Nas fauces de um lobo orgulhoso de seu triunfo, sem nenhum respeito por suas anfitriãs, havia carnes que pertenciam a corpos ardentes, resfriadas de maneira precoce.
Um convento estava quase vazio: de vida. As únicas sobreviventes eram algumas das mais velhas, visto que outras haviam morrido de infarto devido ao medo ou envenenadas ao tocarem na
saliva pingada pelo monstro, enquanto as jovens, em sua maioria virgens, ou castas havia um bom tempo, jaziam inertes com à mostra os pescoços e braços mastigados e as vísceras espalhadas ao lado,
consumido o grosso da carne dos seios e das coxas.
O lobo monstruoso liberou uivos selvagens, que foram ouvidos por toda a cidade. A criatura era de dimensões descomunais e pelagem negra,
com uma única mancha branca nas costas, e convocava seu bando, formado por feras espectrais, que ou se materializavam ou penetravam em seres humanos. Transformavam-nos em licantropos sedentos de sangue.
– Vocês ouviram?– inquiriu o cruzado. – Ele está aqui.
– Não terão sido lobos comuns? – questionou o dono da estalagem. – Às vezes eles se aproximam da cidade.
– O senhor bebeu mesmo demais. Não sentiu o arrepio? Eu senti o espírito sanguinário. E meu escudeiro até que se saiu bem. – Olhou para Gilles, já
esquálido demais para empalidecer, mas que ficara frio feito uma pedra de gelo. – Pois bem, vou enfrentar o demônio que possuiu Paulus. Na verdade, ele deve ter vindo até mim.
– Está tão próximo assim? – O homem ficou receoso.
– Não tenha medo. A luta se dará fora desta hospedaria.
No entanto, a porta foi derrubada e entraram quatro licantropos furiosos. Rosnavam e salivavam e despedaçaram, com suas garras e dentes, as mesas e cadeiras que encontraram adiante.
Trêmulo, o jovem albino desembainhou a adaga que lhe fora presenteada por seu tutor.
– Perdão, acho que calculei mal – disse o cruzado, em tom fleumático. – O desgraçado foi rápido.
A lâmina de Gilles não fez nenhum efeito nos licantropos: quebrou-se ao contato com a pele dura dos humanos bestializados, cujas roupas haviam se rasgado com o crescimento desenfreado
da musculatura e de ossos e pelos.
Aterrorizado, o anfitrião, cambaleante pela bebida e suando sem parar, se jogou atrás de seu balcão. Pôs-se a rezar para que o cruzado saísse vitorioso.
A lâmina deste último, diferente da do garoto, retalhou em poucos segundos os inimigos. Cabeças, braços e pernas se separaram por vários lados.
– Estes são licantropos, Gilles. Ou lobisomens, como preferir. São seres humanos de estirpe inferior, pecadores ainda mais abjetos do que os que se deixam possuir por demônios,
que ao menos são seres dotados de algum livre-arbítrio, ainda que capazes de fazer somente o mal. Os licantropos se permitem ser possuídos por espíritos de animais… de lobos, para ser mais
preciso. São tão vulgares, tão incapazes de controlar seus baixos instintos, que espíritos de criaturas guiadas exclusivamente pelos instintos, sem nenhum livre-arbítrio, conseguem tomar
posse de seus corpos. Ao lutar contra seres tão desprezíveis, faça como eu: não tente livrá-los de sua maldição; é inútil; seria laborioso demais, não vale
a pena perder tempo e energia com bichos humanos. Mate-os e o mundo estará livre de outra praga. O fogo deles é de natureza inferior. Uma coisa é aceitar o lobo, outra se deixar dobrar por ele. Ignis inferioris naturae.
O albino experimentou sensações estranhas: uma vez aplacado o medo, não sentiu asco pela violência e pelo sangue. Pelo contrário: teve até vontade de
prová-lo.
Friedrich, terminadas as explicações, encarou-o com um sorriso misterioso.
Gilles receou que seu desejo soturno, sua vontade obscura, de beber o sangue de uma criatura impura, tivesse sido descoberto.
No entanto, o cruzado tinha um trabalho mais importante a fazer. Paulus, na forma de um lobo do tamanho de um boi, o aguardava do lado de fora para o duelo decisivo, aos pés da Lua.
Um brilho prateado irradiou da espada do cruzado antes que este se lançasse ao ataque e sentimentos inéditos se apossaram de Gilles, quiçá tendências adormecidas
em sua alma, que despertaram a partir do ódio por sua própria insignificância humana.
Todos os seres humanos eram feitos à imagem e semelhança de Deus? Como, se não passavam de pobres animais sem garras ou dentes afiados, apavorados, que tinham que viver
fugindo dos demônios, estes sim que aparentavam ser uma espécie superior? Como as criaturas das trevas podiam ter inveja de seres tão frágeis e famintos, ávidos não por carne e sim
por grãos de ouro? O monstro que durante tanto tempo o violentara foi ficando opaco. Nítidas as imagens de seus pais, do padre, da vizinha de pele bexiguenta que gostava de presenteá-los com seus pães
quase crus. Todos esses eram os verdadeiros culpados de sua desgraça. O demônio só tirara proveito da situação.
Nunca faria mal aos seus pais, claro. Prometeu a si mesmo que seria carinhoso e dedicado, sempre que voltasse… Nas raras vezes que voltasse. Afinal, para que iria querer retornar com
frequência? Ser um cruzado significava ter o sangue de Deus, voltar, portanto, ao mundo livre do pecado, ao Éden, recobrando a semelhança com o Criador, que fora perdida após o Pecado Original, que
tornara os demônios superiores, livres para tentar e possuir os homens, espíritos que rodopiavam em volta do pó e o usavam para moldar suas frágeis esculturas. Sorriu diante da perspectiva de punir
os que ainda se comportavam como Eva e Adão, fazendo prevalecer a cobiça e a ignorância, a luxúria e a tolice. Massacraria os que insistiam em ouvir a serpente, da qual lamberia o sangue depois de
lhe cortar a cabeça. Ainda era um homem, porém em breve seria muito mais. Posicionaria cada mão diante de um espelho e torná-los-ia fluidos
para tingi-los de sangue. Teve vontade de cortar seu pulso para observar seu próprio sangue, com a finalidade de verificar se era de rubor intenso ou se esquálido como sua pele, porém se deteve por sentir
frio e medo, ainda mais porque Paulus cravou os dentes no ombro direito de Friedrich.
Acompanhando o confronto por uma das janelas da hospedaria, Gilles ficou apreensivo. O guerreiro, contudo, sorriu, demonstrando que ignorava a dor. Esta parecia até agradá-lo,
em sua superação digna de um homem de estirpe elevada, que não se curvava ante nenhuma espécie de sofrimento.
Saltou, mesmo com o sangue a escorrer pelo ombro, e moveu a espada, de empunhadura branca com um cisne de duas cabeças esculpido em seu centro, não para decapitar o monstro, como
parecia que iria acontecer, e sim para lhe perfurar as costas.
Por quê? Por que não encerrara de vez a vida daquele ser movido pela violência e pela fome? Ficou evidente nos olhos e na expressão sorridente que queria fazê-lo
sofrer, agonizar, pagar caro por cada pecado que cometera, não simplesmente despachá-lo para o Inferno ou para o Abismo do esquecimento perene. Não tinha a mínima intenção de aliviar
qualquer agonia, queria torturá-lo, fitado por uma multidão que se aglomerava, admirada com seu iminente triunfo sobre o lobo, que ia ficando repleto de feridas e buracos.
– Não me subestime, humano – disse, meio ganindo e meio ladrando. – Você e todos eles serão meu alimento hoje.– Jatos de um vapor fétido se
formaram a partir de seu sangue e atingiram algumas das pessoas em volta.
Pouco a pouco, nestas cresceram dentes, garras, pelos e os focinhos se alongaram. Quem mais estava ali por perto fugiu.
Rápido, Friedrich passou a correr e mover sua espada para decapitar os licantropos recém-formados ou cortar os braços dos que se defendiam e se posicionavam melhor.
Agora com escudeiros, o possuído Paulus quase conseguiu fechar seus poderosos maxilares na mão que empunhava a lâmina.
O cruzado se esquivou por pouco e lhe acertou o pescoço, percebendo desta forma o quanto era duro e resistente. Mesmo se tivesse tentado antes a decapitação, não
teria conseguido.
– Também não me subestime, monstro. Acha que lhe revelei tudo? – E uma aura de labaredas o envolveu e uma cruz de fogo despontou em sua espada.
Um rasto de brasas se espalhou pelo chão e foi queimando os pés da criatura, obrigada a saltar. Tentaria cravar seus dentes e garras, capazes de perfurar e cortar qualquer metal,
no guerreiro, o qual, entretanto, envolvido por uma esfera de chamas e incandescendo o solo ao redor, estava bem protegido.
Paulus teve que se afastar para não virar cinzas, difícil suportar o calor que subia por suas patas e chegava à sua cabeça.
– Um dia esse corpo foi humano – disse Friedrich. – Quando seu hospedeiro tinha fé e virtudes, que forjou, porém foi incapaz de preservar, como uma lâmina
que se gastou. Pois bem: pelo fogo de minha fé, libertarei a alma do pobre idiota que se deixou aprisionar, mostrando o que a força e o calor de Deus fazem com os demônios!
Os licantropos atingidos por aquele fogo foram carbonizados; Paulus sofria e gania, mas não sucumbiria com facilidade.
Asas ígneas brotaram às costas do cruzado. Tornaram-no um anjo em chamas, e Gilles se recordou de uma imagem de São Miguel que certa vez contemplara na igreja. O príncipe
dos arcanjos manuseava uma espada de fogo e suas asas se confundiam com o incêndio atrás, responsável por consumir demônios e pecadores.
Os rostos dos conhecidos do menino foram também devorados pelas labaredas. Seu passado ficava para trás; em seu futuro, o que havia era a perspectiva de se tornar como seu novo
guia: um exterminador implacável de hereges e demônios. Lutaria para exaltar a força e os fortes.
– Você não sabe o que está fazendo! Aqui ainda sou eu, Paulus...
– Não tente me ludibriar, monstro infame. Agora que está prestes a deixar este mundo, tenta despertar em mim compaixão? Paulus está adormecido e será
lançado ao Limbo. Mesmo que fosse ele por um instante, tendo um alento graças à minha fé, por que pouparia sua vida? Os cruzados que se deixam possuir são os mais fracos e inaptos. Se conseguiu
outra vez acesso à vida, foi graças a mim e não a si. Portanto, merece a morte mais do que nunca.
– Suas palavras não são cristãs. É tão demoníaco quanto qualquer um de nós. É incapaz de amar, é um monstro com aparência
humana armado com uma espada! Sua voz está repleta de garras e dentes mais afiados do que os meus. Rejubila-se com o sangue que resulta da violência!
– Rejubilo-me com o triunfo da vida sobre a morte, da luz sobre a podridão que os seres das trevas representam. Não vou me curvar às suas palavras, que são
as de um covarde e um fraco.
– Pare de se superestimar! Algum dia também poderá ser possuído. Não se coloque acima do bem e do mal. O fruto que Adão e Eva comeram está acima
da compreensão humana. Em breve ficará nu às portas do Inferno! Grave bem o que eu disse.
– Agora quer profetizar, seu monstro desgraçado?
– Se a sua carne não for minha, será carcaça para o imperador ou para os reis do Inferno. Maldito presunçoso! O seu fogo não passa de chamas que induzem
o máximo de dor, sem nenhuma fé para amenizar os pecados dos homens e dos demônios, que você não imagina como também sofrem!
– Cale-se. Está tentando provocar um desvio nos meus objetivos.
– Então silencie primeiro. Dê o exemplo. – Ao que Friedrich concentrou todo o fogo em sua espada.
Gilles, trêmulo e maravilhado, acercara-se perigosamente.
O cruzado, ao realizar movimentos tão rápidos com sua lâmina que não puderam ser vistos nem pelos olhos do jovem
albino nem pelos dos outros poucos que insistiam em ficar nas proximidades, decapitou o inimigo. O sangue arroxeado jorrou do pescoço, que apresentava o corte e queimaduras.
O corpo, no entanto, dava a impressão de continuar firme e estável.
Gilles foi se acercando mais para abraçar seu mentor...
– Não se aproximem! – Porém foi rechaçado, junto com as outras pessoas, pois tentáculos brotaram da cabeça decepada e o corpo pulou para atacar
o cruzado, que se desviou e liberou de uma vez todo o fogo com o qual imantara a espada sobre o crânio do inimigo, que mesmo separado do resto seguia consciente e que explodiu. Respingou sangue e restos queimados em
todas as direções.
O corpo do demônio, por fim, desabou.
– Acabou! Acabou! – O garoto correu e gritou para avisar o dono da estalagem, que foi saindo devagar do seu esconderijo.
Uma forte chuva teve início.
***
– Você pôde presenciar hoje uma demonstração de força e fé, de verdadeiro poder, que subjuga a vontade frágil dos demônios, que são
conduzidos pelo medo e pela desesperança. O que arruína os cruzados fracos é que se deixam levar por essas emoções. Em vez de encarar o próprio medo, permitem que este se avolume e
os suplante. Ocorre um esmagamento da alma e não há mais esperanças para os que se acovardam. Você nunca deve perder a fé, em si mesmo e em Deus, que precisa ser inabalável, digna de
um homem superior, que sabe que foi feito à imagem e semelhança de Deus; e precisa encarar o medo e pisoteá-lo. Dessa forma, os demônios irão temê-lo. Todos, sem nenhuma exceção.
Precisa se sentir no topo da Criação, batizando os seres vivos. – Friedrich explicou na madrugada que tiveram para descansar, quase sem dormir.
As olheiras de Gilles haviam crescido, mas não que o garoto se importasse com isso.
Naquela noite, teria apenas um breve pesadelo, onde um demônio metade escorpião e metade serpente, com uma cauda sibilante dotada de ferrão, tentava golpeá-lo.
Entrementes, o jovem exibia uma agilidade sem par. Esquivava-se de todos os ataques, das substâncias nocivas lançadas em sua direção, e imantava o corpo com um ouro
luminoso.
Perfuraria aos poucos a carapaça do monstro, o único a exibir dor e pesar, enquanto o albino sorria.
***
Anos depois, no Palácio de Latrão, Gilles e outros cruzados foram chamados pelos padres da Ordem do Graal para tratarem de uma emergência.
Cada qual com suas peculiaridades, os guerreiros com o sangue de Cristo não se reuniriam entre si. Conversariam um por um com os sacerdotes, advertidos de forma pontual sobre as providências
a serem tomadas.
Estavam presentes, entre outros, o bispo Tharien e o cardeal Jonathan, que tomou a palavra:
– Tentamos deter Belial, que se manifestou fisicamente. Só que os resultados foram desastrosos: perdemos vários cruzados e agora temos um dos monarcas do Inferno à
solta no mundo. De positivo, ao menos os islandeses nos pagaram, já que Belial não se encontra mais por lá, devastando suas cidades. Escondeu-se em algum outro lugar.
Gilles, que antes de entrar estava afiando a espada com a própria língua, lambendo-a com gosto, fitava-o com um olhar de escárnio.
Jonathan estava acostumado a sarcasmos e ironias; não deu, portanto, grande importância à postura irreverente do francês. Era diferente de outros prelados, em especial
Irmãos Menores, de olhares indignados ou perplexos.
O bispo Tharien também parecia sereno como de costume.
– Quer dizer que aqueles fracos foram derrotados? – inquiriu Gilles.
– Não eram fracos. Enviamos alguns dos nossos melhores guerreiros, desde que Barbarossa nos deixou os mais experientes, porém não resistiram. Hong está morto.
Ptolomeu desertou no meio da batalha. Leovigild, Masamune e Raja conseguiram escapar, mas Leovigild desapareceu pouco depois. Provavelmente também desertou, mas esperamos que regresse. Ainda há tempo. O pior
ocorreu quanto a Dyonisos… e Friedrich. – Olhou nos olhos do albino.
– O que houve? – Contudo, este não demonstrou a menor apreensão.
– Foram possuídos. E o que possuiu seu mestre ficou do lado de Belial.
– Mestre? Nunca tive um mestre. Ele apenas me trouxe aqui. A partir daí, nos tornamos iguais… Só que agora ele não é mais meu igual. Foi um fraco, um
tolo, que se deixou possuir por um espírito inferior. Algum dia, o que espero é acabar com o demônio que o possuiu e enviar a alma de um pecador como ele diretamente para o Inferno. O Limbo é pouco
para cruzados fracos.
– Que palavras mais duras! – Jonathan sorriu. – O que esperamos é que algum dia você as cumpra! Mas, considerando como Friedrich era forte, um cruzado excepcional,
imagine que tipo de demônio deve ter agido para conseguir dobrar a vontade dele!
– Nada que a minha espada não possa cortar.
– A sua confiança me conforta. – E, ao sair do salão onde os clérigos permaneciam, Gilles tornou a desembainhar a espada e a deslizar a língua pela lâmina.
Masamune, o próximo a entrar, de olhos baixos, não parecia dar a mínima importância ao outro, conquanto o fitasse sem ser notado.
Cada vez mais estranho e dúbio era se tornar e ser um cruzado, a cruz que virava espada.
O sangue de Cristo na missa tinha um efeito. O que jorrava de seu próprio cálice outro, completamente diferente. Muitos teólogos diziam que era a vontade de Deus multiplicada
em uma materialização mais densa, mais veemente no mundo em um objeto que Ele tocara com seu corpo de carne.
O samurai observava os gestos e a expressão do albino. A crueldade transbordante e o semblante debochado encobriam a tristeza, a revolta e o medo, encarados com uma temeridade que beirava
o desespero.
"Vou pendurar você no precipício que dá para o Inferno, seu fraco! Seu maldito covarde!" O guerreiro pálido ralhou em seu pensamento contra a imagem de seu mentor e produziu um pequeno corte na língua.
Deixou o sangue escorrer garganta abaixo.
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