Transcorreram-se alguns meses. Karl von Rosenberg quase nunca deixava o rapaz sozinho. Quando não estava presente, havia outro guerreiro para instruí-lo.
Encerrada a etapa básica, não viria, porém, treiná-lo todos os dias como prometera. Arranjou-lhe um preceptor especial, o velho Leovigild, um homem de barba hirsuta e bigode espesso, que nunca fora visto sem seus anéis nos dedos da mão esquerda, entre rubis, esmeraldas, ametistas e ágatas, e que empunhava sua espada com preciosismo, ainda que vivesse em trapos, às vezes descalço, e seu odor pessoal não fosse dos mais agradáveis. Mesmo assim não saía do castelo, como um dos principais conselheiros do barão. Afinal, demonstrara ser, desde que chegara oferecendo seus serviços, um guerreiro de grande experiência e valor, embora se mostrasse intransigente e ranzinza no trato diário.
Alguns desconfiavam que se tratasse também de um mago. Circulavam histórias e boatos ao seu redor, que o tornavam uma figura quase lendária. Havia quem dissesse, por exemplo, que se tornara um anacoreta, abandonando por um longo tempo a vida de cavaleiro, após a perda da esposa, assassinada de forma covarde.
Outros acrescentavam que, em decorrência dessa catástrofe, fizera um pacto com o diabo, objetivando vingança contra os assassinos, o que cumprira com máxima crueldade. E existiam ainda os que afirmavam que simplesmente se tratasse de um demônio.
Fosse ligado ao Céu ou ao Inferno, à santidade ou à magia, fato que inspirava temor. Recorrer ao sobrenatural era a melhor maneira para explicar sua excepcional habilidade com as armas, que não decaía. Apesar de no dia a dia ter a aparência de um velho raquítico e encurvado, transformava-se durante os treinamentos dados aos aprendizes e nas escaramuças que o barão conduzia contra senhores rivais, das quais continuava a tomar parte, sem fazer questão de armadura e passando incólume pelos fendentes dos jovens estúpidos e alquebrados, como chamava os guerreiros inexperientes.
Conseguia, sem dificuldade, empunhar uma espada de duas mãos com seus braços compridos e finos; e em diversas ocasiões se esquivava dos ataques alheios por um fio, porém não parecia ser por sorte. Agia com extrema confiança e, por trás do aparente mau humor e dos xingamentos proferidos contra os oponentes, era nítido que se divertia e que não via o mínimo risco de derrota ao manejar a Zweihänder que apreciava ostentar apoiada sobre o ombro.
– Vamos logo! – Ereto e sem ofegar, Leovigild cuspiu em Sigmund, que estava caído, aparentemente sem forças para se reerguer, durante uma árdua sessão de treinamento no bosque mais próximo de Hastburg. – Você não passa de um verme, que rasteja para se segurar na cruz. Mas ela brilha demais, enquanto você vive cego debaixo da terra, sem enxergar a beleza da rosa sobre a sua cabeça, que brotou bem ao lado da cruz. Como Karl von Rosenberg me manda treinar alguém que nem mesmo nasceu, que foi regurgitado e meramente sobrevive? Deus quer que você sirva. Vamos, beije os meus pés! – Seus dedos de unhas encravadas e amarelas, tanto nos pés quanto nas mãos, fediam feito queijo podre. – Você só é capaz de rastejar!
No duelo simulado, Sigmund não lograra passar perto de seu instrutor sequer uma vez, mesmo depois de ser chamado de covarde por hesitar em atacar um velho sem armadura. Vivia se esquecendo do que diziam sobre Leovigild, junto ao qual transcorria horas exaustivas, um período que às vezes coincidia com o tempo que Rosenberg ficava a sós com Frida. O que na verdade vinha ocorrendo desde antes, desde os tempos do jovem no castelo, com certa frequência quando o comandante não o estava treinando. Sem que Sigmund soubesse de nada.
Bem que, nas voltas para casa, começara a notar a mãe um tanto estranha. E depois de mais alguns meses, já melhor no esforço com Leovigild, pois conseguia ao menos se aproximar e roçar as faces enrugadas com sua lâmina, percebera mudanças não só na alma como no corpo dela. Os modos de tratamento estavam diferentes, mais distante, mais fria, menos interessada. Era corriqueiro escutá-la chorando e nenhum dos dois dormia como deveria, sem que conseguissem conversar. Sigmund não se sentia capaz de tomar a iniciativa, assim como a barriga dela parecia intumescida.
De rosto, contudo, não engordara. Pelo contrário, estava pálida e encovada.
– A coragem é o que diferencia os nobres dos camponeses. – Leovigild dizia a Sigmund, que descansava debaixo de uma árvore, com as costas apoiadas ao tronco. – Deus faz nascer os covardes no campo e os valentes nos castelos. Por que será? Na teoria, a terra oferece um maior aconchego, disponibiliza a comida e permite uma liberdade sem altas muralhas. Deus é generoso! Foram os homens dos castelos que descobriram que os fracos estão no campo, e então resolveram dominá-los, sem que Deus interviesse, pois Ele concede o livre-arbítrio a seus filhos. – O velho seguia de pé e com uma postura ereta; sempre que tinha uma espada em mãos (no momento, para sermos mais precisos, debaixo delas), não se curvava. – Se não fossem tão covardes, os camponeses é que tomariam alguma atitude. Fariam valer o presente de Deus e aprenderiam a defendê-lo por si mesmos! Você faria alguma coisa. Deixa sua mãe ser violentada e não faz absolutamente nada? É mesmo um verme inepto.
– O que o senhor acabou de dizer? – Aquelas palavras do instrutor chocaram o rapaz, como se tivessem crescido espinhos no tronco da árvore para perfurar suas espaldas. – Está brincando comigo? Zombando de mim?
– Não, imbecil. É claro que não! Desde quando brincaria com um assunto tão sério?
– Mas como assim então? A minha mãe, violentada?! O que quer dizer com isso? – Recolocou-se de pé.
– Você já ouviu tudo o que precisava, idiota. Reflita agora: por acaso não tem notado ela diferente? Você carrega as suas desconfianças e pensamentos quando vem treinar aqui comigo. E eu posso ler tudo. – Moveu com um gesticular maldoso os dedos cheios de anéis da mão esquerda, enquanto mantinha a direita assentada sobre o pomo da espada. – Ela está grávida de Karl von Rosenberg. Você terá um irmãozinho! Enquanto fica pensando nela, preocupado, e não toma nenhuma atitude, só me empatando feito uma lesma.
– Você por acaso é um bruxo? Fez mesmo um pacto com o diabo como dizem por aí, seu velho maldito? – Ao se aproximar de Leovigild, tropeçou e quase caiu.
– Oh, agora demonstra valentia! – Umedeceu os lábios, a língua e os olhos portando-se como que pertencentes a uma serpente indignada, e se lançou sobre Sigmund, impossível ver quando erguera sua lâmina.
O jovem estava humanamente preparado para contra-atacar. Disposto a liberar sua fúria após as repetidas humilhações sofridas durante os treinamentos, o auge com o nome de sua mãe envolvido.
Só que num instante a lâmina fria de seu instrutor estava muito próxima de cortar sua cabeça. Sua espada voara para o outro lado.
– Escute aqui, garoto: quero que fique bem claro que sou um inimigo perene de todos os demônios! – Saliva respingava no rosto do pupilo, com Leovigild esbravejando tão perto dele. – Eles acabaram com a minha vida por duas vezes, pois me induziram a pecar terrivelmente, primeiro com quem eu mais amava, depois me levando a abandonar a Igreja. Até o dia do Juízo, minha missão, que por culpa minha e deles se tornou solitária, será a de caçar e matar todos os demônios e magos das trevas. Não vou descansar nunca! Por isso, também não admito que pronunciem a meu respeito absurdos como o que você acabou de dizer.
– Pode me matar se quiser. – Mais para afrontar Leovigild do que por desapego à vida que Sigmund respondeu com estas palavras. Talvez, apesar dos batimentos acelerados, tivesse certeza que o mentor não iria matá-lo.
– O que eu ganharia matando um verme como você, que não quer proteger a própria mãe? Você não vale nada, moleque. – Empurrou o rapaz com força e o derrubou no chão, uma cena inconcebível ao se levar em conta os dois portes físicos. – Apesar que eu também talvez não valha nada. Minhas mães, sobretudo a mãe de todos os fiéis, que o digam! Minha única esperança de salvação reside no arrependimento. Cristo é tão maravilhoso que abre caminho para que mesmo miseráveis como eu e você possam se redimir!
– Qual a sua ligação com a Igreja? Por acaso é alguma espécie de profeta? Não se comporta como um homem santo.
Como réplica, levou uma cusparada no rosto.
– Pegue sua espada e vá salvar sua mãe! Vá logo, antes que seja tarde demais.
Enojado, Sigmund limpou a face com a mão, retirando a saliva e o catarro.
Contudo, aquele velho lhe inspirava uma estranha confiança e uma esperança remota por debaixo do desespero de uma alma dilacerada.
Sem sentir pena de si mesmo, levantou-se, recuperou a arma e, não sem antes lançar um olhar firme para o experiente preceptor, que lhe deu as costas, partiu, correndo de volta para o vilarejo.
"Leovigild percebeu que amo minha mãe acima de qualquer coisa. Não passaria de um tolo se desprezasse sua advertência, mesmo que o jeito dele seja bruto. Ele sabe e sente coisas inacessíveis para mim ou que às vezes sinto, porém não posso traduzir, compreender ou expressar. É por isso que sou tão ruim com a espada e ele é tão bom. Ainda que seu castelo seja uma caverna, ele nunca será um sujeito pacato do campo como foi o homem que teria sido o meu pai. Não consigo vê-lo como um fraco, mesmo que se condene pelo que ainda não conheço. Sua severidade com os outros é reflexo de sua severidade consigo mesmo. Se alguma coisa realmente o acovardou no passado, se não se trata de algum estranho jogo ou teste, deve ter sido algo terrível, indescritível em seu horror." E para evitar pensar no que poderia ser ainda pior do que o que estava ocorrendo, direcionou o foco de sua mente para Karl von Rosenberg. Era difícil acreditar que o cavaleiro pudesse fazer mal a Frida. "Se alguém está visitando a minha mãe na minha ausência, não pode ser o senhor Karl. Nisso o velho tem que estar equivocado. O senhor Karl agiu comigo como se fosse meu verdadeiro pai, e nos treinamentos era muito mais gentil do que Leovigild, com a mesma competência, de forma distinta. Por que sugerir agora que ele se aproveita da minha confiança para abusar da minha mãe? Ela nunca me mencionou nada. Nunca disse uma única palavra contra o senhor Karl! Jamais precisei de um pai, mas o tive, de alguma maneira. O velho deve ter visto errado. Não é possível que esteja com inveja! Deve ter visto outro causando dor a ela, confundindo-o com o homem que mais admiro. Por essa razão talvez ela esteja diferente. Então vou matar o desgraçado que estiver lá! Mas o mais provável, é sim o mais provável, é que tudo isso seja uma espécie de teste. Leovigild o está caluniando de propósito, mentindo para me testar; para verificar se sou ou não um covarde. A lição será para que eu desconfie mesmo das pessoas que amo? Ou Leovigild quer me enlouquecer, e irá me recriminar por desconfiar de um homem honrado, por meu espírito ser sujo e ver o mal em tudo e todos? Que direito tenho de desconfiar assim? Se alguém está realmente se aproveitando da minha mãe, deve ser outro homem. Talvez Gunther, que nunca simpatizou comigo! Se for isso, vou acabar com ele, vou arrancar suas tripas e mostrá-las ao senhor Karl. Comprovarei sua inocência, ainda que me pareça que vou sempre mostrar imaturidade e ingenuidade do ponto de vista de Leovigild, que aparenta possuir uma tão sábia malícia..."
"Posso até ser um tolo ingênuo. Só não posso desconfiar do homem que se tornou meu pai. Não mais! Não vou cair nessa arapuca. Minha mãe só deve estar doente. O desgraçado me condenou por não querer salvar a minha mãe, mas pode estar querendo medir o meu apego, ou o meu amor. Não sei mais o que o velho maldito quer! Se é um seguidor dos demônios ou o próprio diabo, então está tentando me jogar contra o homem que se tornou meu pai e destruir meu amor por ele. Apesar de eu ter quase certeza que não. O ódio que ele emana pelas criaturas infernais parece mais real do que a morte, tão vital para ele quanto um segundo coração", chegou em casa destruindo a porta de madeira a chutes e golpes de espada e encontrou, para seu assombro, Frida e Karl nus na cama, ela com o rosto vermelho e encharcado de suor e ele com uma espada curta e afiada na mão direita.
A angústia, a vergonha, o espanto e a raiva extrema eclodiram, com espasmos pelo rosto e pelos braços de Sigmund.
Von Rosenberg foi rápido e rasgou a garganta de Frida, eliminando qualquer possibilidade de um filho bastardo com uma camponesa que pudesse vir a ameaçar seus herdeiros legítimos. Lançou-se para matar o rapaz, que não deveria ter visto nada. Pretendera atribuir o crime a algum bárbaro, ladrão ou demônio. A testemunha precisava ter a vida encerrada, apesar de seu prodigioso potencial.
Todavia, como se fosse um movimento de Leovigild, Karl não enxergou nada: uma esquiva e a cabeça de um dos mais renomados cavaleiros do barão de Salzburgo despencara, seguida pelo restante do corpo.
O rapaz liberou um urro inaudível, escancarando a boca trêmula sem que qualquer som saísse. Não havia escolha, a não ser correr em desespero de volta para o bosque. Seria acusado pelo assassinato de sua mãe e do cavaleiro! Justamente as pessoas que mais amara. Leovigild, àquela altura, seria o único capaz de ajudá-lo.
"Ele estava certo, aquele desgraçado! Ele não mentiu. Será que estou diante de um terrível mago das trevas, que arruinou a minha vida e irá me submeter à escravidão em troca da minha sobrevivência? Eu só nasci mesmo para sobreviver. Logo os cavaleiros do castelo virão me buscar, ávidos pela cabeça do camponês que assassinou Karl von Rosenberg, um monstro que não poupou nem sua própria mãe, pisando em cima da boa vontade e do carinho de um homem honrado! Mas se Leovigild sabia de tudo, por que nada fez? Aquele velho nunca vai me amparar", só que as palavras de desprezo e as broncas eram as únicas coisas que lhe permitiam desviar o pensamento do terror da morte certa e direcioná-lo, por alguns instantes, para a pureza da raiva. "A forca, a fogueira, o empalamento… qual a pior pena para o assassinato de um cavaleiro do barão de Salzburgo? E a minha mãe? Mal consigo pensar no sofrimento dela agora. Estou preocupado demais comigo mesmo e com a minha solidão. Tenho que fugir!
Ah, se tivesse um pai! Mas nunca tive um. Nunca terei um. Será um castigo de Deus pelo fato de ter renegado o único Pai que realmente existe? E se Ele existe, por que é tão indiferente? Por que não socorre seus filhos?" Faltava-lhe ar. Precisava devorar o vento. Já percorrera distâncias maiores e a uma velocidade superior, mas era diferente. Não sofrera, em ocasiões anteriores, com a visão quase constante do rosto aflito e molhado da mãe, carregado de humilhações, e que em sua imaginação se retorcia com ódio por todos os homens, inclusive pelo próprio filho, que prometera protegê-la e nada fizera.
O semblante de Karl Rosenberg, por sua vez, se dividia em dois, fracionado entre um lado incandescente e maníaco e outro tépido e sereno. A aposta no talento; a aposta do filho. Sentimentos sinceros, devastados pela lascívia sanguinolenta?
Só não via Leovigild, com o qual deu de cara. Parou de correr e encarou-o. Não sabia se com ódio ou se implorava por ajuda.
Levou mais uma cusparada, desta vez entre os olhos.
– Você é um covarde. Está pensando só em si próprio. Na sua solidão, na sua dor, nos seus desejos, no medo de morrer! E a dor da sua mãe? E a solidão que ela sentia? Ela está morta, enquanto você vive, seu miserável. Você é o pior de todos.
No desespero, pareceu-lhe que tudo era culpa de seu desejo. Recordou-se de seu pecado, do incesto por diversas vezes repetido em sua mente durante a vigília, embora sempre reprimido às pressas. Recordou-se de alguns de seus sonhos. "Ela era sua mãe, mas também era bonita e atraente", sussurrava-lhe a voz do que parecia ser um demônio encorrugido, que exalava um cheiro de suor azedado, na verdade proveniente do velho cavaleiro, cujas palavras soavam como bofetadas. Não resistiu mais e se jogou para abraçá-lo.
– Você algum dia teve um pai? Pode entender o que é ter perdido um pai antes mesmo de ter um?
– Saia de perto de mim, desgrude daqui! – Empurrou o rapaz, que só então limpou o cuspe entre os olhos. Tentaria também secar as lágrimas. – Vou lhe dizer a verdade, a única que existe: somos um bando de filhos de putas, não existe uma que valha a pena, por isso não se vanglorie da sua mamãezinha, que nunca foi nenhum exemplo de virtude. E os homens também não prestam, como você viu pela atitude de Von Rosenberg. Só tinha a fachada nobre. No fundo era um verme que rastejava na porra derramada na terra, e lambia essa porcaria, sem o menor receio, sem nenhum escrúpulo! O único que vale a pena, e que pode ser duro, nos castigar quando merecemos, por isso temos raiva Dele, mas que nos deu a vida, e apesar de tanto sofrimento quase nenhum de nós quer morrer, a menos que seja muito idiota, é Deus. Ele é o Pai a quem devemos respeito, o único que persiste. Todos os outros desistem no caminho! Ele é perfeito, enquanto nós somos merda! Que só pode ser redimida e transformada em adubo através Dele.
– Mas Deus é distante, inacessível! Por mais que me fale dessa bondade grandiosa, que está acima inclusive da nossa moral comum, que pode nos ensinar pelo sofrimento, como posso ter certeza de que ele existe, senti-lo, ouvi-lo, conhecê-lo, falar com ele? Tenho a impressão que ele é como o meu pai, que me abandonou.
– Você é mesmo um moleque mimado. Se Ele não existisse, acha que nós ainda existiríamos? Os demônios teriam comido as nossas carnes e lambido os nossos ossos! Não existiria ninguém capaz de nos defender. Jesus seria apenas um homem e não teria ressuscitado!
– Mas quem é capaz de nos defender? Perdi tudo o que tinha, nada mais tem valor. Posso ser preso, condenado e executado a qualquer momento.
– A sua pergunta real é “quem é capaz de me proteger?”. Molequinho egoísta! Não sabe o que é a vida. Não se arrependeu de nenhum de seus pecados! – Acercou-se e agarrou-lhe o pescoço.
Sigmund tentou se livrar, arrancar as mãos de Leovigild com as suas. Mas a força do velho era tamanha que seus braços adormeceram. O resto de seu corpo tremia. Estava impotente.
As veias do instrutor saltavam como rios sólidos. O camponês se parecia com um graveto, um brinquedo frágil nas mãos de um gigante, que poderia reduzi-lo a serragem a qualquer momento. Fechou os olhos que tinham se arregalado.
– Ela nem era sua mãe, para começar. – Ao ouvir aquelas palavras, um calafrio terrível perpassou a pele de Sigmund. Parecia querer se entranhar em sua alma para rasgá-la. Um sorriso cínico se desenhou nos lábios de Leovigild. – Você achava mesmo que ela podia ser sua mãe, e o seu pai um camponês fracote? Olhe para si mesmo! É em tudo diferente do que eles eram! – O rapaz, entre ódio e lágrimas, sentiu sua força crescer. Seu corpo entrou em ebulição. Seu sangue marchava para a guerra do fim dos tempos. Contudo, ainda era pouco para resistir a Leovigild.
– Você não sabe de nada. – Conseguiu balbuciar e cuspiu no rosto do velho. – Como poderia saber de tantas coisas?
– Ora, ora, agora mostra que tem algum caráter! Estará em vias de deixar de ser uma larva nojenta, uma alma de galinha magra? Não pode me vencer, não é páreo para mim! E mesmo assim me enfrenta, e teve forças para jogar saliva na minha cara. Merece que o solte. – De fato o largou.
Tremendo e fervendo de raiva, o rapaz se lançou desta vez para acabar com o instrutor usando suas próprias mãos, porém uma esquiva e uma torção certeira bastaram para que este quebrasse seu pulso direito.
– Vamos, lute comigo! E terá suas respostas. – Os movimentos de luta se repetiram e Sigmund ficou com os dois braços inutilizados.
Passou a cuspir sem parar. E desta vez Leovigild não resistiu mais, recebendo a chuva de cusparadas.
Ao parar, Sigmund desabou no solo e misturou seu rosto e lágrimas à terra.
– Cansado? – inquiriu Leovigild. – Até que enfim se mostrou um aluno digno. Seu grande imbecil! Posso ler certas coisas nos indivíduos fracos porque tenho o sangue de Cristo em minhas veias, que me impede que a gentinha me esconda a verdade. – A saliva e o catarro no velho foram secando e caindo, escorrendo ou desaparecendo.
– Você só pode ter o sangue do diabo!
– Não. Na verdade, nem todos os meus companheiros têm esta minha capacidade. Cada um de nós é agraciado com diferentes dons. No meu caso, quando estou bem e concentrado, consigo, se assim desejo, captar as informações de vida de uma pessoa, desde que ela não possa me travar por ser um bruxo ou algo do gênero. Faço isso através dos sentimentos e lembranças que ela emana, que nela estão registrados. Vi a sua mãe de longe e isso me bastou. Não que queira isso! Sempre detestei astrólogos, cartomantes e todas as coisas do tipo! Respeito apenas os profetas da Bíblia, que, no entanto, não tratavam de assuntos profanos e sim da vinda do Messias. Contudo, foi este o presente que recebi de meu Pai e de Cristo. Não posso renegá-lo.
– Também pode vislumbrar o futuro?
– Fique de pé e pare de rastejar como um verme! – Ameaçou chutar a cabeça de Sigmund, mas não o fez; o rapaz teria recebido o golpe em cheio. – Pelas emoções de alguém, também posso traçar linhas e deduzir qual será o futuro dessa pessoa. O passado é mais fácil, já foi cumprido, os fatos estão lá, leio e isso basta, são fatos. É algo pronto. O futuro é difícil porque está em construção e eu respeito o livre-arbítrio. Posso discernir tendências. E a sua… Bem, a sua, moleque, é se tornar como eu. – Os olhos de Sigmund brilharam. Ainda sem se levantar. – Não se preocupe. A escolha de ser um velho tremendamente feio foi minha. Isso me facilita as coisas, afasto as tentações. Você será sempre jovem e bonito! Só não será mais um verme por dentro. Cristo não permitirá isso. Terá a sua dignidade. Desde o primeiro dia eu sabia disso, que você terminaria assim.
– E por que não me disse?
– E deixar que o orgulho subisse às alturas antes que estivesse preparado? Cristo ressuscitou depois de inúmeras humilhações, físicas e espirituais, e você queria se tornar melhor do que é sem sofrer nada? Quanta pretensão! Perto do que Ele passou, você sempre viveu num paraíso! Vamos, moleque, agradeça por receber um presente de Deus! Mas ainda assim não se trata de uma obrigação e sim de uma proposta. Quer se tornar um cruzado?
– Um cruzado? Já ouvi falar deles. Por outro lado, nunca acreditei muito. Afinal, não acreditava em Deus. Só pensava que pudessem ser homens muito fortes e extraordinariamente bem treinados para matar demônios.
– Todo treinamento humano não seria o bastante. É necessário o sangue de Cristo, isso lhe garanto. Quanto a mim, sou um cruzado desertor. Na verdade, não passo de um covarde. – Moveu seu olhar para a esquerda, desviando-o dos olhos de Sigmund. – Você não será apenas como eu, espero. Terá que ser melhor do que eu. Que a minha miséria lhe sirva de modelo às avessas.
– Por que desertou?
– Foi o medo. Eu lhe disse que sou um covarde. Quantas vezes terei que lhe repetir? Apesar que não um covarde como um antigo companheiro meu, que nos abandonou em pleno campo de batalha! Aquele sarraceno imundo! – Cuspiu na terra. – Eu apenas não pude suportar a presença de um dos soberanos do Inferno. Dias depois da batalha contra ele, ele ainda estava comigo! Ainda me aterrorizava. Por isso deixei a Igreja. Abandonei a mãe dos fiéis. Para que Belial não me perseguisse! Mas, que fique claro, hoje me arrependo. – Ergueu a cabeça e soltou um suspiro. – Se pudesse, não teria tomado uma atitude tão estúpida! Sou um imbecil também. Belial continua a me perseguir. Em meus pesadelos! Mas não posso voltar à Igreja, pois a pena para um cruzado desertor, que deixa para trás o corpo de Cristo sem uma justificativa realmente séria que por um longo tempo o impeça de regressar, como, por exemplo, estar no cativeiro de um demônio, é a morte, com a entrega ao braço secular. E eu não quero morrer. Não pense que por amor à vida, embora não a odeie, é claro, pois odiá-la é coisa de imbecis ainda maiores do que eu. E sim porque não é uma mentira o que lhe disse sobre ser minha missão caçar e matar os seres das trevas! Continuo sendo um cruzado! Mas devo fazer sozinho o que é preciso. Já basta de repouso! É hora de voltar a cumprir meu dever. O barão abusou dos meus serviços. Mas eu precisava de um tempo apenas entre humanos. Ou achava que precisava disso.
– E eu cheguei realmente a cogitar que você fosse um demônio – disse isso sobretudo como uma provocação.
– Acho que na verdade fez muito bem ao pensar isso e me perguntar se sou um feiticeiro. Assim como me fizeram um grande bem todos os que alimentaram boatos sinistros a meu respeito desde que cheguei aqui. – Tornou a baixar o olhar. – Rebaixando meu orgulho. Algo que precisa morrer quando servimos a Cristo. Caso contrário, os demônios nos possuem. Essa é a grande dualidade da vida de um cruzado, e o aviso, caso queira seguir esse caminho: quanto mais próximos estamos do Céu, mais o Inferno nos assedia. Lembre-se da tentação de Cristo no deserto. Sendo mais objetivo, se você é ignorante e desconhece essa história, o sangue do Salvador despertará em seu corpo e em seu espírito grandes poderes, mas se a sua moral for distorcida, se ceder às provocações de Satanás, toda a benção se esvairá num instante e um demônio possuirá seu corpo e fará a sua alma em pedaços. O que me diz?
– Se não aceitar isso, estarei morto em pouco tempo. Ainda mais com os braços quebrados.
– Ainda pode fugir. Posso conter qualquer um que vier atrás de você.
– Faria isso por mim?
– Claro! – sorriu com marcado cinismo. – Mas se cruzasse outra vez com você algum dia, teria que se cuidar e sair correndo para não ficar coberto de cuspe. E faria questão de bradar a todos: “ali está um verme que queria transar com a própria mãe!” Mesmo que não fosse realmente sua mãe.
– Posso dizer que você é genial, santo e ao mesmo tempo monstruoso.
– A minha fé é um pouco violenta. Mas está nas Escrituras que o Reino dos Céus pertence aos violentos e, além disso, você é um moleque! Gente da sua idade aguenta tudo. Mas pode pensar um pouco antes de me dar a sua resposta.
– Eu aceito.
– Gente da sua idade também não costuma pensar. Garoto apressado! Espero que não se arrependa. Não pense que será um herói.
– Não penso nisso. Quero apenas conhecer meu Pai de verdade.
– Se é assim, fez a escolha certa! É menos idiota do que parecia. Venha comigo, então. Siga-me. – Leovigild lhe deu as costas e começou a se afastar.
– Só mais uma dúvida. – Pôs-se de pé apenas com a força das pernas. Leovigild parou.
– Se é sobre seus braços, o sangue de Cristo irá curá-los. Isso se um bom unguento e boas talas não forem o bastante.
– Não é sobre eles. É sobre o fato de você ser um cruzado desertor. Como vai me apresentar à Igreja? Se fizer isso, será encaminhado ao patíbulo.
– Não seja preguiçoso. Ainda tem suas pernas! Com elas, chegaremos em Roma. Irei guiá-lo até a Cidade Eterna. Quando estiver lá, como também ainda tem boca, apenas solicite, no Palácio de Latrão, uma audiência com os padres da Ordem do Graal, os assim chamados padres vermelhos. Diga que Leovigild o indicou. A essa altura, já estarei longe. Mas muito provavelmente um cardeal de sorriso ambíguo, chamado Jonathan, virá falar com você. Se a minha vaga ainda estiver disponível, ela será sua. Um bom treinamento você já teve. E ainda poderemos ter um pouco mais, se não for preguiçoso! – Fechou a mão esquerda cheia de anéis e Sigmund, a passos tensos, crocitantes os do velho cruzado, seguiu-o rumo à profundidade da floresta.
A cada avanço, a escuridão só aumentava.
***
Anos depois, já como cruzado, Leovigild continuava a ser uma presença constante em seus pensamentos, ainda que nunca mais tivessem se visto. Em todo momento de erro ou mesmo de acerto, ouvia as recriminações do peculiar instrutor, por quem não podia deixar de sentir uma raiva contraditória. Mediam forças em seu interior o pássaro branco da saudade, de olhos azuis esmaecidos, a ursa do abandono, com seu filhote morto sob suas patas, o leão da admiração, protetor da máscara e suas sombras, e as cobras rastejantes da mentira, carregadas com o veneno do medo.
Leovigild fora um grande presente de Deus em sua vida, fosse Deus como fosse: ao que parecia, não um pai com um coração cheio de ternura, mas sim um fogo consumidor, terrível e grandioso.
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