Lorenzo Cavalcanti nunca se esquecera da profusão de girassóis daquela região, ainda mais impressionante em um dia em que o Sol brilhava com tanta força que a armadura de seu companheiro Miguel fazia as vezes de um irmão caçula do astro-rei.
– Onde estamos?
– Nas cercanias do Monte Cetona, perto de Siena.
– Temos que parar para dar água aos cavalos e deixá-los descansar. E também para conversar um pouco. Meu pobre amigo Cid está começando a sofrer com o meu peso e a se curvar. – Mal haviam aberto a boca e tinham feito pouquíssimas paradas desde quando haviam deixado Roma, ainda que em alguns momentos tivessem passado do galope ao trote.
– Você está certo. Vamos levá-los até o Orcia. – Lorenzo soltou as rédeas de Asturcão e ultrapassou seu amigo espanhol. Avançou pelos matos e arbustos e chegaram ao leito pedregoso do rio. Foi o primeiro a descer da sela. "Se há um culpado para a situação de momento, sou eu, e preciso corrigi-la de alguma forma."
Acariciou o peito, o centro de sua armadura dominado pela presença de um grande lírio, o giglio de Florença, constituído por cinco pétalas, três principais e dois estames; sua proveniência revelada não apenas ali, mas também no capacete de viseira estreita e topo arredondado, com lírios da mesma espécie gravados ao redor da cabeça. Seus olhos negros transmitiam uma impressão de esmorecimento, em contraste com o companheiro, que pretendia tirar proveito de cada sopro do ar e de cada raio de sol, esplêndida sua armadura dourada que apresentava em relevo a imagem de um anjo espadachim.
– Não é em qualquer dia e em qualquer lugar que se pode respirar como aqui! Você teve sorte de nascer nesta área do mundo. – Segurava debaixo do braço o capacete que lembrava a cabeça de um leão. Apoiou-o sobre uma pedra.
– Será mesmo? A missão para a qual estamos nos dirigindo prova justamente o contrário. Nem tudo é maravilhoso como parece ser.
– Mas Dite é uma questão humana, e como tal sujeita às falhas humanas, à natureza humana. – Tinha olhos da cor do céu, seus cabelos loiros e lisos movidos pelo vento, que também fazia esvoaçar a capa em suas costas. – Refiro-me à maravilha que é esta natureza – bateu com o pé na terra –, externa, à beleza ao nosso redor, criada por Deus, e que ainda nem o homem nem os demônios conseguiram estragar.
– Isso é verdade. – Lorenzo respondeu sem grande entusiasmo.
– Não pensa em passar por Florença depois que a missão estiver terminada?
– Estou aqui só para concluir este trabalho, assim como você. Não pretendo fazer mais nada.
– Que pena! Estava pensando em dar uma passada na sua cidade. Gostaria de conhecê-la e verificar de perto o porquê de ser tão famosa por suas artes. Nunca tive tempo e, desta vez, como se tratará de um serviço não tão simples, o cardeal Torquemada me garantiu que teria alguns dias de folga. Você poderia me mostrar Florença.
– Torquemada não me disse nada.
– Mas com certeza a mesma regra se aplica a você. Ele só teve preguiça de expô-la para cada um e deixou que eu transmitisse o recado.
– Pode ser isso mesmo, apesar dele não ser um homem de conceder descansos. Nem para si mesmo. – E voltaram à falsa quietude.
Miguel não aguentou por muito tempo:
– Espero que me perdoe por dizer isso, mas você parece meio morto desde o começo da viagem. Eu não ia dizer nada, só que… – Não olhava para o companheiro, apenas para as flores. – Não houve como.
– Andar pela Toscana sempre me traz muitas recordações, Miguel. Algumas podem ser até boas, mas se tornam desagradáveis quando me dou conta que é um tempo que passou. E as ruins parecem mais vivas, pois condizem melhor com a minha situação atual.
– Executar demônios não é um trabalho dos mais agradáveis, mas temos que pensar que, se não fôssemos nós, o mundo estaria um verdadeiro caos.
– O mundo já está um caos, pois não são aparições pontuais. Ocorrem a todo instante, e é uma batalha que parece nunca ter fim. Quantas pessoas inocentes e companheiros nossos ainda terão que morrer? Além dos Possuídos. Ou se esqueceu do Cavaleiro Verde? Apesar de termos o sangue de Cristo correndo por nossas veias, não somos capazes de eliminar as pragas que assolam a humanidade. Nem mesmo Jesus Cristo conseguiu fazer isso, tanto que acabou crucificado. Redimiu-nos do Pecado Original, mas não varreu os demônios. Se Ele voltará, por quanto tempo ainda teremos que esperar por esse retorno, para que Satanás seja lançado ao Lago de Fogo em definitivo?
– Temos que ser pacientes. O Filho foi crucificado para mostrar a nós que o Pai não é indiferente às nossas dores. Além de, como você salientou, redimir a humanidade maculada. E nos levar a compreender ao menos uma centelha do que significa amor. Apesar de Deus ser onipotente, a humanidade não consegue amar em plenitude e por isso não tem méritos suficientes para ser salva em sua totalidade, para se ver livre dos demônios. Não é à toa que a guerra que travamos ainda não teve fim. E nós provavelmente não veremos o término dela; isso caberá a gerações futuras. Talvez três mil anos após o nascimento do Salvador: os primeiros mil anos pertenceram ao Filho, os mil seguintes ao Pai e nossa época culminará com a descida do Espírito Santo e o retorno do Filho, completando o ciclo. Então, o diabo será destruído.
– Essa é uma teoria de Torquemada.
– Foi exatamente o cardeal quem me apresentou essa teoria. E não sei se concordo, só não acredito que veremos algo de muito diferente. Deus testa a nossa perseverança.
– Você permanece realmente cético que a humanidade possa mudar, assim como eu.
– São as evidências, meu bom irmão. Os demônios não são os únicos inimigos que enfrentamos. Quando me lembro de gente como o conde Henrique, fica claro como os homens não demonstram ser merecedores de que não deveriam mais conviver com as criaturas das trevas
– Compartilho dessa ideia, embora às vezes a esperança, a fé e a caridade façam com que aguarde algo mais do ser humano. Contudo, temos que nos dar conta que são virtudes que nem todos ainda despertaram, ou melhor, uma minoria despertou, e portanto nem adianta confiar que teremos um mundo mais fraterno. Meu irmão Cesare acredita que a natureza humana por si só seja suja, bestial, não muito diferente da dos demônios, com a única distinção que podemos ser tocados pela graça divina. Mas, ao contrário de mim, que por dentro guardo uma fagulha de confiança, ele sempre teve a convicção de que pouquíssimos se permitem ser tocados, e portanto não adianta tratar as pessoas como se fossem filhos e filhas de Deus. Afinal, elas não sabem o que são. Ou podem até saber, na teoria, mas não vivenciam isso. É por essa razão que ele é o cônsul de Florença e assim a governa, enquanto eu me tornei um cruzado.
– A mente dos políticos é diferente da nossa.
– Mas em alguns aspectos eles estão corretos. Como você sabe, não queria me tornar sacerdote, só que o meu pai temia que pudesse, mesmo sem interesse pela vida pública, mais interessado em patrocinar as artes e eventualmente lutar pela defesa do povo, ficar mais popular do que Cesare, que é da mentalidade que um governante não precisa ser amado e sim temido, e que por isso não pode ter rivais. Sequer hipotéticos, porque se tornam as nascentes das rebeliões, que estouram feito água descontrolada. Meu pai temia o fratricídio, que um Cavalcanti fosse derramar o sangue de outro. O que não acredito que ocorreria, não voluntariamente. Mas ele tinha as razões dele.
– E você não se tornou mesmo um padre, mas virou um cruzado.
– Foi porque cheguei à conclusão que não poderia ficar passivo, continuar fraco diante do que acontece em nosso mundo, e ao mesmo tempo não nasci para ser um político, o que na verdade muitos sacerdotes acabam se tornando, apesar das proibições em Florença, pois basta que saiam da cidade. Não consigo pensar como Cesare, mesmo que nos momentos de pessimismo concorde com ele. Virei um cruzado para tentar aliviar a minha sensação de impotência! Embora continue sendo um pouco impotente.
– Pense que, se é ruim com a nossa presença, seria pior na nossa ausência.
– Apesar de tudo o que já disse, sei disso. Caso contrário, teria desistido. Ainda que agora seja um caminho sem volta. Mas eu teria preferido morrer nas garras de algum demônio qualquer se percebesse que nosso trabalho é inútil. A cada vida salva, em muitos casos de crianças, me convenço de que faço um bem maior atuando como cruzado do que faria como um mecenas da elite de Florença. Lá beneficiaria alguns poucos e de forma limitada, se bem que continuo a amar as artes. E, caso fosse amado pelo povo, poderia até ser colocado no poder no lugar do meu irmão. No entanto, depois se aproveitariam das minhas boas intenções e, por ser apenas amado e nada temido, a minha cabeça rolaria, ou ficaria no mínimo ameaçada. Na política, o leão pode ser devorado por um bando de lobos.
– Não só na política. – Miguel abriu um sorriso um pouco amargo.
– É verdade, mas na política é algo mais acentuado. – Lorenzo Cavalcanti retirou o elmo e expôs os cabelos curtos e escuros e o rosto pálido. Replicou-lhe com outro sorriso, ainda mais discreto. – Como meu irmão costuma dizer, os profetas armados venceram, enquanto os desarmados foram destruídos, e o homem que tenta ser bom está fadado à ruína no meio da maior parte dos seus semelhantes, que não fazem o mínimo esforço para se tornarem melhores. Eu nunca me armaria contra quem é próximo de mim ou contra pessoas que me deram algo. A ingratidão é algo que jamais compreenderei. Mas a maioria não pensa da mesma forma.
– Sei como é ser um leão no meio dos lobos. É por esse motivo que atualmente sou precavido diante da maioria. Estou aprendendo que o silêncio talvez seja meu bem mais precioso, mais do que qualquer rugido.
– E eu por essa razão entendo que o meu pai tenha feito o que fez, me afastando da política mesmo sem eu estar interessado nela. Queria só o meu bem.
– Em condições normais, estamos desprotegidos. Sem o sangue de Cristo, seríamos presas, gado para os demônios, como todos os outros, e como eu próprio já fui. Além de nós, só os usuários de magia podem lutar contra os monstros. Porém sob a condição de se tornarem quase iguais a eles.
– Já eu não sei se vejo a magia de uma forma tão negativa. Não pode ser um outro termo para os dons do Espírito Santo aos não cristãos de bom coração? Distinguindo magia de feitiçaria, que é o que homens como o conde Henrique praticam. Afinal, mesmo algumas pessoas que se encontram aparentemente fora da Igreja fazem o Bem.
– Talvez. E, por compaixão a elas, Deus lhes ofereça alguns dons. Mas ainda assim não acho que haja muita diferença entre a magia chamada branca e o que você define como feitiçaria, que do meu ponto de vista continua sendo magia, ou seja, um caminho quase que reto para as trevas. – Miguel abaixou e balançou a cabeça. – Na aparência, muitos magos, os que não submetem nem são submetidos, podem lutar contra os demônios. Mas não porque se tornam aliados de Deus e sim para serem rivais dos demônios. Trata-se de uma disputa de poderes.
– Não é sempre assim. Você não tira mesmo o conde Henrique da sua cabeça.
– Também pudera! Se você tivesse passado pelo que eu passei…– Reergueu o olhar, flechando-o com o cenho franzido.
– Eu o entendo, mas acho que se equivoca ao generalizar.
– Já conheceu algum mago que tenha feito o bem? De verdade?
– Os três reis magos. – E prosseguiu, depois que Miguel soltou um muxoxo: – Em Florença, na minha última passagem por lá, ouvi falar de uma bruxa, chamada Miriam, que dava de comer às crianças famintas e aos mendigos da cidade.
– Miriam! Além de tudo é um nome hebreu.
– Todos são iguais aos olhos de Deus. Nunca se esqueça disso.
– Eu sei. Não tenho problemas com os etíopes, os gregos, os indianos e outros, porém os judeus mataram Jesus Cristo. E acredito que haja uma ligação intrínseca entre os judeus e a magia, sempre existiu, ao menos quanto a um tipo específico de magia. A tal de Cabala. Não é por acaso que sempre houve quem quisesse expulsá-los para bem longe, para mantê-los distantes do Santo Graal e do povo de Deus agredido pelos demônios, que eles podem ter ajudado a conjurar. Para uma estirpe perversa, que traiu a escolha do Pai, não bastou o deicídio!
– Mas, como você disse antes, o Filho veio para demonstrar que o Pai não é indiferente às dores da humanidade. Vamos refletir mais um pouco, eu também procurando reelaborar o meu raciocínio: se Ele não sofresse, Sua mensagem talvez não chegasse a nós e não haveria dor para redimir o homem. Ele se colocou em nosso lugar para sofrer como Adão na labuta da terra, criatura e Criador em um só. Tanto os hebreus quanto Judas foram instrumentos, ou nosso Senhor não teria beijado o traidor nem perdoado seus carrascos. Cristo, embora não tenha varrido o mal do mundo, demonstrou sua onipotência ao usá-lo como seu instrumento de redenção. Veio para mostrar o valor do amor e do perdão, e além disso deixou bem claro que não há indiferença divina. O povo judeu foi eleito novamente, embora de uma outra maneira.
– Talvez isso faça sentido. E apesar de não sermos ainda dignos da segunda vinda de Nosso Senhor, da completa extirpação do Mal, Ele nos deixou seu cálice e seu sangue para que possamos suportar o fardo enquanto esperamos. – Respirou fundo. – No entanto, de qualquer maneira, essa Miriam que você mencionou deve ter um nariz enorme, uma língua pegajosa e ser toda enrugada! – caçoou.
– Pelo contrário. Dizem que é jovem e bonita. – Lorenzo Cavalcanti continuou sério.
– Deve empregar um feitiço para seduzir e capturar os tolos. – Miguel pareceu se irritar com a resposta do amigo. – E ela pode parecer generosa apenas como uma fachada, se aproveitar da situação para que não a persigam e, enquanto todos ficam distraídos, até fascinados, usa os inocentes em sua feitiçaria.
– Eu não sei. Talvez meu principal defeito seja esse, Miguel: a princípio, entre duvidar e acreditar, prefiro acreditar nas pessoas. A minha fé vence o meu pessimismo.
– Isso é fruto da sua experiência individual. A minha diz para desconfiar.
Confiavam, sem nenhuma dúvida, um no outro e em seus cavalos, que voltaram a montar para retomar o caminho.
Chegaram ao entardecer em Dite, cidade fortificada nas colinas, de altos muros de pedra branca, que não permitia a entrada de forasteiros.
Diante dos portões, havia um acampamento militar onde tremulavam bandeiras das cores vermelha, laranja e amarela, com o desenho em branco de uma mão cujo indicador estava apontado para cima, os demais dedos fechados.
– Alto! Aonde pensam que vão? – Os dois cruzados foram interceptados por um grupo de cavaleiros.
– A Igreja nos enviou para inspecionarmos a catedral a pedido de vocês mesmos. – Miguel retirou, da bolsa pendurada à sela de seu cavalo, pergaminhos que apresentavam os selos em cera vermelha da Santa Sé e de Dite, este último aquela mesma mão que aparecia nos estandartes espalhados pelo abarracamento.
Eram a requisição da cidade e a autorização pontifícia, com as assinaturas do papa e do cardeal Torquemada. Apresentou-as àqueles homens.
– Ah, são os senhores! Perdão, podem entrar.
Miguel acenou com a cabeça e sorriu, guardando os documentos.
Nos passos que se seguiram, Cavalcanti prestou atenção àqueles soldados e sentiu suas entranhas revolvendo. O medo prevalecia, mas também havia inveja e admiração, em uma mescla ambígua de temor e esperança.
Deixaram os cavalos nos estábulos dos guardas de Dite. Um cavalariço demonstrou empenho em remover a sujeira da viagem de Asturcão com uma almofaça, outro limpando os cascos de Cid com uma escova dura e úmida que arrancou todos os pedaços de lama e esterco, deixando-os brilhantes. Um terceiro penteou a cauda de Asturcão com seus dedos longos e delicados, separando poucos fios de cada vez. Talvez agissem de forma tão voluntariosa porque tinham medo de algum castigo caso os cruzados julgassem seu desempenho insatisfatório?
Foram adiante. Em seu interior, ao menos na área mais próxima dos portões, Dite não lembrava em nada as belas paisagens que a antecediam, nem se via, nas ruas, o empenho na limpeza que os cavalariços do acampamento militar demonstravam. Pelo contrário, o que havia era um excesso de gente em péssimas condições: mendigos com os membros inchados; mutilados e leprosos, estes últimos com seus sinos balançando; rostos repletos de pústulas; latrinas públicas abarrotadas de fezes; e pessoas lançavam dejetos pelas janelas, sem que ninguém as multasse como era feito em outras cidades. Baratas e ratos transbordavam, os odores eram nauseabundos, porém todas as epidemias eram atribuídas aos forasteiros que um dia haviam passado para dentro dos muros, tendo sido estes expulsos ou, no caso dos que insistiram em permanecer como clandestinos, executados.
– Que situação triste. Será possível que alguns ainda acreditem que a limpeza do corpo humano advém do pecado da vaidade? Há vários papas que isso foi desmentido e os estudiosos comprovaram que por algum motivo, quanto mais sujo um ambiente, mais doenças se espalham – observou Lorenzo Cavalcanti. – Talvez em razão de minúsculos espíritos que se deleitam com a imundície.
– As mentalidades demoram a mudar e as determinações papais, por mais que sejam mensagens de Deus e cheguem à Terra puras, não se espalham de imediato – replicou Miguel. – A maioria das pessoas não se permite ser tocada. E a comunicação com alguns recantos é escassa, a Igreja não pode estar o tempo todo repetindo o que já foi salientado, e muitos ficam presos às suas pobres convicções. Acreditam que dão assim o melhor de si mesmos.
– É difícil dar o melhor de si quando todas as portas são fechadas. Talvez já saibam sim que estão errados, ou não dariam importância à higiene e à boa aparência dos cavalos, mas são preguiçosos quando não há olhos para vigiá-los, como se Deus fosse cego e os demônios um mero acaso. Seja como for, vamos falar com o monsenhor Albizi – referia-se àquele que celebrava a última missa do dia no interior da catedral da cidade. Um homem bonachão, com uma tonsura de cabelos grisalhos a emoldurar-lhe o crânio, a pele corada e os olhos claros como se tinha a impressão que fosse sua auréola, que, se existia, pacificava as almas dos fiéis presentes, anestesiados por sua bela voz de tenor acompanhada pelo coro feminino da igreja, formado tanto por leigas quanto por freiras do convento mais próximo, e pelo som do órgão. Executavam o canto de um salmo e ele sorria, feliz, certo de que a alegria coletiva podia espantar qualquer demônio, conquanto muitos fiéis, pelo embotamento da dor interna e dos pensamentos atribulados, começassem a sentir uma certa indolência, já que nada mais lhes restava ao serem retiradas suas cargas, como se seus corpos evaporassem para depois desaparecer.
Albizi, por sua vez, não sentia seu peso corporal enquanto ministrava uma missa. As dores nos joelhos começavam quando todos os fiéis já haviam saído do templo. Era por isso que eventualmente cogitava se o problema se devia apenas ao seu peso ou a outros que eram deixados no lugar.
Vestia, no momento, uma batina preta com discretos bordados de cruzes e flores em violeta, também a cor da faixa que cingia seus rins e dos frisos sobre o barrete negro. Podia se sentir satisfeito que nenhum de seus trajes – e sobretudo sua estola, que num pesadelo recente fora rasgada sem piedade – estivesse respingado de sangue como no último tormento onírico. Neste, a toalha do altar, que apresentava um refinado contorno em renda, aparecera manchada de vermelho; e sobre esta o cálice de prata, agora com o vinho da Eucaristia, apresentava sangue, mas não divino, e sim um sangue escuro e malcheiroso. O cibório com as hóstias, naquele instante fitado com um desejo pouco solene por um coroinha em jejum não muito concentrado no ritual, estava empapado de pedaços de entranhas.
Por dentro, prevaleciam ali o rosa, o branco, o bege e o verde-claro, com destaque para os lances de vitrais com anjos, a Virgem Maria e o Espírito Santo na parte superior da abside. O vitral com a pomba, alinhado com o eixo da nave central, dava a impressão de fornecer asas luminosas ao oficiante. Ao passo que do lado de fora a catedral chamava atenção por seus múltiplos cumes e pela aparência um tanto intimidadora, as pontas mais numerosas do que o normal quase como espinhos de pedra, tanto que, se chegassem a tocar o céu, o machucariam; tinha-se essa impressão. Talvez fosse uma intenção desesperada de fazer descer o sangue de Cristo como uma torrente.
Começou a chover, embora apenas água, e Cavalcanti e Miguel haviam chegado diante de sua fachada, ambos a pé.
O primeiro reparou nas arquivoltas, que percorriam os arcos de ogiva, ornadas por um emaranhado de esculturas figurativas relacionadas ao livro do Apocalipse. O segundo fechou os olhos e se persignou ao realizar uma prece.
Guardiãs não só contra as águas pluviais, proeminentemente dispostas para melhor escoá-las, deveriam ser as gárgulas, tidas como protetoras do templo mesmo com suas aparências horripilantes, mistas entre bodes, anões, morcegos e feras carniceiras; mas Lorenzo sabia que não tinham a menor eficácia real contra os maus espíritos e, antes de entrar, ainda deteve seus olhos por alguns instantes no tímpano e, mais especificamente, na imagem de São João Evangelista a redigir suas cartas.
"Quem dera não faltasse muito para os últimos dias. Quem dera logo a Revelação se concretizasse! Estaria, porém, sendo pretensioso ao me considerar um dos Eleitos? E se desejar para logo o Juízo for um sinal de que eu não seria um dos Eleitos? Um Eleito deveria ser abnegado e pensar em primeiro lugar no próximo. Enquanto eu, ao desejar apressar os desígnios de Deus, cortaria o tempo necessário para algumas pessoas se redimirem. Entregaria muitas almas ao Inferno. Deus me perdoaria por isso? Para a minha sorte, e a de toda a humanidade, o Criador é mais sábio e paciente do que suas criaturas." Entraram no templo com os capacetes debaixo dos braços. Miguel se persignou mais uma vez, Cavalcanti pela primeira. Aguardariam a conclusão da missa para conversar com o monsenhor, que, apesar da distância, os viu e deduziu que fossem os enviados da Santa Sé. Por pouco não se engasgou no meio do sermão que pronunciava, porém esperava que significassem o final de seus pesadelos, tanto ao dormir quanto desperto. Posto que se lembrar destes não fosse o melhor para seu desempenho como oficiante, concentrado que precisava estar apenas nas coisas de Deus.
Aos poucos, até os mais moles foram endurecendo: os monges nos cadeirais da igreja se enrijeceram como as figuras de santos que adornavam os gabletes1, encimados por cruzes, que coroavam os espaldares filigranados de seus assentos; e os olhares laterais dos fiéis, sobre pescoços bastante rígidos, acabavam atingindo os dois estrangeiros. Nem mesmo para os cavaleiros de Dite era comum entrarem em uma missa portando armas e vestindo armaduras.
Como a população sabia do pedido feito, muitos não disfarçaram mais seu medo e famílias inteiras não demoraram a sair, puxando suas crianças. Temiam o aparecimento de algum demônio. Houve até quem, seus filhos tendo outrora recebido o batismo na fonte do átrio, a imaginasse agora cheia de sangue, as folhas esculpidas no mármore tingidas de vermelho.
Lorenzo gostava do cheiro daquela igreja, que lhe lembrava perfume de almíscar, bem diferente do fedor prevalente na área mais afastada da catedral. Só estava constrangido, pois não tivera a intenção de estragar o ritual e atrapalhar o padre, o que se dava conta que ocorria.
Miguel não se importava. "Eles deveriam ficar atentos ao culto. Isso só prova o quanto a maioria só vai à missa por obrigação. Se estivessem realmente atentos, nem teriam se dado conta da nossa presença. Pois que saiam, se são insinceros!"
– Reverendíssimo monsenhor, sou Miguel, cruzado da Santíssima Igreja Romana, a seu serviço. – Inclinou-se para cumprimentar o clérigo após o último canto ter sido executado e os poucos fiéis restantes terem saído.
Olhares assustados partiram do coro de mulheres, que evaporaram em um instante. Do mesmo modo que o padre organista e os monges.
Dos que haviam se retirado da igreja, quase nenhum os fitara nos rostos. Haviam preferido o corpo e as armas, e passar de lado, repletos de incertezas e temor, em certas ocasiões reverente, em outras trêmulo, afora uma boa parcela de crianças admiradas.
– Perdão se causamos algum distúrbio, Capelão de Sua Santidade. Percebi isso, mas não era nossa intenção. – O outro cruzado se aproximou. – Sou Lorenzo Cavalcanti.
– Cavalcanti? Por acaso seria o irmão de Cesare e filho de Guido?
– Eu mesmo, monsenhor.
– Não precisa pedir desculpas, meu caro Lorenzo! – Acercou-se e abraçou o cruzado. – Ah, bem que reconheci o lírio de Florença em sua armadura! Quantas saudades ele me traz! Eu e seu pai nos conhecíamos bastante bem. Estudamos sob os mesmos preceptores.
– Eu me lembro disso. Meu pai me falava muito do monsenhor. Por isso fiquei feliz em saber que nos encontraríamos pela primeira vez.
– Isso desde que ficou adulto, porque cheguei a vê-lo quando ainda era um bebê! Guido teria orgulho ao reencontrá-lo investido de uma nobre missão e tão bem preparado.
– Fico feliz que estejamos entre amigos. Isso facilita bastante as coisas! – Miguel sorriu.
– Guido às vezes vinha se confessar comigo. Isso na época em que Dite não era tão intolerante com a entrada de gente de fora. Bons tempos aqueles!
– Fiquei preocupado com a sua requisição. Pelo visto os bons tempos se foram. – Lorenzo tornou a se manifestar.
– De fato. – O monsenhor bufou e pela primeira vez seu semblante ficou turvo. Afastou-se dos dois cavaleiros e apoiou-se no altar. – Dizem que sou muito corajoso por seguir aqui dia e noite. Mas não vou abandonar o bispo Abissini.
– Onde ele está?
– Em um dos quartos do segundo andar. Acha-se descansando. Tem estado muito doente desde a primeira aparição da criatura.
– O que tem acontecido em Dite, afinal? – inquiriu Miguel. Lorenzo franziu o cenho.
– Todas as noites ocorrem ataques. E uma vez houve horror até na hora de vésperas em meio à festa de Pentecostes. Em lugar das línguas de fogo do Espírito Santo, o monstro apareceu e subiu à mesa de ação de graças que havíamos preparado na praça em frente à igreja. Pisoteou as colheitas, contaminou nossas carnes, salivando sobre elas, e, por fim, atacou os pescoços de muitas pessoas. Sugou seu sangue e depois arrastou algumas com ele. Todos os que não fugiram o viram escapar para dentro das catacumbas da catedral, mas ninguém teve coragem de segui-lo, pois os cavaleiros que tentaram enfrentá-lo foram massacrados por suas garras, que perfuram até o aço, e não conseguiram feri-lo. Imaginem o pânico, meus filhos! E de lá para cá, sempre depois que escurece, são encontrados corpos mutilados, com todo o sangue sugado ou a carne chupada dos ossos ou rasgada. Talvez alguns homicidas e outros criminosos inclusive se aproveitem da situação para perpetrarem seus delitos e permanecerem impunes, com toda a culpa recaindo sobre o demônio. Eu, particularmente, acredito nisso. O que faz com que rogue a vocês para que exterminem essa criatura o quanto antes possível! A ação dela também estimula a ação dos monstros humanos, apavora os justos e deixa a cidade entregue ao caos. – E quando Lorenzo ia fazer uma nova pergunta, Albizi, sem olhar para ele, os olhos arregalados para o vazio, engoliu a saliva e emendou: – Assim como parece ser o desejo do demônio que fique minha alma, pois não cesso de ter maus sonhos. Terríveis pesadelos em que me vejo imerso em sangue! Em que a igreja fica repleta de sangue! Estou convencido de que sou espiritualmente agredido todas as noites, quando tento dormir pacatamente. As preces que realizo não têm sido o bastante.
– Nós nos compadecemos desta situação e o ajudaremos, monsenhor. Mas saberia nos dizer se haveria algo mais na relação entre o demônio e a doença do bispo? – Após Albizi falar de si, Lorenzo conseguiu perguntar. – Por acaso ele também tem tido pesadelos? Gostaria de compreender isso melhor.
– Que eu saiba, Sua Excelência Reverendíssima não experimenta maus sonhos. É por demais puro para que o demônio afete sua alma. Confessou-me, no entanto, que ficou, desde o início, desgostoso com o fato de a cidade estar tão afundada no pecado que o surgimento de uma criatura das trevas acabou sendo inevitável. Por isso, decidiu receber em seu corpo os pecados da urbe, aguentando o quanto puder enquanto o monstro não for eliminado e não começarmos a modificar nossas posturas. Sua perspicaz suspeita de que haja algo mais é portanto correta, meu querido Lorenzo. Temo, todavia, que a carga seja pesada demais! Conquanto se trate de um homem à beira da santidade. A carne é, afinal, frágil.
– Como se dá o acesso às catacumbas? – perguntou Miguel.
– Fechamos as entradas na intenção de manter o monstro aprisionado, mas isso foi inútil. Até hoje nada o reteve. E é possível entrar com relativa facilidade ao se mover o altar de uma das capelas radiantes. Poderão descer por lá.
– Peço então que nos leve, monsenhor. Nós… – Contudo, Miguel foi detido por Cavalcanti, que colocou uma das mãos em seu ombro direito.
– Espere. Antes, poderíamos ver o bispo por um momento? Chamaram algum médico?
– Chamamos mais de um. Mas não lograram nenhum diagnóstico claro. E ele próprio frisou que seu mal-estar e sua doença são espirituais.
– Com sua permissão, Capelão de Sua Santidade, gostaria de vê-lo e de conversar com ele. Talvez nos ajude a compreender a natureza dessa criatura e a localizá-la com mais precisão. Ao que tudo indica, trata-se de um habitante das profundezas. Esse tipo de monstro gosta de se esconder em cavernas e tumbas e são extremamente ágeis e traiçoeiros, perigosos tanto pela força como por sua astúcia.
– Eu poderia descer e ir investigando enquanto você fala com o bispo. – Miguel sugeriu.
– A conversa faz parte da investigação. Mas se quiser, pode ir antes. – A resposta veio com uma certa demora.
"Ele está desconfiado de alguma coisa bastante séria." O cavaleiro dourado notou. "E faz muito bem. Em nosso trabalho, só podemos confiar em Cristo e, a princípio, uns nos outros. Em mais ninguém! Os demônios são espertos. Mas Lorenzo tem um plano em mente. Nem a permissão que me deu foi casual: deixando-me ir, não despertará suspeitas e medos por parte do bispo ou do monsenhor. Mostra que confia na minha força."
– Então me espere aqui, filho. – Albizi não se alterou, dirigindo-se a Miguel. – Vou levar Lorenzo até o bispo e depois retornarei para conduzi-lo à entrada das catacumbas.
O cruzado castelhano anuiu. Os outros dois se afastaram e logo estavam subindo os degraus para o andar acima.
– O que pretende falar com o bispo, meu rapaz? – O monsenhor lhe perguntou no caminho.
– Quero que me forneça mais detalhes sobre os males que o afligem e vou me mostrar disposto a colaborar com a redenção desta cidade. Queria falar também com o monsenhor justamente sobre isso: o que vi em Dite é preocupante e emergencial; a proliferação da imundície, sem que sejam aplicadas penas severas contra ela, promove a difusão das doenças. A ignorância está na raiz de certas formas de suicídio: quando as pessoas se sentem bem na sujeira física, é porque a sujeira moral e espiritual já as corroeu, tornou-se desesperança e raiva de si mesmo, e cedo ou tarde a podridão alcançará os meandros da carne, ultrapassando a pele.
– Eu e outros irmãos em Cristo temos feito o possível, espalhado as recomendações do papa e trazido durante os sermões mensagens de incentivo ao asseio público e pessoal. O cônsul também tem colaborado, mas muitos estão ainda convencidos de que deturpamos as mensagens da Santa Sé e que queremos induzir o povo de Deus ao pecado da vaidade, que só fortaleceria o demônio. Seria preciso que o próprio Sumo Pontífice aparecesse para convencê-los, e ainda assim tenho minhas dúvidas!
O monsenhor notou um pesar no rosto de Cavalcanti, que se calou diante dessa resposta.
***
Miguel, ao ficar sozinho, reparou nas estátuas dos profetas dispostas pelas duas naves laterais, em sua maioria danificadas.
Estava escrito Jeremias sob o velho pensativo sentado com as pernas cruzadas. Não tinha nariz.
Em outra escultura, faltava a mão que deveria segurar o pergaminho. Era Isaías.
Elias lia um livro em chamas. "É a escultura de que mais gosto." O sol que entrava pelas janelas a iluminava e fazia com que o fogo parecesse mais real.
Fechou um pouco os olhos para sentir o ambiente ao redor.
Sem erguer as pálpebras, caminhou para o meio da nave central, onde cruzou os braços e buscou tranquilizar a mente.
Ali havia algo, que ainda não via, que o perturbava.
Orou.
***
– É uma honra conhecê-lo, jovem cruzado Cavalcanti. – Deitado sobre um colchão macio, o bispo Abissini retirou os braços de baixo dos lençóis e os ergueu, torcendo o rosto.
– Não se esforce em vão, Excelência. – Lorenzo se aproximou, ajoelhou-se ao lado do leito e beijou o anel no dedo anular direito. – Estou aqui para servi-lo.
Apesar das faces esquálidas e crivadas de rugas, os olhos de Abissini conseguiam irradiar na simplicidade a luz de um cansaço generoso, de alguém que não esmorece mesmo com o corpo alquebrado, sua dignidade episcopal reforçada pela mitra apoiada na mesa de cabeceira.
– Estou indo, vou deixá-los um pouco a sós. – Albizi anunciou que iria ao encontro de Miguel, que continuava no mesmo lugar, na mesma posição.
O incômodo que o cruzado castelhano sentia, que tomava a forma de uma náusea, transformou-se em um calafrio a lhe percorrer a espinha. Abriu os olhos e discerniu uma sombra que passava entre as esculturas de uma das naves laterais.
Ao tocar o punho da espada montante nas costas para desembainhá-la, a lâmina se transformou em fogo e encurtou. Assim pôde ser extraída com facilidade. O cavaleiro a posicionou diante de si e voltou a ser aço, primeiro candente, depois de aspecto comum. Tudo em questão de segundos.
Não por um mero título que Miguel era conhecido como o homem da espada do fogo do Espírito Santo, ou da espada dos anjos, cuja empunhadura dourada tinha de fato o formato das asas de um anjo e a bainha continha uma representação do príncipe dos arcanjos.
"Há alguma coisa aqui. Talvez não seja preciso baixar às catacumbas!"
O monsenhor desceu a escadaria e se deparou com a postura alerta do guerreiro. Parou e engoliu a saliva. Não conseguiu mais se mexer. "Se ele está com a lâmina pronta, o monstro deve estar por aqui! Como pode? Terá sentido a presença do cruzado e vindo desafiá-lo?"
– Não se mova, monsenhor! – Foi o conselho dado à distância, em voz alta.
"Já estou imóvel. E pode ficar certo que não vou sair do lugar." O arfante e trêmulo pensamento de Albizi.
Entrementes, Miguel olhou para todos os lados e não havia mais nenhum rastro daquela sombra. Nenhuma nova contração percorreu sua musculatura. Só via e sentia a si mesmo, além do trêmulo monsenhor.
"Foi tão forte! Como pode ter sido só uma impressão? O que está acontecendo? Mesmo se fosse um cão vadio ou um gato sorrateiro, não desapareceria assim. Minha percepção deve estar enferrujada. Bem que Raja às vezes me diz que não basta só saber manejar a espada, que é preciso sempre se exercitar espiritualmente." Voltou a transformar sua lâmina em fogo para devolvê-la à bainha, onde tornou a se metalizar e esfriar.
***
– O problema da falta de asseio é sério, mas é apenas um dos equívocos de Dite. – A voz do bispo, ao conversar com Lorenzo, estava rouca. – O fato de a cidade não aceitar forasteiros abriu as portas para outro tipo de gente: para os xenófobos com manias persecutórias, que acham que qualquer um pode ser um forasteiro. Embora pareça paradoxal, um mau fechamento, no mundo, com frequência desemboca numa má abertura, no espírito. Nem todos sabem, mas vêm ocorrendo até execuções secretas, promovidas por seitas heréticas que pregam pela pureza moral da cidade; e muitos colocam toda a culpa no monstro.
Lorenzo Cavalcanti, além de estar atento às suas palavras, observava todos os gestos: os movimentos dos dedos finos; o modo de mexer os lábios gretados; o piscar das pálpebras encorrugidas.
– O monsenhor Albizi acenou a respeito disso. O que poderíamos fazer contra essa onda de ignorância?
– Por enquanto só consigo reter em meu próprio corpo a ira de Deus, para que a cidade não seja destruída.
– Só isso? Vossa Excelência Reverendíssima já está fazendo demais. Por isso viemos. Eu e Miguel pretendemos ajudá-lo… no que for preciso. Não apenas para eliminar o demônio. Temo que, ao exterminar um, surja outro.
– Desconfio que seja assim mesmo, meu jovem e virtuoso cavaleiro. – Abissini abriu um sorriso cansado. – Fico feliz que a Toscana ainda conte com almas como a sua. Temo, porém, que não resistirei por muito tempo.
– Não sou assim tão virtuoso, Excelência. Logo que voltei à Toscana, mágoas antigas vieram à tona, como que brotando do solo que percorri. Entretanto, são de um nível bem profundo, que se encontra sob o chão, sob a terra. Pensei em apenas matar o demônio e ir embora. Mas, ao testemunhar a situação desta cidade, senti compaixão pelos irmãos que a habitam.
– Lorenzo, suas palavras me impressionam e me cativam. Aproxime-se mais um pouco para que eu possa lhe dar um beijo de bênção na testa. Para que suas ideias continuem sendo iluminadas por Cristo. É Ele a fonte de toda compaixão e sabedoria.
– Será uma honra receber sua benção, Excelência.
Cavalcanti se levantou e se inclinou para receber o beijo do bispo, que fazia tudo com grande esforço.
Contudo, num movimento rápido demais para ser visto por olhos humanos, a cabeça de Abissini voou longe; já estavam sujas de sangue as duas espadas curtas do cruzado, antes em sua cintura, contidas em bainhas de prata com gravado o lírio de Florença, que se repetia na superfície de suas lâminas.
– Muito esperto! – Uma massa de tentáculos carnosos, seguida de uma gargalhada, saiu de dentro do corpo do bispo para estrangular Lorenzo, que saltou para trás, ainda assim seguido por aqueles braços verminosos, que rastejaram em velocidade. Deixavam para trás vísceras e restos de órgãos; mas foi inútil: toda a carne agressiva acabou sendo retalhada em segundos.
***
Miguel ouvira a voz maligna e sentira o fluxo espiritual hostil no quarto de Abissini. Por isso correra para cima.
O susto da disparada do cruzado fizera o coração do ainda imóvel Albizi quase saltar pela boca. Só não fora maior porque nenhuma sombra seguira o cavaleiro dourado.
"Senti como se ele fosse me agredir!" Agachou-se e levou as mãos ao peito. "Que grande covarde que sou! Onde está minha fé? Um cruzado nunca me atacaria, a não ser que estivesse em um mau sonho! Mas estou bem desperto." Sua mão direita estava vermelha como vinho ou sangue.
– Meu Deus! O que aconteceu aqui? – A indagação de Miguel ao encontrar os aposentos do bispo banhados de sangue e os restos de uma criatura sombria.
– Não, não… – Cavalcanti murmurou, com os olhos dilatados. Falava consigo mesmo.
– Explique-me o que houve. – Miguel manteve a calma, apesar da cena. – Por acaso o bispo era um demônio disfarçado?
– Não. Habitantes das profundezas não podem assumir a aparência humana. – Desta vez Cavalcanti falou em alto e bom som.
– Então o bispo estava possuído por um?
– Esse tipo de demônio também não pode fazer isso, Miguel. Mas eles são suficientemente perigosos para gerar aberrações, pequenas crias que entram nos corpos humanos.
– Me desculpe… Eu não me lembrava. Preciso revisar certos estudos.
– Não se incomode. Às vezes não temos tempo, realmente. – Os olhos de Lorenzo voltavam ao tamanho normal. – Eu é que nunca paro de ler.
– Mas você desconfiou de alguma coisa desde o começo, não é? Eu percebi.
– Quando o monsenhor começou a me falar do bispo, investiguei o espírito dele. Sua Excelência Reverendíssima era um bom homem, mas não um santo. Estava com muito medo, mas muito medo mesmo. De morrer. Pude sentir o pavor dentro de mim quando me foquei em perceber as condições de sua alma.
– Como de costume, você disfarça muito bem.
– Ele podia até acreditar que estava recebendo o castigo de Deus no lugar da cidade, mas, na verdade, sua doença se devia à presença do parasita demoníaco, que se mostrou capaz de enganar qualquer médico, permanecendo imperceptível. O bispo não tinha mais salvação. Considerando-se ainda que nem todas as pessoas podem ser possuídas por esse tipo de criatura: a porta que ele abriu foi o medo; isso desde que o demônio entrou nas catacumbas.
– O monstro está nos esperando lá embaixo?
– Está sim. E a gargalhada que reverberou foi dele, não da cria. É forte. Embora não sejam nobres do Inferno, alguns habitantes das profundezas têm um poder comparável ao de um barão.
– Uma pena pelo bispo. Medo até nós que temos o sangue de Cristo em nossas veias podemos sentir. Imagine as outras pessoas. Não temos que condená-lo por querer viver.
– Como acha que estou me sentindo? Preferi decapitá-lo a permitir que uma aberração estourasse sua cabeça. Ao menos morreu sob uma lâmina cristã. Ainda assim, desfechei o último golpe contra a vida de um bom ser humano! Peço perdão, Excelência. – Ergueu a cabeça e fechou os olhos. – Ele pode ter sido pretensioso ao pensar que estava salvando a cidade. Mas ao menos era uma crença sincera. – Tornou a abrir os olhos e abaixou a cabeça. – Não importa: quanto mais lutamos, surgem pelo caminho mais cadáveres dos que não mereceriam morrer da forma como morrem. Ou as pessoas merecem pelos pecados alheios? Então o que nós temos de melhor? Poder? Sorte?
– É muito triste e sinceramente não sei como responder. Mas não podemos ficar parados. Vamos ao menos tentar diminuir o número de inocentes mortos.
– Tentar, diminuir! É tudo o que fazemos. Eu queria que pudéssemos fazer crescer. E que não fossem apenas tentativas, e sim êxitos. – O outro recebeu um olhar rijo de Lorenzo Cavalcanti. – Perdão, Miguel.
– Comigo pode desabafar à vontade. Mas vamos descer. O monsenhor deve estar no chão. Preguei sem querer um susto nele. Não tinha outro jeito.
Desceram pelos degraus e encontraram Albizi ajoelhado no piso da catedral, com as pálpebras cerradas e rezando.
Passaram sem fazer estardalhaço, pois já que estava orando, era melhor não perturbá-lo, até porque suas preces poderiam lhes ser úteis, mas ele ainda assim despertou:
– Meus filhos… – Estava difícil encontrar coragem para perguntar. – O que aconteceu com Sua Excelência Reverendíssima?
– Ele sofreu um ataque e está morto. – "Meu Deus! Ele poderia ser menos direto", Miguel refletiu diante da franqueza de seu amigo Lorenzo. Albizi levou as mãos à boca e não conteve o choro.
– Mas não foi o monstro principal, que está nas catacumbas. – O cavaleiro dourado resolveu complementar.
– Quer dizer que há mais deles?
– Sim – respondeu Cavalcanti, e simplificou: – O demônio principal coordena os menores lá de baixo.
– Eu… os levarei até lá – gaguejou.
– É melhor que fique aqui orando ou mesmo saia da catedral enquanto descemos. Ou então, se quiser muito nos acompanhar, que se mantenha bem próximo, sob a nossa direta proteção.
– Eu ficarei – tossiu, engasgando-se com a saliva –, ao lado de vocês, meus filhos. – "Será que estou tendo um rompante de coragem? Ou seria medo de ficar aqui em cima sozinho ou mesmo de fazer o caminho para a saída sem eles ao meu lado? Fiquei só enquanto Miguel subia. Mas continuo sendo um covarde, pois não tive coragem de segui-lo! Perdão, bispo Abissini! O senhor sim se preocupava com esta pobre cidade de pecadores, eu um deles, talvez o maior." O flagelo do pensamento atormentava Albizi e Miguel sentia agulhadas na cabeça, algumas tão fortes que o levaram a piscar os olhos com insistência, o que foi notado por Cavalcanti, mas se seguiu um rápido abano da mão direita do cavaleiro dourado, para que não se preocupasse.
Lorenzo sabia que seu companheiro, embora não fosse muito de ler – e não propriamente por não gostar e sim porque dizia que, após alguns instantes com o olhar na escrita, sua testa latejava e as dores de cabeça frontais seguiam por algumas horas, o que o desestimulava em seus estudos – nem possuísse uma percepção espiritual ou emocional grandiosa, nesse sentido comum entre os cruzados, tinha uma certa facilidade para captar pensamentos. Mesmo que não os lesse sempre, compreendia suas intenções. Quando eram negativos, produziam um efeito nocivo em seu crânio, como se o pressionassem ou o espetassem, além de queimarem suas pupilas.
O florentino sentia as emoções caóticas do monsenhor e portanto era certo que também pensamentos problemáticos provinham dele, enquanto não havia no momento nada do demônio das catacumbas perambulando pelos ares, a não ser o terror semeado.
A princípio, ficara apreensivo ante a afirmação do atemorizado clérigo, que poderia atrapalhá-los no combate vindouro se continuasse por perto. Fizera um convite esperando colher uma recusa.
No entanto, o gesto de Miguel fora um pedido para que confiasse. Não mais piscou os olhos.
O monsenhor que tomou a dianteira, os três ultrapassaram o deambulatório, repleto de representações de passagens do Novo Testamento no piso e com um crucifixo de ouro ao fundo, circundado por rosáceas e afrescos, e entraram em uma das capelas radiantes.
Albizi deslocou o altar para revelar uma escadaria esculpida na rocha.
– O senhor tem mesmo certeza de que pretende vir conosco? – Cavalcanti achou melhor se certificar.
"Ele quer me ajudar, mas não precisa fazer isso. Tenho que aprender a lidar com esse tipo de situação. Obrigado, Lorenzo." Miguel agradeceu dentro de si, sua careta quase um sorriso ao direcionar seu olhar para a parede. Havia ali um afresco de Santo Antão tentado pelo diabo, o que não ajudava muito.
– Ah… e... – O monsenhor demorou a responder e as primeiras letras pronunciadas não formaram uma palavra articulada. – Eu vou. E vou estar sempre por perto, rezando por vocês sem parar, meus filhos.
– Então vamos logo. – Cavalcanti lhes deu as costas e foi o primeiro a descer.
Ansioso para não ficar desprotegido atrás dos dois cavaleiros, Albizi o seguiu com em suas mãos o candelabro aceso, que acabara de apanhar.
Miguel foi o último, seu semblante agora com uma aparência tranquila.
1 Gablete é uma parede ornamental triangular construída sobre algum outro elemento, como um arco, um vão de porta, um portal, uma janela ou mesmo uma cadeira.