– O relatório está pronto, Sir Wallace? Foram cumpridas as obrigações do mês? – O barão de Northend indagou de sua poltrona estofada, posta no pedestal de um amplo salão de paredes ornadas por tapetes com cenas de caça e de guerra.
Às suas costas, havia o estandarte com o escudo da família, que apresentava um ser com a parte inferior de serpente e a superior de águia, enrolando-se em uma cruz, em posição de ataque.
Sir Edgar dos cabelos de fogo. Era esse o apelido do barão entre seus vassalos.
– Os servos estão trabalhando muito, meu senhor – respondeu seu interlocutor, um dos xerifes de Northend, que se distinguiam pela insígnia de uma águia dotada de imensos olhos, ostentada nas vestes que recobriam suas armaduras. Os elmos arredondados podiam tanto deixar todo o rosto exposto como apenas os olhos e o nariz, quando os fechavam. – Os relatórios que me foram enviados falavam do afinco, da dedicação e da devoção com que estas pobres almas se entregam ao trabalho na terra, como se este lhes garantisse um lugar no Paraíso, o que não deixa de ser verdade, em parte, afinal Deus abomina a preguiça. As talhas foram devidamente entregues, assim como pagas as banalidades para o uso dos moinhos, fornos, celeiros e pontes. Os tostões de pedra foram para as capelas locais e nenhum burguês escondeu seus filhos menores para deixar de pagar as capitações. Nossos fiscais entraram em cada casa e revistaram todos os cantos.
– Os que sempre perturbam mais são os burgueses. – Trazia em sua cabeça um diadema banhado a ouro, com uma esmeralda à frente e um rubi na posição da nuca. – Às vezes tenho minhas dúvidas que sejam realmente católicos.
– Muitos de fato não o são, meu senhor.
– Stadtluft macht frei! “O ar livre da cidade”, diria um amigo germano meu, o barão de Hölderlin! Ainda assim, estão nas minhas terras, e precisam pagar por ocupá-las e gastar seus recursos. De que vale a liberdade se o homem a desperdiça com a luxúria e a feitiçaria? Tem observado as seitas pagãs? Não quero que o papa envie cruzados. Quero mostrar que posso resolver isso sozinho, que sei cuidar dos meus domínios. Provar que sou um cristão nas ações, não apenas nas palavras.
– Há mais apóstatas e hereges do que podemos imaginar e eles sabem se esconder. Estamos fazendo o possível, senhor. Nas cidades, propagam-se feito ratos.
– Dessa maneira, vão começar a pensar que não sou católico o bastante, que por minha falta de virtude o mal é que se espalha e se torna universal. Não posso permitir isso.
– Ao menos não têm sido registrados ataques de demônios em suas terras.
– Porém isso não tardará se não formos enérgicos o bastante. Minha ordem é para que qualquer suspeito seja investigado e, se comprovada sua filiação a qualquer seita blasfema, queimado em praça pública.
– Estamos trabalhando nisso, meu senhor.
– Ainda quero ver os resultados do seu trabalho. Estão fiscalizando muito bem a parte tributária e as obrigações de camponeses e burgueses. Mas sabem que sua missão não se limita a isso: os senhores são zeladores da paz de Cristo. Qualquer movimento que turve essa paz, seja causando prejuízos financeiros, seja afetando a moral e a ordem entre os habitantes, deverá cessar de imediato.
– Que assim seja, meu senhor. Estou às suas ordens. – Sir Wallace, que era um homem atarracado e fisicamente muito forte, se curvou ao acatar o que fora dito. Respeitava e temia o barão, conquanto não demonstrasse isso, pois parecia sempre confiante e tranquilo.
Após combater ao seu lado algumas vezes, durante rebeliões de servos, massacres de hereges ou ataques de bandoleiros ou invasores escoceses – o que dava no mesmo –, se perguntava se não seria mais acertado apelidá-lo de Edgar dos cabelos de sangue, tendo-se em vista a sede de exterminar os que perturbavam a ordem sagrada das coisas imposta por Deus. Dissera, em certa ocasião, que até beberia o sangue dos revoltosos e heréticos para impedir que este manchasse a terra, produto imaculado do Criador, que fornecia o alimento e a estabilidade para os pés, se pudesse transformá-lo em água ou vinho em seu corpo, porém não queria se arriscar a ingerir veneno.
Por duas vezes, irrompera em rituais não cristãos proibidos e, acompanhado de seus cavaleiros, após decapitar os inimigos da fé, mandara queimar as carnes e ossos impuros e varrer todos os vestígios de sangue. Espargira as cinzas, validando dessa forma, depois de ficar admirando as fogueiras, onde parecia observar seu reflexo, a alcunha de cabelos de fogo.
Ao final dos extermínios, de fato os fios em sua cabeça davam uma impressão de serem mais ígneos, carregados de uma fúria e uma ânsia purificadoras que se espalhavam para o seu olhar, as chamas secando o sangue.
– Trouxe para você, meu amor! – Pouco depois da saída do xerife, enquanto o barão permanecera ali, pensativo, recordando os exemplos de seus falecidos pais, que o tinham instruído a ouvir todos os dias sem falta a santa missa, quando possível por três vezes ou mais, tendo seu pai lhe ensinado a brandir a espada como uma cruz capaz de cortar, necessária para o martírio dos ignorantes, e sua mãe lhe transmitido a essência e importância da oração, sem conseguir entender por que ainda existiam pagãos, sendo que poderiam ter tudo e viver na absoluta paz ao abraçarem a verdadeira fé, entrou sua encantadora mulher, Melinda, em um largo vestido azul de mangas compridas e gola alta e com um véu em sua cabeça. Este era branco e encobria seus cachos negros. Em Northend, as mulheres deixavam apenas os rostos expostos e, mesmo assim, Edgar temia a imaginação luxuriosa dos servos quando os olhos destes encontravam os esplendores celestes do rosto de sua consorte. – Imaginei que estivesse com fome, e me parece preocupado. – Viera com uma cesta com três maçãs. Sua voz era gentil e aveludada.
– Muito obrigado. Porém sua companhia sempre será mais doce do que qualquer outra coisa. – Formavam um belo casal: de um lado o porte majestoso e o andar imponente do marido; do outro o elegante recato de Melinda, com seus passos e gestos delicados. Suas mãos, encobertas por luvas, evidenciavam um ágil requinte. – Aplaca a fome e alivia todas as preocupações.
– No que estava pensando?
– Nos absurdos e atrocidades do paganismo. E também me lembrando dos meus pais: às vezes é como se minha mãe fosse aparecer a qualquer momento para me fornecer seus conselhos e seu apoio. A guerra contra os inimigos da fé com frequência me desanima. Acredito que seja o Demônio me tentando a desistir para que possa ter um terreno livre onde depositar suas sementes.
– Mas você não pode ceder. Tem que persistir, como Cristo nos quarenta dias no deserto. Ou Moisés fugido do Egito. E mesmo que a sua mãe não esteja mais entre nós, sabe que o observa do Paraíso com orgulho.
– E você está aqui. Sempre abnegada e com as palavras certas. Peço desculpas por nem sempre lhe dar o devido valor.
– O que importa é o valor que temos aos olhos de Deus. Isso já me satisfaz.
– Agradeço-lhe, minha senhora. – Sem se levantar, recebeu as maçãs e levou a primeira à boca.
Seguiu-se uma dentada firme e a esposa ficou ali sorrindo, observando a lenta mastigação, o vermelho da casca da fruta sumindo entre o branco dos dentes.
Ao depois vê-la sair de cena de costas para ele, Edgar se sentia protegido e tranquilo, certo de dominá-la, de que não havia nada que pudesse surpreendê-lo. Tratava-se de uma sensação de afável segurança.
O interior de Melinda, contudo, era dinâmico, e seus olhos afiados o bastante para retalhar qualquer fruta em fatias pequeninas sem grande esforço.
***
Na cidade de Warcester, situada em terras de Northend já bem próximas da Escócia, o Sol começava a se pôr.
Um homem com aparência de mendigo andava pelas ruas, observando as carruagens que passavam. Era fitado com ojeriza pelas mulheres mais ricas, que usavam vestidos compridos, decotados os das solteiras.
As cores mais comuns eram o rosa e o verde-claro, às vezes o vermelho, e com frequência estavam adornados por longas fitas ou palatinas.
Os cavalos despertavam-lhe mais simpatia do que aquelas damas e donzelas, além de alguma pena, tanto que se atirou à frente de um coche.
– Ei! Saia daí, seu velho nojento! – gritou a burguesa do alto da carruagem descoberta, de estofo rosa, uma mulher de meia-idade que devia ser a esposa de algum comerciante próspero. – Ou vou ordenar que o cocheiro continue em frente! Gente da sua laia tem mais utilidade debaixo da terra. Se quer comer, por que não trabalha em vez de ficar pedindo para os outros? Vagabundo!
– Se você honrasse o crucifixo que traz no seu pescoço, pensaria de outra forma.
– Quer dizer que fala! Por que então não cultiva um pouco de modos? Não deveria atrapalhar o caminho das pessoas que trabalharam para conseguir o que têm e muito menos tratar uma dama casada por você.
– Esse tipo de tratamento vai fazer alguma diferença no dia do Juízo? Você não é nada. Ainda paga tributos para o barão, que também não trabalha, aliás, considera o trabalho coisa de plebeus sujos. E mesmo que eu tivesse títulos, não pensaria diferente a seu respeito, pois de qualquer forma nunca teria trabalhado: teria herdado; e, na realidade, decerto o seu marido que trabalhou.
– Cocheiro! Passe por cima desse miserável. – As pessoas em volta, algumas das quais já haviam acompanhado espetáculos semelhantes, afastaram-se a passos rápidos.
O andrajoso mendigo sorriu e coçou sua barba, que chegava ao centro do peito, comprida como os cabelos, que passavam do meio das costas, brancos. Seus olhos denunciavam uma ebriedade ácida. Talvez atraísse alguma simpatia, mas ninguém interferiria.
O surpreendente foi os cavalos se negarem a seguir adiante. Dada a ordem para avançar, apenas ergueram as cabeças e os cascos.
– Não estão me obedecendo, senhora. – O cocheiro era um homem jovem, mas de aparência apagada, com cabelos que lembravam palha e a tez esquálida, sem o menor entusiasmo por nada.
Talvez por isso tivesse sido escolhido: teria passado sem titubear pelo indigente, se não fosse pelos animais.
– Isso é ridículo! Devem estar com nojo também, por causa do mau cheiro! Desvie então!
Mas os cavalos continuaram a se recusar em ir adiante.
– Quando voltar para casa, vai se lembrar que nunca foi nada! – O mendigo correu para um beco, deixando-a assustada, sem forças para qualquer tipo de resposta, receosa que pudesse ter encontrado um demônio… ou um feiticeiro.
Naquele canto marginal, sem ser visto por ninguém, o indigente tocou uma parede com a palma da mão esquerda e esta se abriu. Revelou uma passagem com uma escadaria. Desceu por esta na mesma velocidade alucinante, sem ofegar ou aparentar o menor sinal de cansaço. A passagem se fechou às suas costas e a escuridão não o atrapalhava, tanto que chegou a uma porta de madeira envelhecida à frente da qual havia um homenzinho de pele marrom muito enrugada, que lembrava uma casca de árvore. Seu nariz curvo apresentava duas verrugas, uma ao lado da outra, e seus olhos pareciam fechados de tão puxados, mas sua expressão era sorridente e usava um chapéu vermelho e camisa, calça e botas amarelas. Na mão direita, empunhava uma machadinha.
– Diga a senha. Por ser homem, precisa dizer a senha dos homens permitidos – falou com a voz rouca.
– A Lua é a deusa que não se deixa devorar pelo lobo – respondeu o sujeito barbado.
– Parabéns! Pode passar. – A criatura tirou o chapéu, revelando um único fio de cabelo, pendurou a arma a um gancho na parede e abriu a porta.
Logo na entrada, havia um caldeirão vazio; e do lado de dentro, enquanto o homenzinho, que na verdade era um elemental da terra materializado pela magia das moradoras daquele lugar, continuou do lado de fora, a porta se revelava de madeira polida e estava encimada por um disco lunar da mais pura prata.
– O que veio fazer aqui? – Das sombras destacou-se uma donzela de palidez deslumbrante, olhos mutantes (ora castanhos, ora verdes, ora azuis), nariz arrebitado e lábios grossos.
Seus longos cabelos pretos fluíam pelos ombros e vestia botas altas e uma túnica justa e sem mangas que valorizava suas curvas – um tipo de peça impensável ao ar livre em qualquer lugar de Northend –, toda em negro.
O homem, entretanto, não pareceu nem um pouco interessado em suas formas nem cativado por sua beleza fria, visto que ela não sorria. Viera tratar de negócios.
– Pandora! Vim para falar com você e suas irmãs. Onde estão Cibele e Friga?
– Pode falar só comigo. Não precisa incomodá-las. Depois passo o recado. O que quer?
– Sempre tão distante e direta! Seria bom que elas estivessem aqui para que pudessem me ouvir sem reducionismos e distorções.
– Está dizendo que não posso entender e repetir o que você diz?
– Não é nada disso. Apenas é natural do ser humano transformar as informações de acordo com sua bagagem e personalidade. Pelo seu modo de ser e agir, talvez fosse sucinta mais do que o necessário, mesmo compreendendo tudo perfeitamente. Estou sendo sincero, não se ofenda.
– Quanta grosseria, Pandora! – Outra figura feminina emergiu da escuridão. – Vamos oferecer um vinho ao nosso hóspede. – Dessa vez era uma mulher madura e rechonchuda, com aparência e calor de mãe.
– Que bom que veio, Cibele.
– Está aliviado, não é, meu querido? – Trajada com um largo vestido amarelo com alguns remendos, seu rosto apresentava um olhar ameno sem tanta cor e um sorriso receptivo.
– Com esse falatório todo, já me acordaram! O que você quer, moleque? – Por fim, Friga despontara, acendendo as dez velas ao redor com o sopro de sua cólera: uma velha encurvada e de semblante decrépito, que tinha apenas dois dentes na boca, mas seu hálito, o que era uma surpresa, se comparava a uma fragrância de flor de laranjeira. – Como sempre mal-educado.
– Não sou um bruxo polido. Vim do povo e não pretendo me refinar. Agora que estou aqui, posso despejar a merda. Vim falar sobre Melinda.
– A traidora! – Suas íris eram pretas como seu vestido longo de mangas compridas, os cabelos brancos e ressecados. – Veio nos aborrecer com isso? – Ante a mal-humorada Friga, as chamas nas velas às vezes cresciam e davam a impressão que se espalhariam e incendiariam o lugar.
Pandora observava tudo com atenção; Cibele estava disposta a escutar e falar, com um sorriso gentil: aquelas eram as três Irmãs Mestras da Ordem de Hécate, uma das grandes inimigas de Edgar, espalhada por toda a Inglaterra, porém cuja sede ficava em Warcester, não irmãs de sangue em suas origens, mas que ao serem consagradas como tais cortavam seus pulsos no ritual decisivo e os colocavam um sobre o outro de forma alternada, deixando o sangue escorrer e se misturar. O sangramento parava na hora certa.
Pandora, Cibele e Friga também não eram seus nomes verdadeiros, e sim títulos iniciáticos. Estavam destinadas a morrer na mesma data, em um dia 13 de Agosto, após 40 anos de atuação em que a donzela não envelheceria, a mulher madura permaneceria com a mesma aparência e a velha não morreria antes. A menos, claro, que alguma fosse assassinada, o que não era nada fácil pelos poderes que possuíam.
Selecionadas sempre uma jovem prodígio, uma bruxa experiente e outra com mais de setenta anos, quando acontecia de uma morrer antes pelas mãos de algum inimigo – eram imunes a doenças e ao envenenamento, seus corpos possuindo uma extraordinária capacidade de cura uma vez iniciadas –, as outras tinham de escolher logo uma nova irmã ou voltariam a ser humanos vulneráveis, seu tempo restante de vida encurtado pela metade. Por isso, precisavam zelar muito uma pela outra.
– O grupo de Melinda é mais perigoso do que imaginávamos – prosseguiu o mendigo. – Está caindo na mesma tentação dos cristãos: quer ser o único. – Uma Ordem feminina, as hecateias não precisavam ser castas, nem mesmo as Irmãs Mestras, mas não podiam revelar a homens profanos suas atividades e identidades místicas. Faziam o possível para mantê-los afastados da magia, a menos que, por acidente, não houvesse como esconder isso, e então o acesso era permitido sob restrições e sob comum acordo. Era o que ocorria nos casos de interação com bruxos como Belanus, o líder da Ordem de Cernunnos, o mesmo que parecia ser apenas um pedinte. – Uma vez que o barão tiver varrido todos os pagãos visíveis, ela planeja assumir o controle e estender seu domínio para o resto da Inglaterra. Mas, como é óbvio, só vai se livrar dele depois que tiverem um filho ou uma filha. De preferência os dois. Que a ajudariam, como dois polos messiânicos, a cativar os que são hostis a ela em sua própria seita.
– Seu idiota! Como aquele empolado ridículo poderia conseguir fazer algo contra nós além de eliminar uma ou outra novata, ou jogar na fogueira imbecis que não têm nada que ver, e mesmo assim caem em armadilhas tolas? Ele não pode conosco.
– Melinda e os dela vão auxiliá-lo magicamente, sem que ele perceba, até que mate a todos nós. Teremos pela frente tempestades desabando sobre a nossa gente enquanto nos perseguem, resultando da ira divina; precisaremos confrontar guerreiros mais fortes do que o normal; e isso pode ser só o começo.
– Isso é ridículo, na verdade. Ela não pode ser tão poderosa.
– Eles estão conjurando demônios.
– Está querendo sugerir que reles demônios tenham mais poder do que a Deusa?
– Eu não sei. Só sei que temos que combatê-los.
– E o que sugere, querido? – inquiriu Cibele.
– O barão precisaria ficar livre da influência de Melinda; ou morrer, o que seria bem mais simples. Não acho que resistiria aos encantos da Pandora.
– Não gosto de homens. São imundos. – A donzela retrucou com aspereza.
– Não deveria falar sem antes experimentar, filha. – Cibele sorriu sem malícia aparente.
– Não precisa gostar dele. Basta atraí-lo. E depois, quando estiver na sua teia, poderá matá-lo – emendou Belanus.
– E acredita que Melinda deixará isso acontecer? Acho melhor enviarmos à distância nossos elementais contra os demônios deles – sugeriu Friga.
– Não duvide de mim, irmã. Posso fazer o que precisa ser feito. Mesmo sendo algo desagradável. – Pandora ergueu a cabeça altiva.
Belanus sorria, mas ante o olhar severo da jovem, parou.
– Não seja soberba – retrucou a velha.
– Não se trata de soberba. Apenas sei do que sou capaz.
– Com toda essa convicção, fico mais esperançoso quanto às nossas chances de êxito. – Belanus balançou a cabeça em concordância. – E, quando Edgar estiver morto, Melinda terá que nos enfrentar diretamente, e nessas circunstâncias o combate será mais justo. Eles ainda não têm filhos e as ambições e divergências dentro da própria seita, além das desconfianças que vão resultar do fracasso, não permitirão que dure como líder do grupo ou como senhora de Northend. Os rivais internos perderão o respeito e o temor. Isso acontecendo, adeus grupelho, visto que a desgraçada é seu eixo, seu ponto de apoio. Os outros se digladiariam entre si depois de acabar com ela, abrindo caminho para nossa vitória definitiva. Melinda sabe que precisaria de mais tempo para disciplinar as feras à sua volta, e ainda não estaria pronta se o cristãozinho morresse agora.
– Um antro de demônios humanos! É o que me parece essa gente de berço à qual aquela desgraçada se uniu! Ou melhor, à qual retornou. Nem precisariam convocar os seres do abismo! Já são seres abismais. – Friga cuspiu no chão.
– Não vamos mais perder tempo. Que os preparativos sejam feitos hoje à noite. E amanhã será o grande dia, esteja ele onde estiver – sentenciou Pandora.
Existiam um respeito e até uma admiração mútuas entre ela e a velha, mas a donzela era detestada por Cibele, que invejava o apreço que Friga nutria pela jovem apesar de exteriormente lhe preparar sopas, mingaus e sorrir o tempo todo, como se fosse uma irmã caçula querida.
Contudo, a irmã do meio, que já abortara dois filhos, um de um cavaleiro e outro de um comerciante, odiava muito mais Melinda, que um dia lhe roubara a vida que desejara, como esposa de um homem rico e poderoso, através do qual teria podido ajudar a Ordem. A rival conseguira o barão de Northend! Claro que nisso a ascendência familiar também tivera um papel fundamental. Mais um motivo para abominá-la: a outra nascera em berço de ouro.
Melinda fora cotada para ser a donzela antes da Pandora atual; entrementes, traíra a Ordem e fundara uma seita mista de homens e mulheres, entre magos e bruxas que conhecera no castelo de Northend.
– O importante é sermos rápidos. Seduza-o e mate-o logo, Pandora, antes que Melinda ou algum lacaio dela encontrem você. – Quanto a Belanus, apesar de ser o líder dos seguidores de Cernunnos, Ordem irmã da de Hécate, exclusivamente masculina, não era o mago mais poderoso de seu grupo, este em verdade Sir Bruce Aleister, que somente não gostava de funções de liderança, pois preferia agir nas sombras. Belanus só pediria ajuda a ele em último caso.
– Não tenho medo dela. – Pandora gostava de evidenciar sua coragem, não demonstrando abalo ante palavras duras.
– Essa não é a questão. Melinda não pode encontrar o marido vivo! Ou, mesmo que você a mate depois, não pense que vai sair ilesa, e até o barão pode matar uma bruxa fraca e desencadear uma perseguição ainda mais violenta contra nós, com os herdeiros da maldita agindo nos bastidores.
– Acha que vamos deixar a nossa irmã sozinha? – indagou Friga.
– Eu não sei. Sou pela precaução. A confiança consola os ingênuos.
– Hm… antes você disse outra coisa. Homens! – A velha soltou uma risada engasgada, enquanto a Pandora se afastou com um ar de desdém.
À noite, o homem se foi. As três se retiraram daquele espaço restrito e puderam abrir uma porta para um aposento maior, onde havia um círculo mágico com um pentagrama em seu centro traçado no chão.
No leste e no oeste, viam-se duas estátuas de jovens de vestidos curtos, idênticas a não ser pelo fato de uma usar arco e flecha e a outra segurar um archote, ambas ladeadas por imagens de cervos. No sul, havia uma escultura que parecia viva, de uma mulher madura e maltrapilha com os olhos esbugalhados e os cabelos sem a menor disciplina, que portava uma tocha em cada mão e em sua testa um diadema brilhante; seus olhos, dois rubis, resplendiam nas trevas. No norte, fora posicionada uma estátua de três cabeças: cavalo, lobo e cão. Em frente a esta, Cibele veio trazer as oferendas da noite:
– É para vós, mãe Hécate. Nós vos veneramos e conjuramos.
Havia muitas frutas, entre maçãs, peras, uvas e ameixas, em uma cesta de vime. A bruxa de meia-idade, que tinha uma chave pendurada em seu pescoço, depositou-a ali.
Friga tinha em mãos um chicote e Pandora um punhal com uma bainha de ouro, na qual estava representado um lobo.
As três andavam descalças, as palmas das mãos e as solas dos pés tingidas com hena.
– Nós vos convocamos, rainha do mundo dos espíritos, megera dos mortos. – A velha fez o látego estalar com força.
– Peço que venhais a nós, mais amável das deusas! Vós que trazeis a luz e iluminais nosso caminho nas trevas. – Pandora desembainhou o punhal. – Vós que concedeis e retirais a vida, cuidais das crianças e zelais pelos mortos. Sabeis que não existem escolhas certas ou erradas, apenas escolhas, que são o que constitui a vida. Qualquer experiência é sagrada e valiosa. Todas as vivências acrescentam a nós sabedoria. Os desafios e obstáculos, por sua vez, servem para que possamos dar nossos saltos de fé, sem medo do desconhecido, apenas cientes que sabemos pouco. A culpa e a censura a nada levam: é preciso olhar em frente e amar o que passou.
Um ladrar de cães sucedeu as palavras da donzela, que caminhou até um altar onde havia uma bandeja de prata com carnes cruas de boi e cordeiro. Colocou-a diante da estátua tricéfala.
Manifestaram-se, a partir das sombras, três cães fantasmas: um mastim, um pastor e um sabujo, que pararam de latir e rosnar diante dos pedaços de carne à disposição. Fartaram-se.
Uma mão enrugada e macilenta surgiu no ar, no centro do pentagrama, sem que as bruxas demonstrassem a menor surpresa.
Cada uma delas já participara de muitos rituais. Pandora em particular cultivava a vívida recordação do marcante ritual da Lua nova que fora sua primeira iniciação, quando contava apenas seis anos e ainda se chamava Alícia.
Ao ar livre, entre as árvores de um bosque, cenário onde costumava se sentir mais confortável do que nos rituais fechados, recebera sua maçã da Friga de então, junto com as outras neófitas.
As meninas haviam formado um círculo em volta do caldeirão central e enrolado os frutos em panos pretos. Tinham tocado por cinco vezes o grande recipiente de ferro com as pontas de seus punhais consagrados – o que usava no presente o mesmo da iniciação primordial – e repetido as palavras da velha, pedindo proteção e bênçãos à deusa, para que Ela erguesse o véu e a pudessem saudar e reconhecer, requisitando a presença dos ajudantes espirituais e amigos de outras vidas. Apenas os que desejassem o bem do grupo penetrariam no recinto sagrado.
Após alguns instantes de silêncio, desenrolaram as maçãs, ergueram-nas em oferenda e depositaram-nas no altar de pedra reservado para tais ocasiões.
Então ali cada uma tivera sua vez de cortar a fruta com sua lâmina, para a seguir contemplar os pentagramas revelados na polpa de cada pomo e colocar as metades no caldeirão.
Uma vez que todas as maçãs haviam sido postas, a Friga acendera o fogo embaixo, despejara certas poções até ali fechadas em frascos e misturara algumas ervas mantidas em saquinhos. Tivera início a cozedura, ao término da qual haviam comido e bebido seu resultado sem se preocuparem de quem fora a fruta de que se alimentavam, já que as recém-iniciadas estavam irmanadas e precisavam confiar umas nas outras. Melinda, que na época tinha seus dez anos e já fora iniciada, recebera Alícia com um abraço terno antes da meditação coletiva.
– Desvendar o caminho em espiral. Eis a nossa meta. – No presente, a Cibele disse estas palavras enquanto entregava sua chave à mão que se adensara. – Somos mortais e imortais a um só tempo. – E uma presença espiritual que lembrava a estátua com olhos de rubis se materializou inteira, fazendo com que as três bruxas se ajoelhassem.
– Pedimos, ó Hécate, para que protejais nossa irmã e a oculteis dos olhos da inimiga e de seus aliados. Para que ela não encontre empecilhos para executar nossos planos pelo bem do reino e de nossa fé. – Friga pediu à figura muda e séria, que media mais de dois metros de altura e aterrorizaria qualquer incauto que ali entrasse de forma repentina.
– Atenderei ao vosso pedido. – Hécate falou com voz grave e altissonante.
Os cachorros lamberam suas mãos, e a deusa puxou o ar e emitiu um grito estridente. Atravessou as paredes e saiu correndo pela noite, seguida pelos canídeos.
Pandora foi envolvida por uma aura verde pálida que logo se tornou azul e em sua testa despontou, por um breve tempo, uma pequena esfera negra, que desapareceu após um suspiro. Sentiu-se mais plena e forte do que antes.
Meditaram por uma hora, silenciando as mentes, para na sequência encerrarem o ritual.
Friga não conseguia se livrar de um certo pesar. Não sabia ainda se odiar ou sentir pena de Melinda, que seria atingida pela fúria de Hécate. Lembrou-se de como a antiga aprendiz tinha gosto por preparar o incenso da deusa: usando um almofariz e um pilão, amassava um pouco de cardo, louro e menta com amor e afinco até quase reduzi-los a pó; depois agitava resinas de mirra e olíbano, adicionava os óleos de cânfora e cipreste e misturava tudo. Guardava a mescla numa jarra bem tampada e coberta e a deixava ali por duas semanas ou mais, antes de queimá-la em um bloco de carvão em brasa durante uma Lua cheia. "Os incensos de Melinda eram os melhores!" Até por isso não podia se conformar com a traição.
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