Embaixo, havia uma imensa piscina de fogo, com chamas que se contorciam de fome, ávidas para abocanhar, destroçar, mastigar e dissolver as seis vidas ofertadas no alto: uma mulher e duas crianças, um menino e uma menina, os três de cabelos negros retintos, e um idoso, uma idosa e um homem de meia-idade, de cabelos brancos, todos de tez escura; a seus pés, dois turbantes, um amarelo e um preto, estavam desmanchados.
Nativos do sul da Índia, o adulto vestia um dhoti1 alvo com um angavastram2 colorido, o velho apenas um dhoti simples, desbotado, o do garoto um tanto sujo de terra; e as mulheres usavam saris em estilo madisaara, roxo e dourado o da mais velha, azul-claro o da mãe de família e bege o da garota.
No solo, estava traçado o yantra de Mahakali, o círculo de águas turbulentas contido no palácio vermelho e contendo o lótus que se abria em fogo. Invocava os três triângulos cujo centro unificado era o ponto branco de início e fim do universo: para Kali não havia diferença.
– A boca da Deusa contém a saliva borbulhante de onde nasceram Brahma, Vishnu e Shiva – disse um sacerdote thug, trajado em preto como seus companheiros. – Há quem narre que foi Brahma quem a moldou, mas em verdade o senhor da Criação se enganou ao acreditar nisso, pois ela já existia muito antes, apenas descoberta por seu filho, provando sua primazia ao encantar todos os deuses! É a escuridão superior, que devora o que há e o que não há, que se alimenta de cinzas e bebe do néctar que ninguém mais sabe extrair dos ossos. – Usava uma máscara repleta de dentes curvos e afiados, vermelha e amarela, com a língua para fora. – A única capaz de se manifestar com um sorriso gentil após esmagar um demônio ou retalhar um pecador. Não há esperanças para os que entram em seu reino. Ao mesmo tempo que todos estão nele, fadados a conhecê-La, submetidos à iminente aniquilação. – Um rapaz de dhoti rosado carregava um cesto com os colares, os anéis, as pulseiras e as pedras preciosas soltas, adornos retirados dos que seriam sacrificados. Seriam jogados às chamas junto com seus antigos proprietários.
– Se Ela nasceu da pedra, como a piedade poderia ser encontrada em seu peito? – recitou outro sacerdote, cuja máscara parecia viva, seus olhos de um vermelho intoxicado pela fúria. – Não há lugar para a compaixão, ou como Ela ousaria pisotear o Senhor? Os homens a chamam de misericordiosa, mas não há o mínimo traço misericordioso em ti, ó Mãe. Cortaste cabeças de crianças, escolhendo usar uma guirlanda de caveiras em volta do pescoço. De nada adianta que te chamemos, mãe, ó mãe, pois nos escutarás, porém não auscultarás nossos corações. Mãe terrível que nos carrega, nos alimenta e sabe o quanto somos fracos e dependentes sem necessidade de nada indagar! – Retinha entre as mãos uma estatueta preta da deusa, com inúmeros braços que empunhavam espadas. A imagem segurava também um tambor e uma serpente envolvia-lhe o corpo.
– Nossa carne é vermelha, o sexo nos traz a vida e à vida, aceitamos o cereal, bebemos o vinho e recebemos a água ao comer o peixe. Se Matsya circunda o mundo, Kali é o mundo e o antecedeu! – bradou um terceiro oficiante, próximo de uma estátua em pedra azul com dez rostos, dez pernas e três olhos em cada rosto, montada em um leão que se erguia sobre um lótus cerúleo.
Nos olhos de cada testa, havia um rubi do qual partia um raio vermelho que alcançava a piscina: deviam ser os artefatos mágicos que geravam e avivavam aquelas chamas. Canalizavam um poder incontestável.
– Nossa mãe é o princípio da Consciência. Ela é Akhanda Satchidananda. É a Realidade indivisível, existência e bem-aventurança. O céu da noite entre as estrelas é perfeitamente negro, assim como as águas profundas do oceano. O infinito é sempre misteriosamente escuro. Estas trevas inebriantes são manifestações de nossa amada Kali.
– Se não fosse por Ela e pelas Matrikas3, Raktaija teria conquistado o mundo, usurpado a Criação. Usar uma imensa variedade de armas foi inútil: de cada gota de sangue do demônio, este reproduzia uma réplica de si mesmo. Mas nossa Mãe não se limita às espadas. Ela é terrível e pode beber o sangue. Foi dessa maneira, e vestida com uma pele de tigre, preenchendo o céu com seus urros, que Kali sugou toda a vida do monstro para dentro de si. E ele se tornou seu filho, submetido em suas entranhas à vontade da Mãe. Que fiquemos ao abrigo de tua ira!
– Tu que te deixas inebriar pelo sangue, que bailas em frenesi destrutivo: chegaste a não perceber, em tua dança alucinada, que tinhas passado por cima de Shiva. Foi preciso que o Senhor chorasse de dor para que teu êxtase se aplacasse. Quem pode te controlar? – E o tenebroso ritual parecia não terminar nunca. Um jovem de dhoti vermelho degolou uma pequena cabra e a atirou pingando sangue no fogo.
Estavam em uma caverna de paredes ásperas, dominada por um calor sem precedentes, conquanto os hierofantes mascarados de Kali não mostrassem um pingo de suor. Isso ao contrário dos adoradores comuns e dos que, ao que tudo indicava, logo seriam sacrificados.
Raja levantou a cabeça e tentou proferir uma oração, mas não conseguia se concentrar. Estava revoltado com Deus e com a vida por sua família ter sido capturada pelos thugs. Fora traído em sua fé. "Que levassem a mim, mas sem tocar meus filhos, meus pais e minha mulher", viviam em uma pequena, mas rica, cidade de Tamil Nadu, onde tinham sido aprisionados após um ataque repentino conduzido pelos thugs da região, que haviam realizado um primeiro sacrifício em movimento, incendiando igrejas e residências, em sua maioria de madeira, e levado consigo algumas famílias. A de Raja era a única que restava. "Tenho que realizar uma última tentativa. Não posso ficar parado", tremeu, mas pretendia agir, ele que passara pelas duas primeiras etapas necessárias na trajetória de um homem indiano: na infância e adolescência, estudara a Bíblia, o que nos Vedas a antecipara e as relações entre a antiga sabedoria hindu e a mensagem do Cristo; ao chegar à idade adulta, casara-se e tornara-se um pai de família; pretendera – para depois que seus filhos tivessem se casado, assegurando a continuidade da linhagem – se retirar para a floresta com a esposa e viver uma vida de oração; por fim, ao chegar à velhice, tornar-se-ia um mendicante e tentaria realizar milagres por meio da Fé.
Seu pai parara no segundo degrau, mas Raja queria ir adiante, conhecer Jesus Cristo e os santos e anjos, os yogues e os devas do Paraíso, mais de perto antes de partir, através de êxtases e visões, ou, caso não realizasse essa ambição espiritual, acreditava que estaria condenado a prosseguir na roda do Samsara, o Purgatório terreno que só se encerraria no dia do Juízo Final.
Sua vida presente parecera-lhe uma oportunidade de ouro. Não desejava desperdiçá-la de forma nenhuma. E se na vida seguinte renascesse em um meio dissoluto?
Contudo, se pudesse salvar sua família, talvez Deus reconhecesse seus méritos e virtudes e o presenteasse com uma nova encarnação em um ambiente adequado e com pessoas afins, melhor distante da Índia, para evitar que acabasse obtendo alguma recordação.
Cogitar o Paraíso no momento espiritual em que se achava? Não era tão pretensioso! O Svarga era para os santos, uma meta que ainda não alcançara. Esperava apenas ser livre para amar na Terra, longe de aspirar ao primeiro Céu, por demais distante do Brahman, que estaria para além de todos.
"Que não renasça entre estupradores, ladrões e assassinos. Que tenha uma mãe carinhosa, um pai sábio, genitores como os que tive nesta vida! Além de uma vaca que dê muito leite.
Que possa achar uma nova esposa virtuosa, ou, se o Senhor me permitir, reencontrar minha querida Ushas.
Agora, me resta pouco tempo. O Sol está se pondo. Tenho que ser rápido. Deus, dai-me forças!"
Por fim fizera uma prece mental, e cogitou segurar o crucifixo de ouro que costumava trazer no pescoço, porém este lhe fora retirado. Limitar-se-ia a ir com a Cruz que tinha em seu coração: "O que na verdade não é uma limitação. Tenho que superar este teste", fora educado e criado com firmeza e ternura nas medidas certas por seu pai, um comerciante como uma considerável parcela da população da cidade onde nascera, estes mais ou menos prósperos, de resto povoada por servos e por alguns brâmanes.
Na Índia, os padres haviam adotado tal denominação tradicional a fim de conseguirem uma maior identificação e um número sempre crescente de conversões. Somente aceitando as peculiaridades do catolicismo indiano que a Igreja construíra e consolidara uma hegemonia naquele subcontinente antes indomável.
A propósito, tinham feito muita falta xátrias indomáveis durante o ataque dos thugs. Nenhum cavaleiro fora avistado durante a investida dos adoradores de Kali.
– Esperem, homens de fé! – interveio Raja, surpreendendo os sacerdotes.
Um rapaz cujo corpo inteiro estava tatuado com imagens da deusa negra se aproximava do pequeno Varaha, seu filho, na iminência de atirá-lo ao fogo. A menina, a caçula, não parava de chorar, mas era ignorada pelos fanáticos. Ushas arregalara os olhos úmidos.
– Não faz sentido sacrificarem mulheres, velhos e crianças. Acham que a Deusa se rejubila com isso? Kali quer sangue e carne frescos e maduros, não o que ainda está verde ou que ressecou ou até apodreceu. Além disso, a carne da fêmea não deve interessar a Kali. Ela deseja o macho para provar sua superioridade.
– Tolo! Quem pensa que é para nos falar sobre os desígnios de nossa Deusa? Não passa de um animal de sacrifício. De um ímpio, que se vendeu para os cristãos em troca de ouro e pedras. – O sacerdote de máscara com a língua para fora falou em tom severo. – Além de ignorante, é um traidor sobre o qual a fúria da Deusa irá se abater com a força de cem relâmpagos!
– O que pensa que está fazendo, Raja? – A velha mãe questionou.
– Eles são frágeis. Não são dignos. Jogue apenas a mim. – O pai de família ignorou o questionamento e insistiu com os sacerdotes.
– Desgraçados! Acham que somos vendidos! – Para o susto e desespero de Raja, seu pai cuspiu no solo consagrado. – Perdoe-me, meu filho, mas esses são absurdos que não posso tolerar. Se tenho ouro e joias, foi porque trabalhei para obtê-los, porque Deus me agraciou por meu esforço. E nunca traí a sua deusa, malditos thugs! Uma deusa repugnante que só sabe matar e cometer atrocidades! Nunca serei o servo de um demônio. Somos homens e damos nomes às criaturas da Terra!
– Arishta! – E seguindo a ordem de um dos hierofantes de Kali, um assassino mascarado avançou com sua adaga e degolou o idoso para na sequência jogar seu cadáver nas chamas.
Raja nunca antes presenciara movimentos tão velozes.
Na lâmina, reluzia a figura de um javali.
– Não vamos mais tolerar interrupções – disse outro entre os sacerdotes e o mesmo assassino embainhou sua arma e tocou, com as extremidades dos dedos, alguns pontos do corpo de Raja, que ficou sem poder mover a língua e sem conseguir se mexer direito. – Já basta de insolências. Pela sua coragem, apesar de ser um ignorante, e por seus sentimentos genuínos por sua família, permitiremos que morra por último. Poderá viver o suficiente para se despedir de cada um. – Raja tentou gritar, mas nenhum som saía.
Sua mãe desmaiou e foi atirada ao fogo inconsciente. A seguir determinada a vez da filha.
Raja ainda buscou reagir, porém foi jogado no chão pelo carrasco.
Pelo silêncio que sobreveio, o choro de sua menina cessando, deduziu que fora degolada; e o corpinho despencou rápido demais na garganta do demônio ígneo.
Ushas fechou os olhos; seu marido não tinha forças para se levantar.
Varaha, como se o espírito de um xátria tivesse entrado em seu corpo, arrebentou as correntes do medo que o haviam contido até o momento e investiu contra o inimigo, que se dirigia na direção de sua mãe.
O assassino, frio e preciso, cortou as gargantas da criança e de Ushas em um instante, inútil um tentar defender o outro, e atirou os dois corpos que sangravam no poço das labaredas.
Raja começava a recuperar os movimentos; sua boca tremia.
– Agora iremos juntos. Este é nosso sacrifício sagrado. Só assim para que você possa se redimir diante da Deusa, mergulhando junto com um devoto. Uma pena que só o seu corpo não possa resistir às chamas. – O carrasco retirou a máscara que lhe encobria o rosto e revelou um semblante disforme, de olhos em brasa e protuberâncias na testa e nas faces, seus cabelos desgrenhados e sujos.
Deu uma gargalhada bestial. Com a força e a velocidade que possuía, de fato não tinha como ser humano. Apenas seu olhar era capaz de desencadear terríveis males.
Raja, outra vez de pé, sentia um peso tremendo nas pernas.
– Arishta! Pode encerrar a cerimônia.
– Farei isso com todo o prazer.
Raja não iria se render. Não era um xátria, mas pretendia lutar até o fim. Dominou o braço do asura, torceu-o assim que este tentou apunhalá-lo e empregou toda sua força e a intensidade máxima de giro do seu quadril para atirá-lo ao fogo. Deixou os sacerdotes de Kali boquiabertos.
Isso em sua imaginação: porque na realidade recuava e um único empurrão o faria cair no poço das chamas. Só pôde fechar os olhos e orar e refletir de forma confusa: "Cristo, permita-me que a minha próxima vida seja mais longa; que eu possa me aproximar mais de Deus. Fui incapaz de proteger minha família, de cumprir com meu dever como pai e marido. Que os chacais arranquem os meus pedaços!" Escutou o som de uma flauta, visualizando a imagem de Krishna. Perguntou-se se já caíra entre as labaredas e se fora poupado da dor, indo diretamente ao encontro do Senhor, que lhe mostraria por uma estrada de pedras douradas e céu azul o caminho para uma nova existência.
No entanto, o som atravessava seus ouvidos físicos. Ainda não se tornara cinzas.
Reabriu os olhos e testemunhou a paralisia dos devotos de Kali: um indivíduo moreno, porém não indiano, de nariz aquilino e olhos e cabelos escuros e longos, com o olhar de um pássaro de rapina que também era cantor, tocava o instrumento de sopro com uma maestria inaudita. Vestia uma espécie de toga branca e usava coturnos da mesma cor.
Os sacerdotes se encararam. Pareciam confusos, surpresos e um tanto preocupados. O demônio que massacrara os entes queridos de Raja via sua mão tremer, sem conseguir manusear sua adaga ou mexer os pés. Raja reconheceu, na música tocada, similaridades com um famoso mantra em que se falava da unidade entre Krishna e Cristo.
– Como ousa profanar nossa cerimônia, estrangeiro insolente? – inquiriu um dos bruxos da deusa negra, que formou ao seu redor, desenhando-o com a ponta do dedo indicador direito, um yantra de triângulos de fogo contidos em um círculo negro, que escaparam do que os retinha e se expandiram na direção do desconhecido.
A melodia, entrementes, exercia uma influência misteriosa sobre o fogo, que foi se extinguindo por toda parte, inclusive na piscina abaixo.
Os outros dois hierofantes, que já haviam se dado conta do poder do invasor, formaram em suas mãos esferas transparentes de cristal, que serviriam para descobrir suas fraquezas quando o fitassem através delas.
O desconhecido desapareceu sem que a música cessasse. E quando ressurgiu, bem diante de ambos, houve um silêncio sepulcral e o servo demônio parou de tremer para cravar a adaga no próprio peito. Caiu e se contorceu aos pés de Raja, que se afastou. Um fogo negro devorou o assassino e emergiram labaredas da mesma espécie no poço que consumira os familiares do futuro cruzado. Estas se ergueram e se rebelaram contra os sacerdotes e passaram a atacá-los feito serpentes indomáveis. Os ajudantes fugiam.
– Por que tanto medo e tanto ódio? Vamos dançar! – O invasor retirou um cacho de uvas de uma dobra de sua toga e pôs-se a comer e a bailar. O chão rachava aos seus pés, e as chamas negras subiam e engoliam os inimigos com uma potência selvagem. Olhou para o único sobrevivente e o convocou: – Venha comigo. – Rápido demais para que seus movimentos fossem acompanhados, reapareceu com sua mão segurando a do homem que iria salvar; este sentiu essa parte do seu corpo arder e todo o resto gelar, enquanto era puxado para fora, para as matas inundadas pela noite, e a caverna ruía. Tonto, só conseguiu fixar a visão, mesmo depois de pararem, no momento em que uma pergunta lhe foi feita: – O que estava fazendo ali dentro? Em que lugar mais pacato foi se meter!
Raja cogitou dar uma resposta ríspida, atravessada. Que hora para fazer ironias! Porém se conteve, afinal aquele homem era o seu salvador.
– Fui capturado com a minha família pelos thugs – respondeu com falsa mansuetude. – Meus pais, minha mulher e meus filhos foram mortos. Não me resta mais nada. De certa forma, também morri queimado.
– Não diga isso. Sempre poderá construir uma nova família. Deus nunca nos abandona. Conhece o final da história de Jó?
– Claro. Mas não me interessa construir uma nova família. Agora acho que terá início uma etapa distinta de minha vida. Antes de tudo, porém, obrigado por me salvar.
– Deixe disso, homem. Mas sou curioso e gostaria de saber: que nova etapa será essa?
– Não costumo me abrir com homens que não dizem o próprio nome.
– Só não disse antes porque não me perguntou! Chamo-me Dyonisos. E vamos completar as informações: nada mais justo do que você saber que sou um cruzado.
– Um cruzado. Um caçador de demônios e hereges! Então está explicada a facilidade com que venceu aqueles thugs.
– Se achou fácil, foi porque não participou do combate.
– Pelo menos pareceu.
– E a sua nova etapa? Não irá se abrir?
– Pretendo me dedicar a Deus e à meditação, me retirar para a floresta.
– Esta serve?
– Não exatamente agora nem aqui. – Apesar do sofrimento acumulado, talvez justamente por isso, a dor explodindo em seu peito, teve vontade de rir com o jeito de seu peculiar salvador, porém se segurou. Não era hora para a irreverência, depois de tudo o que acontecera. "Mas será mesmo? Que bobagem. Eu me importando com isso? A vida continua, mesmo depois da morte, e minhas crianças terão um novo pai, minha mulher um novo marido e meus pais novos filhos. Por que me conter? Eu soltar uma risada não vai fazer a mínima diferença para eles", mas não soltou. Afligia-se com suas próprias contradições.
– Tem jeito de que gosta de adiar as coisas. Quem quer se retirar do mundo, se retira de uma vez. Eu, da minha parte, não tenho a menor vocação para eremita. Gosto demais de vinho e mulheres. Ops, acho que não deveria ter dito isso! Mas salvei a sua vida, então pode me dar um desconto!
– Os cruzados não deveriam ser castos e, apesar da ocupação guerreira, valorizar os aspectos contemplativos e espirituais da existência? Afinal, a luta é constante não só por fora como principalmente por dentro. Os piores demônios a nos tentarem são os das nossas paixões.
– Calma, calma! Que eu goste de mulheres não quer dizer que tenha ido para a cama com elas recentemente! Posso ter dançado, tomado vinho com elas, ter feito amizades! Não seja maldoso, pois Cristo também gostava de beber e dançar, tendo transformado água no quê? Em vinho! Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. E a alegria, do meu ponto de vista, nunca será um pecado. Pecar contra si mesmo é se abster de algo que se quer e que não faz mal a ninguém. Nunca fiquei ébrio com facilidade! Gosto do vinho dos monges do Lácio, da Toscana, da Apúlia e do Chipre. Ah, como gosto! Afinal, são feitos por homens que como eu bebem sem deixar de lado a sobriedade e o valor da fé. Será que aprendeu agora? Não vale a pena ficar no meio dos tigres na selva.
– Ao que tudo indica, somos muito diferentes. Mas em comum compreendemos que Cristo não é apenas sofrimento. O senhor me faz lembrar das gopis de Krishna.
– Já ouvi falar de Krishna. Mas quem são essas gopis?
– Além do mais, sabe tocar flauta, que era o instrumento que Krishna tocava, ele que foi uma das vindas anteriores de Jesus Cristo à Terra. As gopis eram vaqueiras e camponesas que ficaram famosas por sua devoção a Krishna, algumas até casadas, mas que largavam os maridos ou noivos para seguirem atrás do som irresistível da flauta do filho de Deus.
– Hmmm… Devia ser uma flauta e tanto! – Dyonisos abriu um sorriso malicioso.
– Na verdade, trata-se de uma alegoria complexa, comparável ao amor místico do Cântico dos Cânticos. Krishna representa Deus e as gopis os fiéis, entre outras interpretações, afinal Jesus também disse que para segui-lo seria preciso deixar família e deveres para trás, ainda que não no sentido literal. Eram cento e oito gopis mergulhadas no amor incondicional, no suddha bhakti, o trabalho devocional puro, que faz com que o indivíduo só anseie por Deus e mais nada. Uma etapa fundamental para alcançar moksha, a santidade que nos conduz ao Paraíso, que nos liberta do Purgatório das encarnações na Terra. Pelo visto, não é o que o senhor busca no momento.
– Antes que me pergunte, Dyonisos é mesmo uma homenagem ao deus pagão. Não é meu nome verdadeiro. Na verdade, chamo-me Demetrius, o que também foi uma homenagem, mas que a minha mãe fez, para São Demétrio de Tessalônica! Não que acredite na existência de Baco ou Dionísio, mas o considero um símbolo de alegria irmanado a Cristo, de certa forma como você valoriza Krishna. Ele também ressuscitou após ser esfacelado pelos titãs. Espero que entenda.
– Perfeitamente. Mas os outros cruzados e os padres vermelhos aceitam isso de bom grado?
– Eles não se opõem porque sou útil. No último ano, fui entre todos o que mais matou demônios, e alguns de primeira categoria: um conde, dois marqueses, dois barões, um possuído e quatro habitantes das profundezas.
– E por que o enviaram à Índia atrás dos thugs?
– Avisaram-me a respeito de uma entidade espiritual perigosa, chamada Kali, que, pelo que compreendi, é a que os thugs adoram. Vim interromper todas as cerimônias ligadas a ela para impedir que se manifestasse. Não é nada pessoal, entenda! – Fez uma careta e piscou.
– Compreendo. – Raja preferiu não se estender.
– Além dos mais, a Igreja sente a falta de homens corajosos. Não é todo dia que se encontra gente disposta a assumir a posição de um cruzado, e os cruzados morrem.
– Soube que seus corpos não se degeneram.
– Mas poucos sobrevivem a tantas batalhas, internas e externas.
Prosseguiriam com a conversa por um longo tempo, como que ignorando a floresta ao redor e deixando de lado tudo o que se passara antes.
Na realidade, não ignoravam nada, mas tinham algo a erguer para o futuro. Para Raja, as palavras foram ficando cada vez mais claras e convidativas, sem que Dyonisos precisasse fazer uma única oferta.
Sem compromisso, decidiu viajar com o novo amigo para conhecer Roma.
1 O dhoti é um tipo de vestimenta comumente utilizado por homens na Índia. Trata-se de um pedaço retangular de pano sem costura, semelhante a uma longa saia.
2 Uma espécie de toalha comprida, que cobre a parte superior do corpo.
3 As Matrikas, chamadas também de Mataras ou Matri, são um grupo de deusas frequentemente retratadas no número de sete. Em alguns textos, são descritas como deusas guerreiras, que lutam contra demônios.
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