– Eles estão se aproximando; e são muitos. – Havia apenas uma casa, naquele vilarejo coberto de neve, a no momento conter seres humanos. Ou semi-humanos. – Fizemos bem em evacuar a cidade. – Hong olhava pela janela. Era um chinês de estatura média, seus cabelos raspados na frente e com uma trança atrás.
– Belial e suas legiões… Como foi possível que um monstro desses tenha conseguido se materializar? A virtude humana anda tão em baixa? – indagou Ptolomeu, o egípcio, sua armadura negra e dourada com um falcão no peitoral rodeado por um disco solar e encimado por uma cruz. – A cada dia a Terra se torna um campo de batalha mais violento. – Se o chinês mantinha na cintura suas duas espadas, com uma bainha na qual o dragão seguia para o alto, enquanto na outra descia feito uma serpente-rodamoinho, o egípcio já parecia pronto para o combate; seus dedos cingiam uma lança com lâminas curvas dos dois lados. – Será que foi para isso que Cristo deu seu sangue?
Ajuntados em um quarto não tão espaçoso, Dyonisos bebia uma taça de vinho aromatizado forte. Era o único sem armas ou armadura, sentado sobre um caixote.
– Tenho um certo receio de que não sejamos o bastante para liquidar com essa merda toda. –Leovigild estava de pé, de costas para os outros, seus olhos voltados para a parede e as mãos sobre o pomo da espada. – Se fossem só os legionários! O problema é o maioral, o rei.
– Não deveríamos dar títulos a essas criaturas – disse Friedrich. – Condes, barões, viscondes, reis! São seres sub-humanos, que não merecem tanto respeito. Ao passo que nós, ao aceitarmos nosso trabalho, nos tornamos mais do que seres humanos. Por que deveríamos temê-lo?
– Mais? Acho que viramos menos. Poderíamos estar vivendo uma vida tranquila, mas não! É isso o que escolhemos, viver como monstros que matam monstros. – Em sua irritação, era o oposto de Masamune, que estava em seiza, com os joelhos sobre o chão, e de Raja, em padmāsana, com as pernas cruzadas.
– O que acha que seria uma vida tranquila? Viver com medo a todo instante? Ser fraco demais para poder se defender? Gilles, que vocês já conhecem, era o brinquedo de um demônio antes de se tornar um jovem cruzado. Chama isso de vida tranquila? As pessoas comuns não têm descanso.
– E não somos monstros. Ou os anjos também seriam – disse Ptolomeu.
– Ao que estão se comparando, seus idiotas? – Leovigild cuspiu uma bola verde-amarelada de catarro perto do próprio pé.
– Nenhuma meta é inalcançável, pois Deus nos quer tão próximos Dele quanto os anjos. – Raja se pronunciou. – É uma questão de alcançar o estado adequado, de se unir a Cristo, de entrar em comunhão com o Espírito Santo.
– Falando nisso, pretende fazer uso nesta batalha do que andou treinando? – Dyonisos sorriu e jogou sua taça no chão ao terminar de beber. – É perigoso, mas pode ser divertido.
– Se for preciso, sim, farei uso. Mas espero que não seja. – O indiano recebeu um olhar atento de Masamune.
– É o que ouvi dizer, que se deixa possuir por alguns instantes para se aproveitar da força dos demônios. E depois dizem que não somos monstros! – exclamou Leovigild.
– Fico acima do mal ao alcançar um estado em que não há mais distinções entre a minha pessoa e a totalidade da Criação. Deus me dá forças e posso dominar meus demônios internos e externos. Acha que isso é ser monstruoso? Ao fazer isso, salvarei vidas.
Pareceu que Friedrich comentaria a resposta de Raja, mas acabou, com um olhar de brilho ambíguo, por fechar os lábios.
– Pode salvar quantas vidas quiser, mas a minha visão não muda – teimou Leovigild.
– É só um velho cabeça-dura e ranzinza! Não deem importância a ele – zombou o grego.
– Acho que encarar a realidade faz parte do trabalho de um cruzado. Aceitar que somos monstros não é um demérito: é a única forma de não nos deixarmos possuir, tendo ciência do que realmente somos. Abrimos mão da nossa humanidade pelo nosso próximo, decidimos mergulhar no Inferno, mas isso não nos faz anjos ou santos. Somos homens que se aproximam do limiar do demoníaco para podermos compreendê-lo. Um jogo traiçoeiro! Temos o sangue de Cristo em nossas veias para suportar as chamas do Inferno. Não para sermos parecidos com Ele.
– Cada um tem uma visão diferente. Não estamos aqui para discutir. Alguns deles já chegaram à cidade e mais outros seguem se aproximando. O portal nas montanhas se fechou. – Hong, que tinha uma sensibilidade espiritual acima da média, detectara a vinda dos demônios. – Todos passaram. – Colocou o capacete com a cruz sobre o dragão, de aparência escamosa como sua armadura colorida.
Saíram da casa em que haviam se hospedado e não viram ninguém, mas suas armas estavam todas prontas: Dyonisos expôs seu cacho de uvas e o transformou em uma corrente com esferas de metal, que assumiu a forma de uma rede para prender o primeiro demônio que os agrediu, um voador vermelho do tamanho de uma águia, que terminou esmagado dentro da teia de aço; Hong manuseou suas duas espadas, que intensificaram a força dos ventos e arrastaram consigo lascas de gelo afiadas contra uma criatura cujo corpo lembrava o de um urso prateado, porém com olhos em diferentes partes, como nas patas, peito e costas; o fogo de Friedrich cortou o solo e fez surgir um córrego de magma no qual despencaram cinco voadores, atraídos não pela gravidade, mas sim pela psicocinese de Raja; Masamune, com sua katana, movendo-a a uma velocidade extrema, logrou cortar a carne dura de uma fera quadrúpede que lembrava um leão negro. Outra surgiu na sequência e foi a vez de Leovigild saltar e arrebentar-lhe o crânio.
Ptolomeu girou sua lança e formou um turbilhão que atraiu para o seu centro dezenas de voadores pouco maiores do que corvos, dizimando-os.
– Parece que os subestimou, meu senhor. Nesse ritmo, serão todos derrotados. – Pouco afastado, um ser de pescoço comprido e armadura cinzenta, com três braços e rabo curto e espinhoso, os dedos tentaculares em constante movimento, comentou com alguém ao seu lado, embora aparentemente não houvesse ninguém.
– Não acredito que me cerquei de tantos inúteis. Admito que pensei que seriam suficientes contra esses humanos. – De onde vinha aquela voz? De um fantasma? De uma entidade invisível?
Na verdade, provinha de um diminuto demônio azul de cauda sinuosa, do tamanho de um polegar humano, com uma barbicha no queixo e olhos vermelhos. Um nada se comparado ao gigante ao seu lado, que porém jamais ousaria tentar esmagá-lo.
– Eles não são apenas humanos. O senhor sabe bem disso.
– É verdade. É que na minha concepção o fruto será sempre superior ao sumo. Ou a uva ao vinho. A propósito, não gosto de bebidas inebriantes. – Uma aura da cor da profundidade do fim do mar explodiu, expandindo a sombra do minúsculo demônio.
Esta o absorveu e ele assumiu sua verdadeira forma: cresceu até superar os seis metros de estatura e exibia asas de uma envergadura insuperável na Terra; seu corpo era azul-escuro e peludo, com uma boca que dava a impressão de ser minúscula se escancarando em dentes letais, os olhos de vertigem com pupilas que giravam sem parar sobre um fundo aquoso. Meio que voou e meio que saltou rumo aos seus alvos.
– Está acabado. – A outra criatura, na mesma linguagem estranha na qual se comunicavam, deu seu veredicto, permanecendo onde estava.
O grande demônio pousou diante dos seis com o peso de um lótus metálico, cujas pétalas estavam carregadas com uma sonolência de garras ilimitáveis, capazes de se aprofundarem em qualquer carne de sonho.
Ao vê-lo, Friedrich pareceu extasiado. Pisoteou o cadáver de um demônio inferior e abriu mais os olhos.
Hong, que acabara de trucidar a criatura de visão multiplicada, retrocedeu para respirar fundo.
Ptolomeu foi o primeiro a atacar: tentou atraí-lo para o seu tornado, mas tudo o que conseguiu foi que aquele rei do Inferno sugasse sua energia com a boca e o puxasse para perto de si. Só não ficou perigosamente próximo graças à intervenção de Masamune, que atacou com a espada e fez com que o monstro saísse de onde estava: transportou-se num instante, com uma velocidade superior, para um lugar seguro, a salvo do golpe.
Dyonisos manipulava sua corrente multiforme, que às vezes se transformava em uma teia de fios cortantes e assim capturava e retalhava alguns demônios fugitivos; ao passo que Raja focava sua mente já no adversário principal, que ao bater as asas enegreceu a neve e intensificou a tempestade.
– Estamos fodidos. – Leovigild sentenciou o destino de todos ali com sua costumeira sutileza.
– Se se considera incapaz de reagir, pode ficar aí parado. – Friedrich imantou sua espada com fogo, tornando-a vermelha, e voou num único salto de encontro ao inimigo, assim como Masamune e Hong.
Juntos, chocaram suas armas contra os braços do demônio, que assumiam formas variadas, entre lâminas, escudos e ganchos.
A intensidade e a rapidez dos movimentos rachavam o solo e produziam tufões, incrementados pelo giro da lança de Ptolomeu.
– Vocês não vão atacar? – Leovigild questionou o grego e o indiano.
– Por que não vai você? – inquiriu Dyonisos, em tom de desafio. Todos os demônios menores haviam sido derrotados.
– Belial só pode ser essa criatura. Pelo que sinto, parece-me impossível que consigamos derrotá-lo, mesmo todos juntos. Só há um meio – replicou Raja.
– Com você se deixando possuir...
– Mesmo assim, sozinho não será possível. Vocês terão que me ajudar.
Uma explosão: a aura negra e os raios sangrentos e expansivos atraíram a atenção de Belial, que porém foi retido pela arma do cruzado ateniense, que se dividiu em três cadeias e amarrou seus braços e o derrubou.
Masamune e Leovigild saltaram para decapitá-lo ou ao menos decepar um de seus membros, porém a carne se revelou mais dura do que o normal e sua força conseguiu rechaçá-los, partindo as cordas metálicas. Só não alcançou Raja porque Friedrich perfurou seu abdome.
A dor maior, entretanto, era enfrentada pelo indiano, que viu à sua frente uma figura de compleição seca, o rosto exibindo uma expressão sorridente e raivosa, que de forma repentina começou a mudar de aparência. Criou músculos, mas com ossos saltando para fora da pele cada vez mais vermelha. Protuberâncias nasceram na testa para a seguir se transformarem em chifres. Uma crina se estendeu pelo pescoço e uma juba cresceu em volta da cabeça. Olhos febris: uma forte dor de cabeça, acompanhada por náuseas e calor, passou a incomodar o guerreiro. Precisava manter a consciência e a sanidade a todo custo.
Calafrios acompanhavam a descarga de substâncias tóxicas na corrente sanguínea. Seguiram-se a palidez do rosto e tremores violentos. O que culminou em uma sensação de síncope.
Por alguns momentos, chegou a observar o interior de seu cérebro e temeu a oclusão dos vasos sanguíneos. Fazia um esforço brutal e, se não tivesse treinado de forma árdua para aquilo, teria morrido em segundos ou sido possuído sem a mínima possibilidade de retorno a si mesmo.
Ao medo somava-se a lembrança da malária que contraíra na infância. Os sintomas eram parecidos, se bem que acelerados e expandidos. Da doença para o êxtase, encontrou Krishna e Cristo em um abraço no alto de sua cabeça, a cruz a princípio incolor tornando-se azul da cor do oceano, e seu corpo se transformou, lançando à sua volta nuvens de relâmpagos vermelhos. Assumiu a forma de um grande demônio de crina e barba espessas.
Belial, que após um confronto demorado contra Friedrich e Ptolomeu perfurara o braço de um, pois transformara um dedo em lança e atirara o outro longe com uma onda de energia negra, encarou o novo inimigo com seriedade.
– Incrível! Não imaginava que crias dos padres como vocês fossem capazes de algo do gênero. Mas não pensem que a minha força se limita ao que viram até agora. – O buraco em sua barriga se reconstituiu e uma nova espécie de força começou a ser emanada. Esta paralisou o demônio comandado por Raja, para o desespero deste, e deu forma a dois espectros retorcidos.
Friedrich e Dyonisos estavam prontos para golpear o rei maligno em lados opostos, mas acabaram atingidos pelas duas criaturas fantasmagóricas, que mesclavam traços humanos e demoníacos.
Raja foi ao chão. Belial soltou uma gargalhada e o grego e o alemão começaram a se debater e se deformar.
– Vejam o que é pecar agora! Bando de fracotes – disse com desprezo o rei demônio.
Leovigild proferiu uma sequência de palavrões e retrocedeu. Ptolomeu pensou em atacar, mas a coragem se esvaiu, fazendo com que largasse a arma no chão. Masamune ficou imóvel. Hong foi o único a agir. Liberou um grito cheio de ódio e avançou numa última tentativa de salvar os companheiros.
Terminou trucidado por dezenas de lanças que se materializaram a partir da aura do adversário, mais afiadas e pontiagudas do que quaisquer que pudessem ser produzidas pelo ser humano. Despencou com o corpo todo esburacado, já sem respiração.
– Filho da puta! – Leovigild esbravejou.
– Nem mesmo o plano de Raja funcionou. O poder de um rei do Inferno está muito além do que imaginávamos – comentou Masamune, e por dentro se questionava: "Como puderam nos enviar para lutar contra esse monstro? Por acaso queriam que morrêssemos? E por qual razão? Está na hora de renovar o estoque para que os experientes não semeiem desconfianças e questionamentos?"
Com Raja sentindo-se inútil e impotente, Dyonisos se transformou. Assumiu a forma de um enorme bode bípede e albino, com garras imensas e olhos de louco; Friedrich ainda se contorcia.
– Não adianta resistir. – Belial se voltou para o alemão. – Você é só um ser humano.
Quando menos esperavam, Leovigild e Masamune sentiram que a presença de Ptolomeu se esvaíra. O egípcio escapara, embora sem se esquecer de sua lança. Decerto não voltaria tão cedo àquele campo de batalha...
– Covarde imundo! Nos deixou para trás, o filho da puta! Claro que não vai ter cara para voltar para Roma depois. Vai ser amaldiçoado, seu cagão de merda! – Leovigild fincou a espada no solo.
O samurai cristão, que pensara em ir atrás do outro, desistiu e se afastou, enquanto a onda de choque proveniente de Leovigild se propagava para atingir o demônio.
No caminho, estraçalhou o corpo perfurado de Hong, mas foi detida pelo já possuído Dyonisos.
"Preciso voltar. Ou não vou conseguir manter a consciência", aos poucos, o corpo de Raja voltava ao normal e o demônio era afastado, ou seria o próximo a ser possuído em face à tristeza por ter perdido o amigo e mentor. "Criaturas malditas, imundas… Por que existem? Deus, quero justiça! Quero Dyonisos de volta."
– Agora você é meu escravo. – Belial disse para o que tomara o corpo do grego.
– Não acato ordens de ninguém. Muito menos de hereges e demônios. Algum dia, voltarei para dançar sobre os cadáveres de todos vocês. – O novo possuído, que passou a impressão de que parara o ataque de Leovigild mais para se exibir do que por qualquer outra motivação, deu um primeiro salto maior do que qualquer um ali poderia calcular, mais dois outros e desapareceu da vista de todos.
Apesar da promessa de algum dia acabar com cada um dos presentes, não ficaria ao lado do monarca infernal. Este estava incluído em sua ameaça.
Aquela era uma criatura demoníaca das mais excêntricas, que talvez detestasse outros seres da mesma espécie e parecia apoiar a caça da Igreja aos hereges. Na verdade, sentia-se livre demais naquele momento para se envolver em uma batalha tão desesperada.
Era evidente que queria gozar da oportunidade de se manifestar no mundo. De admirá-lo para depois dobrar os que arruinavam sua beleza. Esse seria o verdadeiro sentido de seus hereges: os que bloqueavam a dança da vida cometiam a pior das heresias.
– Dyonisos! – Raja chamou pelo amigo, sem êxito.
– Depois vou atrás desse rebelde covarde. Não tenho a menor pressa. – O monarca infernal não se importou, até porque tinha outro trunfo: Friedrich não pudera resistir mais; e foi ficando cada vez mais encantado com sua forma e força à medida que sua energia e seu corpo se alteravam. Se ser possuído era assim tão bom, que tivesse ocorrido antes!
Não via o demônio que se apoderava de sua carne como um invasor hostil e sim como um tremendo poder agressivo, impessoal, sem pensamento próprio, pura ira e punhos firmes, capaz de estraçalhar quaisquer oposições e de desmanchar qualquer apequenamento, desejando acima de tudo a superação dos próprios limites.
Os entes das trevas pareciam possuir uma força suprema, que nenhum ser humano jamais conseguiria compreender e talvez por isso os tachasse de impuros e indignos.
"Venha até mim. Eu a aceito", falou com a sombra que o envolvia, compreendendo a alegria que sentira emanar de Dyonisos. Ficou imensamente feliz com um preenchimento que do seu ponto de vista sublimava o abaixo e adensava o acima. O homem controlava a besta sem reprimi-la, aceitava-a, e esta cedia sua força ao homem. Uma fera espontânea, porém controlável, despertava-lhe a fome e dava-lhe vontade de trotar pelos campos. Tornava-os inférteis para os mesquinhos e os paladinos do bem, que pretendiam manter a humanidade fraca e submissa. Onde estava Cristo? Pregado numa cruz, impotente, enquanto seus braços se erguiam para tocar os céus. Quem o Salvador salvara em um mundo devastado pela guerra e pela ganância? E qual o mal em querer e lutar para se obter o que se pretende? Por sua superioridade intrínseca, os grandes homens seriam merecedores de tudo o que os interessasse, restando ao rebanho a submissão. Se as ovelhas não queriam ser devoradas pelo lobo, que o enfrentassem. "A força faz os reis, enquanto o amor conduz ao abismo, à derrota."
Se a recompensa definitiva estaria no Paraíso, o tutor de Gilles preferia viver no Inferno, onde não haveria tédio. Enfrentaria seus medos para alcançar seus desejos, que nunca cessariam, pois sempre haveria algo a explorar. Sempre novas recompensas. Quiçá Cristo até mesmo desejasse isso, seu sangue abrindo a estrada para a explosão de criaturas superiores, que tentariam e conseguiriam reconquistar o Paraíso perdido, transformando-o na sequência. Nisso residiria a maior e mais bela das salvações.
– Ahhhhh… – Acompanhando um prolongado suspiro de êxtase, seu corpo cresceu e adquiriu patas. A parte inferior tornada equina, o homem sobre a besta.
Transformara-se em um imenso centauro azul-cristalino, que superava os seis metros de altura, apenas os cabelos e os olhos brancos, estes sem pupilas.
Formava, a partir dos braços, as lanças e flechas que queria, enquanto tudo em volta se tornava escuro e lento, apenas ele próprio luz e velocidade: "Onde estão Jesus e seus mártires? Onde está o filho de Deus? Eu sou um Deus. O homem torna-se Deus quando reconhece o valor de sua coragem e aceita que pode transformar o mundo. Assim Jesus deve ter se tornado Cristo; Cristo que é Deus; Cristo montou em Jesus. O homem é o único animal que monta em outros animais. E que monta a si mesmo. Não são os mártires, que talvez não tenham entendido Cristo, apenas Jesus, que irão nos negar isso, nos restringindo e nos condenando, pois a vida é afirmação, é o movimento para o poder, é a Ressurreição na glória, não a admissão da fraqueza na morte. Ao derramar sangue, devemos fazer isso para conquistar ou defender. Jamais nosso próprio sangue deveria respingar por qualquer causa alheia, pois nenhuma é válida o bastante para ser digna de apagar a chama!
Não existe verdade que não seja humana. Enquanto Deus fala além e por isso permite nosso domínio, o domínio dos demônios, que não aceitam qualquer verdade que não a que podemos dobrar.
A Igreja deve tremer para que possa aprender: o corpo de Cristo não está mais na Terra, e talvez tenha ido embora para sempre. Vamos superar o longo crepúsculo que coxeia diante de nós, afastar a tristeza bêbada e cansada, alcançar com vigor o sol que queima os bocejos e aquece o frio e tedioso fastio pelo espírito, que nada mais é do que o homem, ao passo que o corpo é o demônio, o princípio selvagem que estou chegando à conclusão que não possui e sim desperta. Talvez, um dia, todos os demônios tenham sido humanos.
Se o meu peito afunda, o mofo do mundo invade a minha sombra; não é o que desejo. Se o sábio é antigo, não se acalmará nunca sendo verdadeiramente sábio, indo procurar sempre pelas origens do futuro e por novas fontes, grato pela cavalgada que se eterniza.
O tremor de terra que se segue ao meu trotar soterrará mananciais, provocará sede e deixará famílias inteiras desabrigadas; a neve continuará a cair, mas a terra estará quente para recebê-la e derretê-la, com os veios de magma que se abrirão. De todo modo, as forças íntimas e os segredos da luz virão à tona, pois não sou nem nunca serei egoísta. Estou disposto a me abrir à fúria dos fortes.
Muito é ensinado e sabe-se o que se pode obedecer e a quem… Sabe-se realmente? Por quê? Se for para aceitar a vida, que esta não venha com imposições", Friedrich estava mais confuso do que sentia; a verdade era que a razão se nublava. Podia-se, aliás, falar ali em razão? Não seria esta um fenômeno humano, e não demoníaco? O raciocínio do caos devia ter outro nome, no que parecia ser mesmo mais um despertar, ou então uma fusão, do que uma possessão.
"Não quero fugir!" Leovigild cuspiu no chão. "Não sou um covarde!" Mas, ao passo que Friedrich encarava sem brilho nos olhos os antigos companheiros, cuja derrota era iminente, sua atenção foi capturada por Belial, o que o levou a um terror de paralisia, difícil dizer se causado apenas pelo rei demônio. Era ouvir a marcha da morte no retorcer e espalhar do sangue, que escapava das veias para gelar os ossos.
“Não há outra forma. Teremos que escapar.” A voz de Raja foi ouvida nas mentes do cruzado pouco pudico, que se surpreendeu, pois ainda não conhecia esse dom do indiano, e do samurai cristão.
“O que é isso? Alguma espécie de bruxaria?” inquiriu Leovigild.
“Não se trata de nada mágico. É apenas telepatia. Comunicação mental. Algo que obtive com muito empenho no yoga, graças à minha interação com Deus. Não imaginam a dor que sinto neste momento! Mas posso salvá-los” garantiu-lhes o indiano.
“De que jeito? Não foram atrás de Ptolomeu e Dyonisos, mas não nos deixarão fugir também!” Leovigild cerrou os dentes.
“Posso transferir no ato nossos corpos daqui para Roma. É melhor do que morrer, mas é um dom que uso raras vezes, ainda mais em outras pessoas, porque dependendo do estado em que me encontro fico sem forças por um bom tempo depois de aplicá-lo. Não estranhem se quando estivermos longe daqui eu ficar desfalecido e demorar de três a dez dias para recuperar a consciência” esclareceu Raja,
“Tem certeza que lhe restam forças para fazer isso?” questionou Masamune.
“Antes só eu morrer do que nós três” respondeu resignado.
“Espere um pouco então!” Leovigild queria e não queria detê-lo, mas o processo já se iniciara: a cruz se encontrou com o lótus de mil pétalas no alto da cabeça de Raja e o possuído Friedrich e Belial, que se preparavam para retomar o ataque, tiveram suas visões ofuscadas; um segundo sol eclodira.
Uma névoa dourada se espalhou e flechas, lanças, garras e espadas a atravessaram sem efetividade.
Esta se foi, e os dois demônios haviam ficado sozinhos. Lado a lado debaixo da tempestade de gelo e neve.
***
Como previsto, o cruzado indiano demorou alguns dias para se restabelecer. Aliás, para meramente despertar.
– Como está, meu caro? – Assim que acordou, eis que estava recebendo a visita do cardeal Jonathan. – Parece bem melhor! Pelo menos reabriu os olhos. Ficamos preocupados com você.
– Preocupados? Não tenho tanta certeza disso – retrucou, ajeitando-se na cama.
O cardeal de Santa Maria em Domnica, que andava de um lado para o outro, parou e sorriu, olhando nos olhos do guerreiro.
– Por que não tem certeza? Acha que não nos importamos com nossos filhos?
– Não sei se Vossa Eminência tem idade para ser meu pai. Não sou nenhum garoto.
– Sei disso, meu caro. Mas não precisa me tratar dessa forma. Até nesses dias preparei aquela tisana! Você tinha passado a receita ao bispo Tharien e não resisti. Com erva-doce, gengibre, canela e um pouco de leite. Ficou uma delícia, meus parabéns!
– A receita, na verdade, era da minha falecida sogra.
– Rezarei algumas Ave-Marias por ela. Que Nossa Senhora possa interceder pela alma de uma mulher tão virtuosa!
– Por que nos mandou para aquela missão? Foi praticamente um suicídio. – Não estava para rodeios; incisivo, tentou golpear o cardeal em uma das nervuras de sua alma.
– Precisávamos de alguma maneira conter Belial e suas forças. Vocês não conseguiram vencê-lo, mas ao menos eliminaram alguns dos espíritos malignos que o seguiam.
– Não me venha, Eminência, com esse discurso de consolação. Foi um fracasso: Friedrich e Dyonisos foram possuídos por seres muito piores do que os que eliminamos. – Inspirou forte; Jonathan o fitou com um ar de plácida ironia. – O que não compreendo é como, por qual motivo, Belial simplesmente não sai por aí arrasando cidades e conquistando o mundo. Não conseguiríamos contê-lo. O que o detém?
– Deus não permitiria. E os reis demoníacos sabem que ainda não chegou a hora do confronto decisivo contra as hostes do Senhor. Asmodeus uma vez tentou e foi repelido por Rafael. Agora agem com mais cautela: um deles pode ter chance contra vários cruzados, mas não é capaz de vencer um arcanjo, e talvez não possa vencer todos os cruzados juntos. Vocês se subestimam. Simples assim.
– Às vezes me pergunto por que existimos. Por que Deus não nos protege diretamente com suas hostes?
– Mas Ele nos protege. Elas só não interferem o tempo todo, somente em emergências, para preservar o livre-arbítrio dos homens.
– Livre-arbítrio! Tantos sofrem, são massacrados! Essas pessoas escolheram isso?
– Após o Dia do Juízo, só haverá lugar na Terra para os que estiverem do lado de Deus. Mas por enquanto todos estão tendo suas chances. Precisa ser mais paciente. Vocês indianos inclusive não defendem a metempsicose? Pois bem: deveriam ser ainda mais pacientes. – Alargou o sorriso.
– Vossa Eminência parece indiferente a isso. Acredita em reencarnações, por acaso?
– Não, sigo a doutrina oficial da Igreja. Só acho que todos os pontos de vista devem ser respeitados, com a condição de que aqueles que os defendem sejam coerentes, não cedendo a caprichos revoltosos.
– Não estou questionando a minha fé e as minhas experiências, apenas o modo como a Igreja militante age em relação a nós… cruzados.
– Fundem uma corporação de ofício! Não vejo nenhum mal nisso.
– Vossa Eminência debocha de mim?
– De forma nenhuma. Juro que não! Falei sem qualquer maldade.
– Melhor pararmos por aqui. Vou me restabelecer logo e poderão me mandar para outra missão.
– Vamos lhe dar algumas semanas a mais de descanso, Raja. Você merece. Ainda mais depois de perder Dyonisos. Sei que eram próximos. Foi ele quem o trouxe aqui, afinal. Se a Igreja não valorizar as amizades, não pode ser uma herdeira digna de Cristo e seus apóstolos. Que exemplo de amizade mais elevado poderíamos citar?
– Obrigado, mas não quero um tratamento diferenciado. Se Vossa Eminência precisar me enviar para outra missão infernal, estarei disponível. Enquanto isso, ficarei orando pela alma de Dyonisos.
– Farei o mesmo. E também por Friedrich. Hong ao menos está livre. Que Deus o tenha no Paraíso.
– Alguma notícia de Ptolomeu?
– Nenhuma. Ele desertou. Assim como Leovigild também nos deixou há poucos dias, infelizmente. Novos cruzados em breve serão necessários.
– Como isso foi acontecer? Não esperava uma deserção de Leovigild! Ele parecia ainda disposto a lutar.
– Será mesmo? Ele não parece ter lidado bem com a visão de um rei do Inferno. Chegou a tremer falando de Belial enquanto soltava seus palavrões de estimação… Mas esperemos que a deserção não seja consumada. Ainda há tempo. Afinal, você talvez se lembre, se não é sempre bom rememorar, todo cruzado tem até doze meses para reportar a razão de um desaparecimento repentino. E pode até levar mais tempo, inclusive anos, desde que o motivo seja válido, como, por exemplo, ter sido aprisionado por um demônio. Que não se trate de mera covardia ou traição. – Levou a mão direita aos olhos e espremeu-os por um instante antes de reerguer as pálpebras. – Bem, importa mais agora que contamos com você e Masamune como os mais experientes que restaram. A menos que também esteja pensando em deixar a Igreja
– Não caçoe de mim, Eminência. Percebe algum tremor? Já disse que o quanto antes for necessário estarei disponível. Jamais desertaria para viver uma vida amaldiçoada pelos homens e por Deus. Não sou membro de uma mera guilda, e sim de uma Ordem consagrada. – "E também não me é permitido morrer enquanto não tiver livrado a alma de Dyonisos. Caso contrário, Deus poderá me perdoar, mas eu não me perdoarei. Jamais."
– Como preferir, meu querido irmão oriental.
Literunico - O espaço dos criadores de conteúdo literário.