O mercador branco caminhava devagar na direção dos tronos. Estava cercado por homens pretos armados, cujos corpos eram recobertos por pinturas brancas, com destaque para as espirais nas costas e nos peitos depilados, quase nus a não ser pelas tangas de pele que vestiam. Alguns usavam ombreiras de madeira, e todos empunhavam lanças de pontas de ferro e hastes de freixo, material importado que tivera o orgulho de negociar com os nativos.
Para os padrões destes e para o calor do ambiente, estava vestido demais. Trajava roupas bufantes e coloridas, com sobre a cabeça uma boina vermelha encimada por uma pena.
Nos tronos estofados, sentavam-se o rei e a rainha de Axum, na Etiópia, ilha onde Paolo Foscari se acostumara a fazer bons negócios. Dois escravos abanavam cada um dos soberanos, em um salão amplo iluminado pela luz do sol forte, que entrava pelas janelas despidas de cortinas.
– Meus reis, trouxe não só a madeira que me pediram como também outros artigos que serão de seu agrado! – Aquele veneziano de bigode ralo e olhos baços, pequeno e lépido, que em pouco tempo aprendera a se virar em alguns dos idiomas dos reinos etíopes, lançou um olhar cauteloso na direção do obeso soberano esparramado sobre seu assento. A aparência preguiçosa era uma ilusão, severos e atentos os olhos negros injetados de vermelho. – Só que gostaria de lhes fazer uma humilde requisição. – Estava sozinho e por isso precisava proceder com cuidado. Seus homens o aguardavam do lado de fora, ainda sem permissão para entrar. – Que me pagassem de uma forma diferente hoje. Não preciso mais de tanto ouro e diamantes. – A rainha, uma mulher esbelta e de cabelos curtos, calçando sandálias de madeira e vestindo uma tanga curta sem atavios e um bustiê de pele de antílope para encobrir os seios, encarou-o, desconfiada, com seus belos olhos verdes. Tratava-se de um tipo exótico que Foscari bem que desejaria trazer consigo para que realizasse certos serviços particulares, porém sua altíssima posição, evidenciada por seus anéis de ouro, impedia a concretização do sonho.
– O que quer então? – O soberano de Axum projetou o tronco à frente e as argolas de ouro em suas orelhas balançaram.
– Não que dispense essas riquezas magníficas, longe disso, não me interprete mal! Mas por uma parte do que pagariam com pedras e ouro, gostaria que me cedessem um homem. Estou precisando de servos leais.
O rei e a rainha se entreolharam. Ele fez um gesto e disse algo a um dos guerreiros, que saiu, em um dialeto que Paolo desconhecia.
– Ele foi buscar o seu homem. Virá em pouco tempo. – E se voltou para seus guardas: – Agora podem deixar entrar os dele. Quero ver as mercadorias. – Ficou de pé; vestia uma tanga ornamentada, com pedras preciosas que o veneziano desejaria para si, e ostentava unhas bem cuidadas nos dedos dos pés rechonchudos. Eram bastante diferentes das do comerciante, que preferia ocultá-las em seus sapatos sempre que podia.
A rainha também deixou seu assento para, enquanto aguardavam, se divertirem mexendo nos artigos. Nunca tinham pressa, pois apreciavam o prazer lúdico da compra.
Menos de uma hora se passou e o guerreiro enviado estava de volta, trazendo um homem em correntes.
Não se tratava de um qualquer: era um gigante negro, próximo dos dois metros de altura, que impressionou o veneziano; uma massa de músculos, só um tanto machucado e com um semblante entristecido.
– O que acha desse aí? – O rei apontou com a cabeça para aquele colosso enquanto cingia o pescoço de sua linda rainha com um colar que apresentava um pingente do Leão de São Marcos. – O capturamos após a última batalha que travamos contra os zibum. Fiz questão de mantê-lo vivo porque deu trabalho demais, matou dez dos nossos sozinho, e seria meu escravo principal se não tivesse se negado a isso, dizendo que preferiria a morte. Como não quis matá-lo, não sabia como solucionar essa situação. Ele se nega a me servir. Mas acredito que será diferente com um estrangeiro, longe de nossas terras.
– O senhor me entrega um rebelde? Tem mesmo certeza de que comigo será diferente? – O mercador franziu a testa.
– Minha intuição me diz que sim. – Pendurado o colar, acarinhou a nuca da mulher, que sorria e acariciava o pingente. – É sem dúvidas o melhor homem entre os que temos capturado. Todos os outros ou já não resistiram à prisão do palácio ou estão definhando. São fracos demais. Já esse aí, mesmo ficando dias sem comer, continua forte como uma rocha.
– Ele parece ter mesmo potencial. Está feito! Vou levá-lo comigo.
– Tenho certeza de que fez um bom negócio. Irá trabalhar muito por lá, rapaz. – Olhou com sarcasmo para o prisioneiro, que virou a cara.
– Como ele se chama?
– Não sabemos. Nega-se a falar. Só diz que quer morrer. É só isso o que sabe dizer.
– Mas que desperdício! Pois farei com que diga coisas muitos melhores.
– Assim espero, forasteiro. Boa sorte.
***
No navio, sob o convés rangente, Paolo Foscari ficou a sós com o poderoso preto, mantido em correntes.
– Ainda não domino o idioma dos zibum, mas acho que podemos conversar. Isto é, se você quiser. Mas haverá um momento em que terá de querer. As escolhas vão acabar. Você agora é meu.
– Só quero uma morte digna. – O prisioneiro o surpreendeu ao responder em latim.
– Ora, mas quem diria! Sabe falar latim!
– Um jesuíta me ensinou. Éramos amigos. Mas ele morreu tentando defender o meu povo, assim como mataram minha mulher e meus filhos pequenos. Se os axum não tiveram piedade de mim, rogo para que você tenha. Permita-me morrer com honra e em paz. Quero caminhar novamente com a minha família, e isso só será possível no Paraíso.
– Você já matou muitas pessoas. Acha mesmo que irá para o Paraíso?
– Deus sabe distinguir os guerreiros dos assassinos. Jamais agi com violência. O meu coração sempre esteve dedicado à proteção das pessoas que amo.
– Qual é o seu nome?
– No meu povo, é costume perder o nome quando somos aprisionados. Não tenho mais nome.
– Como preferir. Vou chamá-lo de Bruno. É condizente com a cor da sua pele.
– Quando o jesuíta branco chegou em Zibum, não vimos a pele dele, mas um homem imbuído de uma missão e convencido do que deveria fazer. Foi isso o que admiramos nele.
– De nada adianta tentar ser rebelde e orgulhoso, Bruno. Entenda que não fui eu quem o capturou. Eu o comprei, o que é diferente.
– Almas, seres humanos, podem ser comprados? Que eu saiba, Deus não nos criou colocando preços, ou seríamos estátuas de barro e não entes vivos.
– Você me diverte, sabia? – Paolo sorriu de esguelha. – Além de parecer muito forte, é inteligente, sabe se expressar e é religioso. Um escravo perfeito. E não se espante com a palavra: costumo tratar otimamente os meus servos, que moram confortavelmente e recebem ótimas refeições. A única coisa que precisam fazer é trabalhar bem para mim, cultivar a lealdade, nunca dizer mentiras, cumprir todas as tarefas que peço, independentemente de considerarem essas tarefas indignas ou asquerosas. As recompensas que ofereço compensam qualquer coisa.
– Os homens são iguais perante Deus. Como um cristão pode admitir escravos? Sobretudo escravos que são cristãos como ele.
– Não sou cristão. Sou um homem que segue seus próprios interesses, que não acredita em Inferno ou Paraíso, que não dá importância a Deus e ao diabo, embora esteja ciente de que eles existem. Fiz uma vez um pedido ao Alto: para que quando morrer a minha alma seja apagada. Enquanto isso, pretendo viver da melhor maneira possível, sem preocupações.
– Acha que é tão simples assim?
– Se Deus nos dá o livre-arbítrio, que ele me deixe escolher essa opção. Quando tiver vivido o suficiente, quero que me faça deixar de viver, deixar de existir. Terá sido o bastante.
– A exploração do próximo nunca ficará impune.
– Pense como quiser. O mundo não mostra isso, não é um conto de fadas nem uma história bíblica: Jó perde tudo e simplesmente não obtém nada de volta, por mais fé que possua. Esse é o mundo real. O resto são fantasias! Deus não deve ser necessariamente bom e justo.
– O que quer que eu faça para você?
– Muito bem, está mudando de postura...
– Só quero entender um pouco a forma como vê o mundo.
– Ultimamente andei pensando em alguém que pudesse entrar sorrateiramente pelas janelas de meus rivais e concorrentes e estrangulá-los.
– Já lhe disse que não sou um assassino. – Os olhos de Bruno faiscaram.
– Você será o que eu lhe pedir para ser.
– Tenho honra. E posso me matar quando minhas mãos estiverem livres de correntes.
– Por que não me mata então? Poderia fazer isso com facilidade ao ficar livre.
– Não sou um assassino covarde.
– Não diga nem faça isso que está dizendo então… Suicídio! Religioso como é, sabe quais são as consequências para os suicidas, e você não pediu para a sua alma ser apagada. A eternidade pode ser cruel. Nunca mais poderá andar ao lado da sua mulher e das suas crianças, que estarão no Paraíso, enquanto você ficará no Inferno, em uma selva onde se transformará em uma árvore de galhos carnosos, que sangrarão quando arrancados!
– O senhor é um homem terrível.
– Seu senhor é o que sou, saliente bem isso para si mesmo. E, se possui realmente honra, não fará com que eu tenha gasto meus recursos à toa. Paguei para ter você, não o roubei de ninguém! – Deu uma rápida tossida. – Ah, e tenho uma sugestão: pense, já que é tão religioso, que estará se purificando dos seus pecados ao me servir, que sua fidelidade e sua devoção deixarão claras a Deus a nobreza de sua alma! E então ele poderá salvá-lo. Sirva-me na Terra, para depois ficar à vontade para servir ao seu amado Deus no Céu, enfim livre de mim! Sem mais cruzes para carregar, apenas com rosas para receber e admirar, para ser pétala e perfume, não um galho seco e sangrento.
Bruno ficou cabisbaixo e se negou a dizer qualquer outra coisa.
Sorridente e vitorioso, Paolo Foscari se retirou, deixando sozinho seu novo escravo, entregue a seus pesadelos despertos. Logo chegaria, em uma escudela de madeira, uma refeição com ovos cozidos, pão, pedaços de carne de porco e uma maçã picada:
– Messer Foscari mandou trazer isso para você, rapaz. Comida da boa, melhor não enjeitar! – Descera um homem do mar de barba comprida, barriga grande e braços fortes.
Aparentava ser calmo e simpático, com uma verruga avermelhada no queixo, e falava um latim macarrônico, misturado com o idioma veneziano, porém compreensível apesar das palavras estranhas e do sotaque.
– Você é escravo desse homem? – indagou Bruno.
– Schiavo? Nem sei o que é isso, rapaz. Para mim, os homens são todos livres! Filho de Deus nenhum deveria estar sob correntes. Sabe, apesar de não ser teólogo, tenho uma teoria: cada um de nós é uma parte de Deus, uma centelha, uma fagulha de uma fogueira maior. Ele me paga, e bem, para eu fazer o que faço no mar. Vários besantes1 de ouro!
– Está querendo me humilhar?
– E por que iria querer isso? Não ouviu o que acabei de dizer?
– Os homens gostam de fazer discursos, mas suas ações muitas vezes dizem outras coisas. O seu patrão, pelo menos, não parece pensar como você.
– Sei que ele está levando você como escravo. Mas o que posso fazer? Não so só um empregado, so muito mais do que isso, mas para o senhor Foscari vou ser sempre um empregado. O que posso fazer é dar uns conselhos para você, meu querido, já que ele não vai pensar diferente independentemente do que eu ache ou diga. Pense comigo: você é mais do que um escravo, mesmo na visão dele sendo um. Na visão de si próprio, vai ser sempre uma fagulha de Deus, do mesmo jeito que para mim, enquanto várias pessoas vão vê-lo como um sujeito forte e bonito.
– Esse tipo de visão muitas vezes me incomoda também. Como se o trabalho de Deus tivesse sido em vão: criaturas divinas que todos somos, insistimos um em ver no outro só uma orelha, ou uma boca, ou às vezes nem isso. Há momentos em que me parece que enxergamos as sombras e nada mais. É como a caverna de Platão.
– As pessoas costumam ter preconceitos com os etíopes, muitos os têm como um bando de selvagens. Mas você fala latim bem melhor do que eu, parece até os textos de Tito Lívio e Cícero que estudei na escola da catedral de minha cidade e logo esqueci, e ainda cita Platão! É demais para um pobre omo do mar.
– Imagens preconcebidas, julgamentos precipitados… Creio que é a estes que Cristo pretendia se referir quando afirmava que não devemos julgar o próximo: não que não possamos condenar os criminosos; só não é justo nem sensato dizer que uma pessoa ou um povo são de um jeito sem antes tê-los conhecido de perto. E, mesmo quando os conhecemos, é bom ir devagar.
– E não está julgando precipitadamente o senhor Foscari?
– Se ele ao menos me soltasse destas correntes… eu poderia modificar meu parecer.
– Entenda o medo do sujeito! Ele mal passa da altura de uma criança. Você é um colosso. Ele tem banha e ossos, você é todo músculos. Não tem comparação.
– E você, como se chama? Sei o nome dele e não o seu, que me parece um bom cristão.
– No so cristian. So religioso, mas so como o mar. Abarco tudo, vou para todas as partes, sem restrições. Navego na Fé. O meu nome é Antonio Tiepolo, prazer.
– E este barco pertence a Paolo Foscari?
– Não, não! Ele é um negociante, não um omo do mar. O mar para ele é um meio, não um fim. O que ele me paga inclui o aluguel do barco, que também não é meu. Em Veneza temos de pagar uma taxa ao doge, porque os barcos maiores são todos dele. É um monopólio. Sendo que poucos estão realmente em Veneza. A maioria está circulando pelo mundo. A Igreja inclusive usa os barcos do doge para fazer o transporte dos cruzados de uma ilha para a outra.
– Já ouvi falar dos cruzados. Só que nunca vi um. Na minha terra, só houve uma ocorrência, antes de eu ter nascido. A minha avó que contava sobre um demônio que atacou nossa cidade quando ela era bem jovem ainda. Um cruzado chamado Barbarossa apareceu e exterminou em instantes o monstro que tinha matado dezenas de pessoas.
– Eles também são monstros. A força que possuem não se compara à de um omo comum; e nem à de qualquer outra criatura conhecida na Terra. Confesso que tenho um tanto de medo deles, apesar de dizerem que carregam o sangue do próprio Cristo nas veias. São como anjos exterminadores.
– Se não é cristão, por que fala de Jesus com tanta reverência?
– Respeito é uma cosa, crença é outra. Acho que todos somos filhos de Deus, que ele não foi um unigênito. A diferença entre nós e Jesus está no fato dele ter reconhecido a divindade dele, o que foi o que o fez especial, percebendo o que nós não percebemos ou deixamos passar. Um omo desses, e que até aceita ser crucificado para cumprir uma missão, não é digno de ser admirado?
– Acha mesmo que ele quis ser crucificado?
– Acho que ele aceitou, é diferente. Não opôs resistência porque sabia que nenhuma dor na carne pode arrancar a nossa divindade interna, e aproveitou a oportunidade para demonstrar isso. Dizer que ele não sofreu é besteira, afinal chegou a perguntar se o Pai o tinha abandonado. Deve ter doído muito, só que não desistiu. Sujeito forte, ponta firme!
– Já eu sou da opinião que Cristo quis a crucificação, que sabia o que aconteceria desde o início, tanto que tinha consciência da traição de Judas antes desta acontecer. Portanto, Judas não é culpado, e por essa razão obteve do Senhor o perdão. Só que não suportou o fardo da culpa. E cometeu então o pior pecado. – Abaixou a cabeça.
– Penso diferente. Na minha visão, Judas é culpado sim, e não que Jesus já soubesse desde que nasceu que teria aquele destino. Ele soube quando estava perto de acontecer, e não o impediu, deixou acontecer, o que o torna ainda maior, porque perdoou o omo que o traiu, como você disse. Se fizesse tudo de cima, pense bem nisso, seria um manipulador e não um messias ou um santo. Por que iria querer sofrer tanto, a troco do quê?
– Como você disse antes, e estou de acordo, para mostrar que nossa essência divina está acima das adversidades terrenas, e que todos os homens são iguais, tanto que foi crucificado junto com delinquentes. Além disso, pretendia demonstrar a realidade da Ressurreição.
– Quer dizer que concorda que somos fagulhas de uma grande fogueira?
– Não penso que sejamos iguais a Deus. Do meu ponto de vista, sempre seremos criaturas e nunca partes do Criador. Não há identidade, afinal Ele é transcendente e onipotente. De todo modo, temos uma essência divina porque fomos criados à imagem e semelhança Dele.
– Criação à imagem e semelhança não é ser parte Dele?
– Ele nos criou, mas não viemos Dele nem nunca voltaremos a Ele, me entende? Somos seres distintos, pequenos demais para compreender a totalidade na qual o Senhor vive. De qualquer forma, nascemos originalmente no Paraíso e não na Terra.
– Você falou sobre Ressurreição. É algo que sempre me deixou com a pulga atrás da orelha, nunca fui muito de acreditar. Acha mesmo que seja possível?
– Os apóstolos viram o Cristo ressuscitado e mesmo São Tomé, que era cético, se convenceu.
– Acho que sou como Tomé! Não duvido que o corpo possa ter uma longevidade maior, tanto que dizem que os cruzados só morrem em batalha e os alquimistas alegam produzir o Elixir da Longa Vida. Mas enquanto não tiver o sangue de Cristo ou não receber o Elixir, vou continuar achando que isso é muito difícil!
– A Ressurreição vai bem além de brincadeiras de laboratório e da criação de guerreiros perfeitos.
– Seja como for, não precisa ficar bravo comigo não! Sou da paz.
– Não estou nervoso. – Bruno conseguiu sorrir pela primeira vez desde que chegara àquele navio. – Estou apenas tentando argumentar e conversar de forma amigável.
– Falando nisso, conversamos tanto que a sua comida deve ter esfriado! E o resto dos homens deve estar me esperando no convés. É que faz tempo que não tinha um papo inteligente. Os outros homens que trabalham no meu barco são todos uns broncos, uns xucros! Pobres coitados.
– O Reino dos Céus está reservado aos simples. E não sou nenhum erudito, só li os livros que um jesuíta, o padre Marco, me emprestou há algum tempo, quando veio evangelizar o meu povo.
– Melhor assim. Vai para o Reino dos Céus então! Mas agora melhor comer, rapaz, para permanecer no reino da terra enquanto for da vontade de Deus. Alguns suicidas que são apressados.
– Mal consigo mover os braços.
– Nessa hora a gente se vira como pode. Use os dedos dos pés, a boca, o que for!
– Ao contrário do que devem pensar em Veneza, em meu país não comemos com os pés.
– Essa foi boa! – Tiepolo riu. – Mas não falei por mal.
– Sei disso. Também estava brincando.
– Vou falar com messer Foscari para soltar você. Talvez ele atenda ao meu pedido. Mas se ficar muito bravo depois, messer Bruno, não se esqueça que sou seu amigo!
– O meu nome é Jedalla. Foi um prazer. – Esticou o pescoço e reabriu a boca para começar a se alimentar.
– O mesmo digo eu. – Retirou-se.
Bruno, ou Jedalla, comeu o que julgou necessário e ficou a refletir sobre seu presente e seu passado. Recordou os tempos em que ia com o pai para as montanhas procurar por lobos etíopes, os raros exemplares que podiam encontrar daqueles pacíficos canídeos de pelame vermelho com marcas brancas e pernas mais longas do que as dos chacais. Chegara a acompanhar a caçada solitária de um atrás de uma lebre e a fazer amizade com outro, que aparecia sempre que visitavam a região, como se adivinhasse que seus irmãos humanos estavam por perto. Os zibum não costumavam caçá-los, enquanto os axum consideravam que seu fígado possuísse qualidades medicinais:
– Um costume bárbaro, como muitos que eles possuem. Como podem abater animais tão bonitos? – questionara um de seus tios, que na ocasião fora com eles, e puderam, à noite, espiar uma alcateia dormindo a céu aberto, duas fêmeas prenhes e uma com seus filhotes sob o abrigo de uma encosta.
– Apesar que dizem que eles são covardes, que seguem vacas e éguas grávidas para devorar os recém-nascidos – interviera outro tio.
– Não há animais covardes. Simplesmente lutam pela sobrevivência. Precisam comer e encontrar o modo mais fácil para isso. Será que somos covardes porque não temos garras e presas e por isso precisamos de lanças e facas para caçar? – Bons tempos! Conquanto não melhores do que os do nascimento de seu primeiro filho, que para Jedalla fora o momento mais feliz de sua vida, em contraposição à morte dos pequenos e de sua esposa, que fora o mais doloroso.
Por mais que tentasse, não conseguia amar e perdoar os inimigos. Seu ódio ainda o corroía, enquanto era enviado para uma terra estranha… embora na verdade não existisse assim tanta terra em Veneza, onde se sentiu à parte em um mundo no qual a navegação era tudo, por demais distinta da aridez de sua pátria.
Ao desembarcar, já sem correntes, buscando conter a raiva frente ao semblante de confiança de seu dono, ficou impressionado com a beleza daquela cidade que dominaria seu espírito por tantos anos: pediu às águas, sobre as quais Deus um dia soprara antes de criar tudo, que lavassem seu passado e o ajudassem a esquecer. Dirigiram-se, em uma carruagem, ao palácio do rico mercador.
– Você vai gostar. Verá que o que falam sobre servos e escravos não passa de um monte de baboseiras. Terá a vida que sempre pediu a Deus! – disse no caminho o veneziano, que parecia animado.
– Nunca pedi nada a Deus além de uma boa família, comida e água.
– Entendo, afinal não tinha como conceber algo como a minha casa. Mas lá terá comida em abundância, água há em todas as partes, como pode ver, e poderá encontrar uma nova mulher e ter novos filhos. Nunca o impedirei de constituir uma nova família. É melhor inclusive que se esqueça da antiga. Há venezianas que adoram negros! – Bruno teve vontade de agarrar Paolo Foscari pelo colarinho e estrangulá-lo, mas conteve a ira.
Chegaram. As duas fachadas do palácio, em gótico veneziano, desenvolviam-se em dois níveis colunados, o balcão central coroado por pináculos.
As loggias2, delimitadas por balaustradas, apresentavam colunas e arcos ogivais, suportadas pelo pórtico no piso térreo, cujo aspecto rebaixado se devia às obras sucessivas de elevação do pavimento para combater a subida do nível do mar, isso também conferindo um aspecto mais sólido às colunas encimadas por capitéis esculpidos com imagens dos membros da família Foscari, da qual Paolo, filho de Francesca e Luigi Foscari, era o mais recente pai de família de uma linha de oito primogênitos.
A entrada fora construída em gótico florido a exemplo da Porta della Carta da residência do doge, pintada e dourada, com representações da natureza e de homens notáveis que haviam feito a história de Veneza, uma homenagem da família.
Ao entrar, o etíope não pôde deixar de ficar impressionado com a amplitude do local, maior do que qualquer residência de Zibum, comparável talvez só ao palácio real de Axum, que, no entanto, não lhe trazia boas lembranças devido ao enclausuramento.
O chão polido de mármore e os corrimãos banhados a ouro, com, no alto, o lustre branco repleto de cristais, davam uma impressão de brilho constante, porém o que mais o maravilhou foram os quadros e a perfeição dos artistas venezianos ao representarem seres humanos e seus trajes, detalhistas até em relação às dobras dos vestidos e às joias das damas.
– Você vai ficar aqui no térreo. Os meus empregados irão conduzi-lo para o corredor certo. Com o tempo, vai se acostumar sem se perder mais na casa, só que no começo é normal o atordoamento.
– Estou tranquilo. – Com o coração acelerado, Bruno mentiu.
– Tranquilo? Com o tempo essa paz toda acaba! O mar não é assim tão sossegado quanto parece.
– Farei o que for preciso para me adaptar, já que não tenho outra escolha.
– Bravo tosatèlo3! Prevejo que vai me dar muitas alegrias!
– Assim espero, meu senhor.
– Você aprende rápido. Quem disse que escravos têm que ser burros?
1 Moeda de ouro do Império Romano do Oriente.
2 Elemento arquitetônico aberto por inteiro ou em um dos lados, coberto, em geral sustentado por colunas e arcos, podendo ser, por exemplo, uma galeria ou um pórtico.
3 Tosatèlo: “rapazinho” no idioma vêneto.
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