem me dando uma série de recados. Só pode ser verdade!"
No caminho de volta, não apareceu nenhuma baleia ou pássaro gigante. O grego, que àquela altura não sabia mais que rumo tomar em sua vida, já que pirata seria difícil voltar a ser, taciturno durante o início da viagem, não resistiu mais e resolveu perguntar ao padre:
– Por que nenhum monstro ataca este navio? Mesmo sem o cruzado, eles não se manifestam.
– Porque estamos protegidos. Cristo nos ampara. Sustente sua fé, meu filho.
– É incrível! – Continuaram um perto do outro, calados, por mais alguns minutos. – Como poderia me tornar um cruzado? – De repente liberou a pergunta que realmente queria fazer.
– Não é uma vida fácil. – Honorius, como se chamava aquele padre vermelho, respondeu sem demonstrar surpresa ou abalo. – É preciso muita fé. Resignação. Força interior. – Fazia algumas pausas para minimizar as dores. – Além disso, passam por um treinamento, e depois por testes. E temos que ter vagas abertas. Os cruzados não podem passar de doze, o mesmo número dos apóstolos. Claro está, no entanto, que há os suplentes, que estão já prontos para o que precisarão se tornar, pois foram admitidos nos testes, uma vez que aconteça o pior com um de nossos guerreiros sacros. No momento, não temos vagas para cruzados, porém pode tentar ser um aprendiz e depois quem sabe será um suplente, podendo vir a se tornar, algum dia, um santo milites da Igreja. Há também casos de cruzados que são escolhidos sem todo este processo quando há falta de homens, mesmo entre aprendizes e reservas, ou quando um padre vermelho recebe uma mensagem de Deus em sua consciência ou em seus ouvidos para consagrar alguém. Só que não ocorrem sempre; e não é o seu caso.
– Não sou um homem sequioso, não tenho pressa. Mas pretendo tentar.
– Por quê? Explique-me, Odisseu.
– Por gratidão, padre. – Em parte mentiu, em parte foi sincero; na verdade, mais omitia. – Deus salvou minha vida e gostaria de retribuir servindo-o. Além de ter sobrevivido a um naufrágio, quem foi que apareceu para me salvar? Um barco da Igreja. – Logo se corrigiu: – Da santa Igreja.
– Veja como é Deus… Com esta resposta que acabou de me dar, posso dizer que está aceito, filho. – Heráclio o encarou com espanto. – Será testado.
Não tinha o direito de dizer que nunca lhe ocorriam milagres.
***
Apenas dois anos depois de ser resgatado naquela ilha, Heráclio passou por todos os testes e enfim, com as mortes de alguns dos cruzados então em atividade, ingeriu o sangue de Cristo, recebeu a cruz em sua pele e teve sua meta realizada.
Contudo, ao término de uma confissão sacramental, não deixou de perguntar qual fora o destino do misterioso guerreiro que estivera na embarcação que o salvara, já que nunca o vira em Roma:
– Ele não estava na praia quando fomos buscá-lo. – Foi a resposta do cardeal Jonathan, que às vezes irritava o ex-pirata com seu sorriso. – O navio ainda aguardou por mais alguns dias, mas não havia nenhum sinal dele. Provavelmente foi derrotado pelo mago ou morreu junto com ele. Já foi substituído antes que você se tornasse um suplente. De todo modo, o inimigo não está mais naquela ilha.
– Entendo. Como ele se chamava?
– Por que seu interesse nele? Deveria estar mais preocupado consigo mesmo, Odisseu, em ser verdadeiro e sincero para com sua alma e o Corpo de Cristo.
– Ao que Vossa Eminência está fazendo alusão? É apenas consideração por um companheiro, por alguém que contribuiu para que eu estivesse aqui hoje. Além disso, Honorius me disse na ocasião que ele era especial. Por que Vossa Eminência diz que eu teria de estar preocupado comigo mesmo?
– Porque o seu nome não é Odisseu e não era um comerciante. Agora está com seu olho sarado, graças ao sangue de Cristo, mas negociantes não costumam ser caolhos.
– Padres também não. E o que Vossa Eminência me diz do padre Honorius?
– Antes de se tornar padre, Honorius foi um cavaleiro. O olho faltante é uma reminiscência dos seus tempos de luta.
– E se eu também fui um guerreiro, um mercenário a serviço de mercadores… Há algum problema nisso?
– Se Deus permitiu que vivesse após um acidente no mar Tenebroso, quem sou eu para julgá-lo? Tratou-se de um sinal evidente de que Nosso Senhor o perdoou por pecados sangrentos, assim como o absolveu há pouco de seus pecados mais recentes. Mas para que a ira divina não se abata novamente sobre você, passe a dizer a verdade de hoje em diante, senhor Heráclio, nobre imperador dos mares, ou então de pouco ou nada serve se confessar.
– Como Vossa Eminência sabe? – O coração do novo cruzado alcançou sua boca.
– Não se preocupe. O sangue de Cristo o aceitou e não tenho a menor intenção de entregá-lo aos gregos, até porque agora eles teriam um pouco de trabalho para mantê-lo preso.
– Como descobriu, cardeal Jonathan? – insistiu.
– Sou um homem bem-informado. Além disso, já vi retratos seus quando estive em Constantinopla e há padres aqui que o reconheceram. Acha que enganou o padre Honorius? É mais famoso do que imagina, quase uma lenda entre os oprimidos do Império do Oriente. Muitos pintores trabalharam com a sua imagem, afora os cartazes de procurado e os inúmeros retratos falados. Quando chegou aqui, praticamente todos nós sabíamos quem você era.
– Agora já sou um cruzado.
– Exatamente. E certos membros da elite de Bizâncio devem estar até felizes com isso, pois julgam os perigos que irá enfrentar infinitamente piores do que as prisões de Constantinopla. Os polidos dirão que todos têm o direito de se redimir, que é algo que está na lei cristã, e que enfrentando demônios, lutando portanto para proteger outras pessoas, expiará todos os pecados cometidos enquanto era um pirata.
– É como Vossa Eminência também pensa?
– Eu não penso sobre nada. Deus o aceitou e está feito. Não tenho o direito de pensar. – Abriu mais o sorriso. – Só acho melhor deixar de lado esse pseudônimo pagão. Foi como Heráclio, nome de um herói da cristandade, responsável por devolver a cruz de Cristo à saudosa Jerusalém, que foi batizado, meu filho.
– Nisso estou sentindo até um certo alívio.
– Adora o seu nome, não é? Pois seja você mesmo, Heráclio!
O pirata se lembrou da frase preferida de Melissa: "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo."
Ainda pensava que os pagãos não devessem ser condenados ao Inferno pelo simples fato de serem pagãos, embora não tivesse mais interesse em deuses e sim em Deus; por outro lado, o conhecer a si mesmo parecia-lhe o conhecimento mais válido e certo e precisava continuar se estudando, até descobrir quais os propósitos de Cristo e do mundo em seu próprio interior.
– Ah! – Após deixar um dos confessionários da Basílica de São João de Latrão e lhe dar as costas, antes de sair de cena, o cardeal Jonathan, que parecia estar se divertindo às custas do ex-pirata, voltou-se de novo em sua direção: – O cruzado que estava com Honorius naquela ilha quando você foi resgatado era mesmo especial. Em toda a história, foi o que serviu à Igreja por mais tempo. Inclusive eu sequer era nascido quando ele começou a atuar. Provavelmente, entre todos até hoje, é o que mais demônios matou. Seu nome era Barbarossa. – Com essas palavras, deixou a igreja, deixando o interlocutor entregue aos próprios pensamentos.
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