O Império Romano do Oriente, que se estendia por ilhas que um dia haviam formado a Síria, a Anatólia, o Egito, a Arábia, a Mesopotâmia e a Grécia,
entre outras terras, com capital em Constantinopla e abrigando outros famosos centros como Atenas, Niceia, Antioquia e Alexandria, possuía um imperador paralelo: Heráclio, o pirata dono de um drómon em
cuja bandeira hasteada ao mastro central se via desenhado um soldo de épocas idas, no qual o imperador Heráclio, que vivera séculos antes, aparecia ao lado de seus filhos Constantino e Heraclonas. A escolha
não fora um acaso, pois o capitão daquele navio guardava de fato uma antiguidade daquelas, uma moeda de ouro puro com aquelas figuras.
Se Heráclio era seu nome verdadeiro ou não, isso sequer seus companheiros de anos sabiam.
– Por que estamos ultrapassando as colunas de Hércules? Se na Europa e na África estamos infestados de demônios, mais além estende-se o mar Tenebroso, com
monstros que montam guarda em frente ao próprio Inferno. Qual o sentido desta viagem? – indagou um homem baixo e corcunda, que conversava na proa da embarcação com seu superior.
– As minhas suspeitas são de que para além do Velho Mundo existam terras cheias de ouro, que a Igreja e os reis desejam manter ocultas. – Aquele era o rebelde Heráclio,
de um olho castanho e brilhante, o outro perdido, a mão pousada na spatha presa à faixa que envolvia sua cintura. – Principalmente a Igreja! Poderia me explicar, meu companheiro, de onde ela tira tanto ouro para suas suntuosidades? – Vestia calça e camisa
rasgadas, que porém eram de fina feitura, sobretudo a camisa de seda púrpura.
– Que se saiba, os que foram além do mundo conhecido não regressaram. – Milo, o corcunda, não estava disposto a entrar em discussões sobre a Igreja.
– Com muito ouro, qualquer um pode mudar de aparência e se tornar um desaparecido. – Acariciou a barbicha em seu queixo quadrado.
– Mas e se as histórias a respeito do mar Tenebroso forem sim reais?
– Então, meu amigo… – Deu um forte abraço lateral no companheiro de viagem, fazendo com que este até levasse um susto. – Vamos ter que assaltar
o próprio diabo! – Seu braço era musculoso e pesado. – Eu não tenho medo, você tem, meu querido Milo? Ele deve estar cheio de ouro. Tudo o que roubou dos pactuantes dele, encerrados os
prazos!
– P-pensando bem… o senhor pode até ter razão, capitão! – gaguejando, o sujeito acabou por concordar.
– Como são volúveis esses meus homens! – Heráclio liberou uma gargalhada.
– Porém estáveis o bastante para não o abandonarmos.
– Está certo, meu bom amigo, está certo! – Aqueles piratas iriam pela primeira vez sair do Mediterrâneo, delimitado entre as ilhas da Hispânia, onde ficavam
reinos como Castela, Andaluzia e Portugal, e do Marrocos, dividida entre uma dezena de reinos bérberes.
Não se dirigiriam para o norte pela parte conhecida daquelas águas, mas sim seguiriam firmes para o oeste, uma aventura que poucos ousavam e da qual não se tinha registro
que alguém tivesse retornado, por isso o medo dos tripulantes. Que mesmo assim, amigos em verdade que eram, iriam com seu capitão até o Inferno; e alguns acreditavam que isso fosse acontecer de verdade.
A fidelidade e a confiança não eram frutos do acaso: haviam obtido e crescido muito desde quando tinham começado a tomar parte do Heraclonas, o nome daquele barco uma homenagem ao filho do basileu1 de outrora.
O drómon de Heráclio fora furtado da própria frota imperial em seu brilhante começo de carreira, estendia-se por cerca de cento e setenta pés de comprimento
e tinha vinte e quatro de largura. Estava equipado com balistas, catapultas e outras máquinas de ataque, que lançavam dardos de ferro, bolas de chumbo ou o famoso fogo líquido dos gregos, armazenado em
vasos de barro.
No meio daquela manhã, decidiu que havia vento o bastante para erguer as três velas triangulares.
Durante toda a operação, o navio balançava perigosamente, e um pouco de água chegou a invadi-lo, mas as velas não eram a única força a impulsioná-lo
adiante. Contava com duas fileiras de remos. Necessitava, portanto, de duzentos piratas de braços fortes.
A tripulação ali, contudo, era de no máximo quarenta homens. Os remos se moviam sozinhos, sem força muscular. Como podia ser possível?
Não se tratava, de fato, de um barco qualquer, pois os remadores do Heraclonas eram espíritos de escravos a serviço de Melissa, a única mulher a bordo, e não
uma mulher comum, a companheira de Heráclio desde seus primeiros tempos na pirataria. Conhecera-o em Constantinopla quando ainda era um reles ladrão, que crescera órfão após seus pais, vítimas
um de uma doença do coração e a outra de peste, terem lhe deixado a preciosa herança de um baú contendo bragas e camisas cheias de pulgas, algumas delas rasgadas. Fora criado por um tio que vivia a espancá-lo; por isso não via a hora de se retirar da casa
daquele velho ranheta, não tendo a covardia de revidar ao adquirir força para isso.
Estava com dezessete anos quando conhecera a bruxa, numa época em que esta prestava serviços como cartomante na capital do Império. Ainda que detestasse oráculos,
sentira-se atraído pelos anúncios na entrada da tenda. Esperara encontrar alguma bruaca e dera de cara com uma jovem de olhos azuis e longos cabelos pretos cacheados, trajada toda de vermelho, do vestido decotado
ao lenço exótico. Fora ela, com seu sotaque lombardo, que o convencera, nem ele entendera como, talvez enfeitiçando-o depois de terem feito sexo ali mesmo, uma vez fechada a barraca, a descer armado com
uma faca e sua confiança em um drómon da frota de Bizâncio, levado até este de madrugada pela estranha criatura alada que montara, que um pouco lembrava um corvo e um pouco um morcego, porém
de grandes dimensões.
De início, não soubera o que fazer, depois encorajado pela chegada de por volta de duzentos homens, em verdade sombras e contornos de homens que traziam consigo espadas, redes, lanças, flechas, escudos e, o melhor de tudo isso, não morriam. Bastava que Heráclio
desse as ordens; e assim colocaram um fim na tripulação que ocupava o barco.
Logo chegara Melissa, pronta para levar uma vida de aventuras em alto-mar. O jovem Heráclio então não sabia se estava vivenciando um sonho ou um pesadelo, mas fora dessa
forma que conseguira seu navio e sua mulher, que não envelhecera sequer um dia desde quando tinham se conhecido, enquanto os cabelos negros do pirata já apresentavam fios grisalhos.
– Até hoje não entendo. Por que precisou de mim? Por que não fez tudo sozinha? – indagaria a ela anos depois. – Sendo uma feiticeira tão poderosa,
acredito que poderia até tomar a frota inteira do Império sem precisar de mais ninguém.
– Não exagere, meu querido. Os rapazes só podem interagir com a matéria, seja invisíveis seja assumindo as formas de sombras ou vultos, às custas da minha energia vital. Fico exausta em batalhas. Hoje conheço meus
limites, só que quando comecei exagerava e chegava a perder os sentidos e tudo ia por água abaixo, já que precisam da minha concentração também. Remar pelo menos desgasta pouco. E
ainda bem que conto com meu elixir! Sabe quantos anos eu tenho, na verdade?
– Trin… Quarenta? – indagara hesitante.
– Mais de cento e quarenta. Ainda não reparou que, enquanto você vem envelhecendo, eu não ganhei sequer uma mísera ruga?
– Isso é verdade… e às vezes me dá medo. Qualquer hora poderá encontrar algum pirata mais novo e me trocar por ele.
– Não seja ingênuo! Vou lhe explicar de uma vez, apesar de você resistir a acreditar nos oráculos: sou uma sacerdotisa da tradição antiga, na
realidade nunca fui uma cartomante, e só montei aquela tenda para encontrar o prometido que Apolo me anunciou há anos, quando comecei nesse caminho. Ele me apareceu em uma vivência espiritual na forma de
uma serpente dourada, o ofídio do Sol, e sussurrou em meu ouvido: "não ouse contrariar seu destino. Até mesmo os deuses obedecem a ele. Siga minhas instruções
e alcançará a felicidade", e foi seguindo o que ele me disse que montei a tenda e esperei que aparecesse. Nunca tive o menor interesse em tomar a frota de Bizâncio. Só
em encontrar o homem que me levaria por uma jornada pelo mundo e para dentro de mim mesma.
– Pelo mundo já viajamos um pouco. Mas para dentro de si mesma?
– Os antigos sempre diziam: conhece-te a ti mesmo. E o mar me ajuda muito nisso. Não há um espelho melhor. Afora que esta viagem que estamos empreendendo representa muito
mais do que simplesmente encontrarmos as minas de ouro da Igreja ou o Inferno. Trata-se de uma viagem de autoconhecimento e de expansão do conhecimento do mundo, o que sempre busquei.
Com relação ao elixir de Melissa, ela não o dividia com ninguém, nem mesmo com seu amor. Alegava que,
quando Heráclio morresse, logo chegaria também sua hora. Partiria em pouco tempo para o outro mundo ao deixar de ingerir sua poção. Não haveria, portanto, sentido nele tomá-la, ao
menos no raciocínio dela, o que o deixava enervado e confuso: por que precisavam se curvar ao destino e aceitar a hora da morte predestinada pelos deuses se poderiam ser imortais ou no mínimo aproveitar uma longa juventude? Heráclio suspeitava, e estava certo nisso, que sua amante, por alguma razão que
não revelava, não era capaz de produzir aquela panaceia indefinidamente; devia ter um tremendo medo de não conseguir mais renovar a provisão e se tornar muito velha antes que ele falecesse. Se conhecia
o suficiente dela, quiçá fosse esse um de seus maiores temores.
O futuro anunciado pelo deus parecia perfeito, pois morreriam quase que ao mesmo tempo, sem um precisar sofrer por um longo período pela perda do outro. "Mas a vida às vezes prega peças até nos deuses", e o pirata não se deixaria levar por meros argumentos de bruxa, pois não haviam sido estes a convencê-lo
a adquirir o Heraclonas. Nem sequer fora a mera ação de um feitiço, concluiria, e sim uma verdade profunda, de seus abismos interiores, do mar
Tenebroso onde vivia junto com Melissa, realidade que eclodira desde a primeira vez que escutara sua voz, já carícias, ainda que não corporais: eram ondas femininamente profundas, que se não sabia
explicar com a razão compreendia por meio da alma, que devia ser para o homem o que o mar era para o mundo.
Quando descera das costas daquela criatura no drómon, devia ter tido como guia seu anjo da guarda ou seu demônio pessoal, que na sua visão eram a mesma coisa sob máscaras
diferentes, no íntimo nada além da alma, o espelho da vida que lhe permitira conhecer sua fascinante bruxa lombarda. Jamais fora manobrado; e os meios não importavam.
A feiticeira preparava seu elixir em um laboratório nos fundos do navio, sob o convés, que nunca abrira para ninguém, nem mesmo para Heráclio, e não adiantavam
chaves nem mãos para uma porta que não tinha fechadura e resistia tanto a golpes corporais como a fendentes de espada. Sua madeira não queimava, não rachava e não era perfurada, ao que parecia
permanecendo como um compartimento estanque intacto e hermeticamente fechado caso o restante da embarcação fosse destruído.
O ingrediente fundamental da poção era um pó que lembrava vidro vermelho moído. Bastava uma pitada para produzir milagres, ainda assim finito; tentara multiplicá-lo
de todas as formas, sem êxito. O presente que acreditava ter recebido diretamente de Hermes, irmão de Apolo, era um peixe saboroso e já temperado, só esperando para ir ao forno, não um meio
de aprender a pescar.
– Você sabe de onde vem o meu nome, não é? – O capitão adorava provocar um de seus homens, Arístaco, que não tinha nenhuma instrução,
muito embora o amasse e admirasse por sua simplicidade e seu caráter.
– Não tenho a menor ideia, senhor. Só o que sei é que Heráclito foi um filósofo.
– Meu nome não vem de Heráclito de Éfeso! Lá tenho cara de pensador? Se bem que sou um pouco obscuro! Vem de Heráclio, um antigo imperador, que ascendeu ao trono após se rebelar junto com seu pai contra o então basileu Focas, dando cabo deste pessoalmente.
– Acho que um pouco em comum com ele o senhor tem – sorriu o homem bronco, dando uma dentada na linguiça que estava dividindo com seu capitão, estendendo-a de volta
para ele.
– Está querendo dizer que sou um homicida e um usurpador?
– Não. O que quis dizer é que o senhor não mede esforços para alcançar seus objetivos. Se Focas era um tirano, o que Heráclio fez não
pode ser classificado como simples homicídio. Da mesma forma que o senhor não é um simples pirata.
– E por que acha que não?
– Não apenas os vivos o seguem, mas também os mortos. Um homem comum não suportaria isso, ficaria louco! – Tomou do mesmo vinho que o imperador dos mares costumava
beber e guardar em um dos baús de sua cabine no castelinho de proa, dentro do qual se achavam no momento. – Acho que o destino do senhor vai muito além do que consegue imaginar.
O castelinho não fazia parte da embarcação original. Heráclio o construíra junto com sua tripulação de vivos e mortos.
– E é essa a razão pela qual me acompanha?
– Algo me diz que, se eu estiver com o senhor quando chegarmos ao Paraíso, também subirei aos Céus. – Arístaco se ajeitou em seu banquinho; embora rústico,
aquele era um homem sábio. – O mar Tenebroso não será um desafio à altura.
– O imperador Heráclio reorganizou o exército, desenvolvendo o conceito de outorgar terras em troca do serviço militar hereditário, e reconquistou domínios
tomados pelos persas. Eu reorganizei o conceito de pirataria no Mediterrâneo, empregando corpos e espíritos para atacar, tornando os espíritos corpóreos, oferecendo-lhes o feudo da matéria,
e os corpos espirituais, infundindo-lhes inspiração para lutar e seguir adiante sob ideais e propósitos maiores. Não tinha territórios a recuperar, mas domino os mares que percorro. É
verdade! Tenho algo, aliás muito, em comum com meu homônimo. E me tornei o imperador clandestino de Bizâncio.
Contudo, mesmo o imperador dos mares enfrentaria uma navegação mais dificultosa à medida que entravam em águas escuras e espessas, e uma neblina envolveu o convés.
– Parece que entramos no mar Tenebroso. – Melissa comentou com seu amante, os dois no alto da proa. – Agora é pedir aos deuses para que nosso fado não seja
o de encerrar aqui nossos dias.
– Do que está falando, mulher? Farei deste mar Tenebroso também meu mar, dobrando o que houver, impondo minha força sobre o que ou quem ousar levantar alguma espécie
de voz contra mim! Ouça os ventos! Estão silenciosos. Têm medo de mim.
– Não seja pretensioso. Não é que estão silenciosos. É que não há vento. E não percebeu o aumento da temperatura? Está
abafado. Esta névoa se parece com o vapor que sai de um caldeirão.
– Calma, minha cara. Estou procurando manter o bom humor. De que adianta comentar como esse lugar é assustador! Ou desistir e retroceder? Temos que encarar nosso destino!
– Confesso que estou com medo das faces de Jano.
– Até agora, pelo menos, não cruzamos com nenhum monstro marinho. – Bastou dizer isso para o drómon sofrer com o impacto de uma batida com algo imenso.
Um ciclone se formou e levou embora as brumas. Um turbilhão assumia o controle das águas. A bruxa foi lançada contra o chão e quase bateu a cabeça. Protegeu-se
com suas próprias costas. Heráclio se segurou por pouco.
Alguns dos seus homens chegaram a ser lançados ao mar. Os remos se agitavam de forma caótica.
– Mas o que é isso? – Melissa sussurrou, ainda sem conseguir se levantar, apavorada com os ventos, antes ausentes, logo furiosos.
– Ei, você está bem? – Contudo, o que mais chocou o capitão, depois de ter se certificado que sua companheira estava bem, foi o fato de Arístaco ser
arrebatado para o alto e despencar no mar revolto. Chegou a sentir vontade de gritar, mas não o fez.
– Os meus rapazes estão em pânico! – A feiticeira reconheceu o terror nos rostos de seus escravos espirituais, muitos dos quais, sempre tão estáveis,
precipitavam na loucura.
Os que continuavam nos remos faziam o trabalho em dissonância ou sem esforço, enquanto outros largaram o serviço.
– Pior ainda o que está acontecendo com os vivos!
– Os vivos são nossos amigos e pessoas pelas quais temos grande afeto, mas sem os mortos ninguém sairá vivo daqui!
– Homens! Tentem recuperar os que caíram no mar! Joguem as cordas!
– De que jeito, capitão, se estamos lutando com todas as forças para nos segurarmos, da mesma forma que o senhor? – bradou um dos piratas, agarrado ao mastro.
Os responsáveis pela turbulência foram enfim avistados: da água, emergiu uma baleia de cor púrpura muito maior do que uma baleia comum, de agressividade à
flor da pele, com a qual o barco se chocara; no alto, produzindo o tornado, havia um pássaro capaz de carregar um elefante entre as garras, de penas e bico dourados, os olhos vermelhos e, ao que parecia, era um inimigo
acérrimo da baleia.
Heráclio já ouvira falar de criaturas como aquelas. Em registros antigos, comentava-se sobre Pórfiro, uma baleia que atormentara o porto de Constantinopla, e que fora
caçada pela frota imperial. Devia estar diante de um outro exemplar de sua espécie. Enquanto a ave provavelmente era o lendário Pássaro Roca.
– Você não pode fazer nada, Melissa?
– Se o fado me permitir, irei tentar! – Ergueu-se, firmando os pés no convés. Faltava-lhe a terra; ainda assim, pediu a Apolo para que lhe enviasse o poder do Sol
e a Zeus o domínio dos elementos. Assim, provocou relâmpagos que agrediram a ave.
O calor do astro-rei, que escapou da manta de nuvens escuras, queimou a pele da imperatriz das baleias, que submergiu nas profundezas.
Não existiam então mais motivos para a luta prosseguir.
Entrementes, uma imensa onda rebelde se ergueu diante deles e engoliu o Heraclonas, levando consigo a feiticeira e todos os piratas.
1 O imperador do Oriente, também podendo
ser denominado “autocrata”.
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