As arquibancadas de madeira escurecida estavam distribuídas em três
círculos concêntricos, cada andar ocupado por cerca de dez
sacerdotes. Bispos e cardeais eram os mais próximos do piso escuro,
no centro do qual se via uma cruz rubra. Sobre esta, achavam-se os
três cruzados que haviam participado da mais recente missão na
Índia.
– Cruzados possuídos são mesmo muito perigosos. Seus corpos e
espíritos atraem inclusive duques, condes, barões e marqueses do
Inferno, que os possuem para promover destruição e agonia. É por
isso que não puderam vencer Dyonisos. É provável que ele tenha
sido possuído por um conde ou duque, enquanto você, Raja, não pode
se permitir a isso por períodos longos – disse o bispo Tharien,
nascido da distante Armênia, mas residente havia alguns anos na
Itália, um homem de olhos alertas e gestos calmos, sua barba
castanha com alguns fios grisalhos.
Estava se dando uma reunião do trio de cruzados com os membros da
Ordem do Graal que se encontravam em Roma no momento. Tharien, assim
como outros integrantes que também eram bispos – ou abades ou
cardeais, os Irmãos Maiores –, tinha o cálice bordado em
ouro em sua batina. Sacerdotes e monges comuns, os Irmãos
Menores, limitavam-se ao bordado em prata.
– As suas armaduras nos deram um tremendo trabalho. Precisamos
forjar muitas peças novas. Não sobrou quase nada! – falou o
robusto e simpático cardeal Celius, de longa barba branca, porém
sem bigode, o superior dos padres ferreiros da Ordem do Graal, que
trabalhavam o metal banhando-o com o sangue de Cristo.
Nenhum dos cruzados jamais vira o Santo Cálice. Pelo menos não na
atual geração. O que se dizia era que os cardeais da Ordem se
revezavam em seu usufruto. Faziam o juramento para não revelar a
ninguém, nem mesmo ao irmão que seria o sucessor na posse, sua
localidade de momento. Até que chegasse a hora da troca de guardião,
definida pelo papa. Armazenava-se o sangue necessário para formar
novos cruzados e forjar ou reforjar armas e armaduras em outros
recipientes, que, por não serem fontes ilimitadas, requeriam um zelo
menos exacerbado.
Uma maravilha propagada sobre o Santo Graal era que, mesmo se
esvaziado para preencher outros vasos, voltava a ficar pleno em
questão de doze horas. Sem estar vazio, o número de horas
necessário era menor.
– Da próxima vez, estarei ainda mais atento. – O cruzado indiano
apresentava uma expressão mais turva do que de costume. Não livrar
Dyonisos da besta era ainda uma grande frustração.
– Não se abata nem se cobre tanto assim, meu irmão. – A
expressão de Jonathan Cibo, o cardeal de Santa
Maria em Domnica, um homenzinho de cerca de um metro e meio de
altura, que preferia usar um barrete um pouco maior do que os dos
demais, aparentava ser de falsa complacência. – Cristo talvez os
tenha castigado por terem roçado o abismo da soberba. Lições assim
estou certo que todos nós algum dia recebemos ou receberemos.
Ninguém é puro o bastante para ir aos Céus sem dar alguns passos
no Purgatório, ainda que faça isso em Terra, por estranho que soe.
– E você, Masamune? Tem algo a dizer? – inquiriu Torquemada. O
samurai, trajado com um quimono branco e um longo hakama azul, era o
único ali de joelhos e com a cabeça baixa. Os outros dois estavam
de pé. – Você já enfrentou e até venceu alguns possuídos. O
que houve desta vez?
– Parece-me que este que entrou no corpo de Dyonisos pertence a uma
categoria distinta. Um demônio de alta hierarquia, talvez um duque
ou marquês, algo que não tivemos a oportunidade de observar com
atenção no confronto contra Belial porque logo escapou. Creio que é
tudo – replicou o cruzado.
– E quanto ao seu parecer, Saoshyant?
– Estudo magia já há algum tempo para compreender as artes dos
inimigos da fé. – O persa coçou sua barba. – No caso desse
inimigo, centra-se no elemento fogo para destruir, mas também
emprega minúsculos espíritos da terra para restaurar seu físico.
Após ser perfurado pelo tridente de Raja, conseguiu se reconstituir.
Para ser vencido, um oponente desse gênero precisa sofrer muitos
danos simultâneos. – Foi fitado pelo inquisidor-geral com uma
intensidade talvez desconfiada, porém não se intimidou. Preservou o
olhar altivo e observou Celius, que o fitava com serenidade, e
Jonathan, cujo sorriso elevou bastante os cantos da boca. Não tinham
como saber de nada.
Horas depois, estava em seus aposentos no Palácio de Latrão, onde
os cruzados permaneciam nos intervalos entre suas tarefas. Aguardava
a noite e lia um dos tantos livros das pilhas em sua escrivaninha,
que ocupava, junto com uma larga estante, o maior de seus dois
quartos. Usava o menor apenas para dormir em seu colchão de palha,
já que não fazia questão de grandes confortos. O amplo escritório,
para além do estudo, servia para suas práticas: de magia.
Traçado no chão, havia um círculo. E, dentro deste, um hexagrama,
com em cada ponta um pentagrama e ao lado uma cruz grega, com braços
de idêntico tamanho. Dali, evocava os espíritos dos elementos, para
que o obedecessem e o auxiliassem durante as batalhas sempre que
precisasse. Sonhava que algum dia conseguiria convocar anjos e forças
maiores da natureza, como, por exemplo, a própria Kali. Ambicionava
ser aquele que livraria de uma vez por todas o mundo dos demônios, e
para isso faria uso de magia, considerada por ele não como algo
demoníaco e sim como um dom do Pai Celeste para que o homem pudesse
agir na natureza e vencer as paixões abomináveis, passando do
autodomínio para o domínio exterior sem perder a consciência da
Vontade de Deus.
Entrementes, declarava à Inquisição que estudava as artes mágicas
apenas de forma teórica, tomando emprestados livros da Biblioteca da
Santa Sé para realizar essas pesquisas, sem jamais revelar que
praticava todos os tipos de atos ritualísticos possíveis, exceto as
conjurações infernais.
Estudioso de magia desde que se tornara um cruzado, vira nesta uma
maior possibilidade de acesso ao Conhecimento, além de existirem
razões enraizadas em seu passado: "Nunca vou deixar de lado a
magia, que está longe de ser algo ruim. Se o bom Helmont tivesse
possuído um conhecimento mágico maior, poderia ter se defendido
daquele demônio e não teria perdido a Pedra e a vida.
Não tenho tempo para me dedicar à alquimia e de certa forma não
preciso dela porque já sou imortal, mas nunca abandonarei a magia,
pois será através dela que espero livrar o mundo dos demônios,
esses usurpadores, monstros que invejam o homem por termos sido
criados à imagem e semelhança de Deus."
Naquela noite, pôs-se a trabalhar com um medalhão de jade que
trouxera do Catai. Estava ali gravada a imagem de uma roda, com
quatro ideogramas que formavam os vértices de um quadrado no
interior desta, e, em cada ponta, havia minuciosas imagens de animais
místicos: um unicórnio, uma fênix, um tigre e uma tartaruga.
Apoiou no piso o objeto em questão, no centro do círculo mágico, e
conjurou os espíritos do ar para que purificassem o ambiente,
eliminando todos os pensamentos espúrios e profanos seus e de
qualquer ente que tivesse estado por lá, físico ou espiritual.
O que se viu foi uma profusão de diminutos rodamoinhos com faces
pouco discerníveis que carregavam para fora pensamentos reclusos,
abriam caixas devotamente fechadas e arrancavam à força os que não
queriam se retirar de forma pacífica. Apegos supérfluos evaporaram.
Com a imaginação, visualizou na face limpa do medalhão um
pentagrama atravessado por uma espada e evocou Marte para que lhe
desse força e proteção. Um muro de ferro se ergueu ao seu redor e
sua armadura, que usava em seus rituais, se tornou rubra.
Júpiter foi chamado e despontou em sua mente uma águia coroada em
um novo pentagrama, que se sobrepôs ao primeiro imaginado no
amuleto. A intensificação se daria: a barreira, a veste e as armas
se fortaleceram. Ao desembainhar a espada, expulsou ou impediu a
aproximação de eventuais seres das trevas que estivessem curiosos.
A mera presença da lâmina, potencializada por uma consagração
realizada antes pelo mago, provocaria a dor do corte em seus
opositores espirituais. Mas estava só começando.
Com a outra mão, pegou um odre que continha água benta e estava em
sua cintura como antes estivera a espada. Apoiou a lâmina no piso e
pronunciou com solenidade:
– In nomine Elohim et per spiritum aquarum viventium, sis mihi
in signum lucis et sacramentum voluntatis… – Palavras
pronunciadas em um latim mais antiquado do que a língua que os
membros da Igreja usavam entre si. Esta última, embora ainda culta,
contava com apenas três declinações e a introdução de alguns
artigos. – In principio creavit Deus caelum et terram. Terra
autem erat inanis et vacua, et tenebrae super faciem abyssi, et
spiritus Dei ferebatur super aquas. – Ao citar a Bíblia,
derramou algumas gotas consagradas no amuleto: uma fumaça perfumada
saiu do objeto.– Dixitque Deus: “Fiat lux.” – As velas
acesas se apagaram e uma luz que não vinha de fontes naturais emanou
do medalhão. Os olhos do cruzado se encontraram com esta e foi
obrigado a fechá-los.
Perdeu o contato com a vida pelo que lhe pareceram alguns segundos. O
espaço se distorceu na escuridão e, ao reabrir os olhos, mergulhara
na noite de frente para um rio de águas de uma profundidade azul
exagerada, sobre as quais pairava uma ilha com um castelo.
"Desci para trazer a luz a um lugar que ainda não a possui?"
A fortaleza circular apresentava-se com torres maciças de bases e
topos arredondados. Lá no alto estavam montadas algumas tendas.
No entanto, um vento repentino desestabilizou e não demorou a
arrancar as barracas do lugar. Os tecidos nos ares se transformaram
em bizarras criaturas voadoras brancas, de peles membranosas, com
rostos disformes e veias que rasgavam suas próprias asas. Ainda
assim, não detiveram seu voo e vieram guinchando na direção de
Saoshyant, que desembainhou sua espada.
A luz emanada por esta desmanchou aqueles seres. Contudo, não foi o
bastante para o que viria na sequência:
– Você é um tolo – ressoou um murmúrio sinistro.
Voltou-se para trás e deu de cara com um monstro espelhado, que
refletia em sua pele tanto o guerreiro persa como o castelo ao fundo,
os olhos de vidro verde, os braços compridos e de aspecto
quebradiço.
Apesar de estar sério, o cruzado viu sua imagem sorrir com dentes
pontiagudos e levou um susto que lhe obscureceu a consciência.
Voltou a si em seu gabinete de estudos, a cabeça debruçada nos
códices e rolos de pergaminho.
"Será que foi só um sonho?" Levantou o pescoço, seus cabelos
desgrenhados. "Não posso perder o controle. Terá sido uma
tentação?" Ergueu-se devagar de seu assento de madeira
almofadado e olhou para o círculo mágico. Encontrou-o como o
deixara em suas últimas lembranças. O amuleto no chão. Só que
agora emanava um brilho nítido: a energia espiritual com a qual fora
ungido. Tudo indicava que efetuara a operação mágica da forma
correta. "Só não entendo como voltei para a escrivaninha. Terá o
meu corpo se movido sozinho enquanto meu espírito viajava? Se isso
ocorreu em decorrência da força que consegui trazer durante o
ritual, talvez não deva faltar muito para que algum dia consiga
conjurar um arcanjo! E todos os demônios tremerão. Porém meu
corpo, ao que parece, precisa de maior resistência. Hoje não corri
perigo, tenho fé quanto a isso, mas o que os livros dizem é que o
mago não pode simplesmente deixar o círculo. Ainda mais seu corpo
despido da consciência de seu próprio movimento. O risco da magia,
seu único aspecto demoníaco, reside na dificuldade em sempre manter
a consciência e consequentemente a sanidade." Passou as mãos
pela barba, incomodado com a aspereza dos pelos. Iria raspá-la e
deixar apenas um cavanhaque.
Pelo resto da noite, permaneceu desperto, embora sem visões
estranhas nem nenhuma outra experiência peculiar.
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