Passaram-se os anos. Bruno desenvolveu uma personalidade pacífica e estável, firme e ao mesmo tempo distante das pessoas, atento ao seu senhor sem entrar em conflitos. Acatava tudo o que lhe era pedido, sem reclamar por fora. Por dentro, buscava suprimir quaisquer ímpetos de rebelião ou a raiva quando esta tentava vir à tona por alguma provocação. Sim, meu senhor, respondia e, ao levar um tapa, oferecia a outra face, sem sentir dor, pois se acostumara a esta a tal ponto que nada lhe parecia suficiente para fazê-lo sangrar.
Suas relações com os empregados do palácio eram cordiais, sem entrar em detalhes de foro íntimo, uma ou outra pessoa acabando por ser mais próxima, como foi o caso da senhora Gemma, uma idosa governanta, com quem gostava de ir à Praça de São Marcos assistir a celebrações religiosas.
A que mais o marcara fora, num dia abafado de verão, uma procissão em homenagem à Virgem, que seguira para dentro da Basílica, permitindo-lhe visitá-la pela primeira vez.
Anteriormente não tivera o menor interesse em entrar naquela igreja, com toda sua suntuosidade externa. Julgava que os cristãos brancos valorizavam por demais a pompa e se esqueciam da simplicidade evangélica. Os jesuítas seriam uma exceção, e por isso ainda admirava e muito o falecido amigo e tutor. Orava para ele todos os dias.
Contudo, no dia em que acompanhara a procissão, o primeiro abalo fora sentido ao observar com mais atenção os quatro cavalos em bronze sobre a fachada. Chegara a escutar o galope simultâneo e a se ver sobre um deles. Ao seu lado, havia outros três homens, percebendo poucos detalhes em cada indivíduo: um de armadura dourada, semelhante a um arcanjo; outro empunhava duas espadas curtas; e o terceiro era um oriental, que parecia natural do Cipango, com uma vestimenta típica de um guerreiro daquele país.
A visão se dissipara de forma abrupta. Sabia que aqueles cavalos tinham sido trazidos pelos venezianos do hipódromo de Constantinopla ao término de uma guerra entre o Império Romano do Oriente e Veneza. Que se encerrara, ao contrário do que muitos esperavam no início, com a vitória dos venezianos, os quais haviam levado a melhor sobretudo nas batalhas navais, tendo conseguido anular a vantagem grega ao surrupiar, através de espionagem, os segredos da preparação do fogo líquido.
Tinha curiosidade de algum dia visitar Bizâncio, porém em sua condição de cativo não sabia se seria possível.
Evitava, todavia, abaixar a cabeça, por mais que se sentisse puxado para o chão. Levantava-a a despeito do peso no pescoço, frequentes as dores nos ombros, e rezava para que sua cruz não se tornasse mais pesada do que já era.
No interior de São Marcos, aos poucos se distanciara da procissão para observar os detalhes dos mosaicos, como o da fachada, que se dividia em duas, a parte inferior aberta em cinco portais, a superior terminada em arcos que davam a mesma impressão de liberdade e movimento dos cavalos, dominada pelo Cristo com o livro da Lei.
"Como sua palavra foi distorcida! O que será que pensa de nós? Como um dia desceu para se tornar homem, espero que tenha compaixão, o que acredito que não lhe falta, como demonstrou na cruz ao lado de um infrator das leis. No entanto, eram as leis dos homens, não a Lei. Haverá perdão para os que infringem a Lei de Deus? Tenho me esforçado para não sentir ódio dos que destruíram a minha família e me jogaram aqui, só que as minhas forças ainda são pequenas, a minha vontade vacila e tenho que voltar mentalmente ao passado para massacrar aquela gente, como se pelo pensamento pudesse colocar em prática alguma forma de vingança, muito embora esteja ciente de que isso não serve para nada além de me prejudicar. Eles pagarão quando for o tempo. Apesar que não posso pensar assim, não sou Deus para julgar, não conheço o íntimo do meu semelhante, e guerras são guerras, são e serão sempre cruéis. Pai, rogo para que me forneça um pouco do seu Amor, nem que seja uma pequena parcela do que mantém a terra sobre as águas inferiores, as águas superiores sobre ela sem que desabem sobre nós e apaguem nossa chama interna acesa. Sem o Senhor não seríamos nada, sequer existiríamos, pois é a Sua Vontade o que sustenta o mundo como mundo", mundo este que se achava em Veneza naqueles dias: inúmeros artistas que antes viviam em Constantinopla trabalhavam por ali desde que a cidade selara a paz com o Império, com a condição de passar livremente por suas ilhas, comerciar sem restrições com as províncias e, pedido do doge vencedor do conflito, Jacopo Mannini, trazer pintores, escultores, músicos e poetas.
Bruno acompanhara através dos mosaicos a história dos restos mortais de São Marcos sendo transportados para o interior da Basílica: um par de prelados levava o féretro nos ombros, ao passo que o doge e alguns dignitários se agrupavam junto aos portais à direita, enquanto da esquerda saíam mais dignitários ao encontro do santo e outros grupos, mais isolados, se dispunham à esquerda e à direita, envolvidos por uma ampla extensão de ouro que por pouco não os colocava para fora da realidade terrena. A Igreja e o doge, o eixo religioso e o político, ficavam assim em próxima comunhão.
No interior da capela, deixara-se também transportar pelo coro das religiosas que levavam um andor com a imagem de Maria. Sentira-se levitar a um nível que, se fisicamente já se apresentava sobre uma plataforma mais elevada em relação ao da praça, sublinhando o aspecto sagrado, do ponto de vista espiritual o impulsionara para muito além.
Ali o espaço em forma de cruz grega tinha proporções limitadas e todavia esbatidas, o mármore se apresentando em mosaico no pavimento e recobrindo as paredes, ao passo que o alto estava revestido de mosaicos em vidro e ouro, dando para Bruno a impressão de flutuar sobre um tapete oriental que o levava para os Céus com facilidade, uma brincadeira de infante divino onde a penumbra servia para acentuar a luminosidade da Arte. Os reflexos dos mosaicos como que desfaziam os contornos das cúpulas e arcos e conferiam uma amplitude celestial que abarcava Oriente e Ocidente. Tratava-se da capela do doge, o dirigente máximo da República. A magnificência não poderia portanto ser de pouca conta.
"Quando o poder político e o religioso se encontram, esse é o resultado: suntuosidade. Porém Cristo não disse para dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus? Deus não precisa de ouro e mármore, por mais belos que sejam o templo e os mosaicos. Não sei, estou confuso. Ao mesmo tempo que me fascina e me eleva, tudo o que existe aqui me entristece, como se para a maior parte das pessoas a Palavra não fosse o bastante, precisando ser reforçada por um ouro que mataria a fome de milhares. Sinto-me impotente e cansado. Virgem Santíssima: se está me ouvindo, peço para que acalme meu coração, para que possa acompanhá-la sem me dispersar mais."
Outro incômodo residia na visão com os cavalos, que não soubera interpretar. O futuro reservava mais mistérios do que o passado e nenhum dos dois era claro.
O pior e o melhor estavam, entretanto, lado a lado, oscilando entre a ameaça e o consolo. A pessoa mais próxima a Bruno na residência dos Foscari era Vanessa, filha única de messer Paolo, que, sendo viúvo, dedicava-se por completo à herdeira (ao menos nas aparências).
Vanessa era uma jovem de olhos felinos e cabelos pretos, ondulados e sutis como os movimentos de suas mãos e de seu corpo, guiado por uma suavidade dançante que a princípio lembrara ao etíope uma pantera-negra, conquanto a moça fosse bem branca e gostasse de vestidos alvos a despeito das íris e fios escuros. Tornara-se quase seu confessor, visto que a donzela não gostava de padres:
– Quem pensam que são? Não são melhores do que ninguém para julgar os nossos pecados e nos dizer como e quanto devemos rezar. Valorizo as obras de Deus, não as dos homens, por isso não vou à Igreja. Minha mãe que costumava me levar à missa, mas já que o meu pai não se importa… Aliás, com o que ele se importa?
– Ao mesmo tempo que reclama do seu pai, sente-se aliviada por ele não ser religioso e não forçá-la a participar de cerimônias. A sua alma enfrenta uma contradição constante ao desejar presença, mas valorizar a ausência. Não é assim?
– Você me entende. Ele simplesmente não me dá nada. Não me dá o que eu não gostaria, mas também não me dá o que eu gostaria. Tenho vestidos, joias, tudo ele me traz das viagens que faz, e assim acredita ser um pai dedicado e presente. Só que não é com coisas que se conquista o amor. O amor não se compra, não é parte dos negócios. Nele, barganhas não adiantam nada.
– Seres humanos também não se compram, mas ele me comprou, como você bem sabe.
– E não sei como teve coragem! Por outro lado, isso foi muito bom para mim, ou não teria você aqui, meu único amigo.
– Sou apenas um escravo.
– Meu escravo você sabe que não é. Somos e seremos sempre melhores amigos.
– Mas e os jovens venezianos e venezianas da sua idade? Muitos deles se destacam nas festas que o seu pai organiza. E você parece que fica tão animada...
– São filhos e filhas dos amigos do meu pai, não meus amigos. Logo ele me arranja algum marido entre os herdeiros de algum comerciante ou banqueiro rico. E assim vou ser muito feliz – suspirou e ironizou. – Tão feliz como quando fico animada nas festas! Tente entender, meu querido: Veneza é o tempo todo um baile de máscaras; não só no carnaval.
– Talvez lhe fizesse bem participar de uma missa. Sei que acha monótono, que pensa que os sacramentos são puras formalidades e os padres seres humanos tão vulneráveis quanto nós, e de fato o são, mas algum dia já pensei como você e mudei de ideia depois que tive um padre, um jesuíta no caso, como melhor amigo. E como um professor.
– Você teve sorte. Não conheceu os padres venezianos.
Pouco falava de si mesmo para Vanessa, mas se dava por satisfeito. Era melhor assim. A intimidade entre os dois residia nas confissões dela e nas brincadeiras mútuas. Quem precisava de mais?
Às vezes sentia que ela iria fazer alguma pergunta, que estava interessada em saber mais sobre ele, porém tinha receios de que o etíope se retraísse e se afastasse. Não era egoísta: não via a hora de também ouvir. Só queria que isso acontecesse por livre e espontânea vontade, sem pressões. Não era sua dona.
Bruno também não falava sobre o que fazia para Paolo Foscari além de carregar pertences e trabalhar como responsável pela segurança de Vanessa, que fora o que começara a aproximá-lo da moça, ainda que, no início, ela tivesse relutado:
– Não preciso desse gigante como uma sombra atrás de mim o tempo todo! Ele me assusta. – Não ficara magoado ao escutar aquelas palavras. No lugar dela, também não teria gostado, ciente de que o negociante queria alguém que fosse como uma redoma ao redor da filha, protegendo-a dos perigos da vida e do mundo. – Como me arrependi de ter dito aquilo na sua frente. – Confessara-lhe anos depois. – Se você não fosse a minha sombra, eu não teria um amigo. Antes, não tinha nem a liberdade de ter um amigo. Nunca fui de sair, nunca pensaria em fugir de casa, tenho medo do mundo como tinha de você. Só que você me deu a opção da amizade.
Paolo Foscari nem cogitava que pudesse vir a existir uma atração entre os dois. Afinal, Bruno era uma redoma, ou no máximo um cão de guarda. Jamais um ser humano. Ela nunca se apaixonaria por um gigante sombrio como ele. Não existia o menor risco. Na visão do comerciante, o etíope só tinha tamanho físico. E o enviava como enviaria um lobo assassino para, nas noites propícias, matar seus principais concorrentes.
Nas três execuções que levara a cabo, o africano variara na forma: estrangulamento ao invadir sorrateiro a casa de um dos rivais de Foscari; esfaqueamento na rua; e veneno em um baile de máscaras.
Não suspeitavam que fosse o mesmo assassino, visto que Veneza atravessava um período de delinquência acima da média. E nas duas primeiras ocasiões, Bruno levara consigo algum objeto e se passara por ladrão. "Deus, perdoe-me. Sei que o que faço não é justo e que não passará impune. Mas ao menos me dê a opção do Purgatório, para que um dia possa reencontrar minha família", numa noite, sonhou com a falecida esposa, em um campo de relva verde-dourada, os dois sob uma árvore, o Sol calmo no céu. Acompanhavam o vento em sua amenidade. Lembrar-se-ia depois de algumas poucas palavras que haviam trocado, ainda assim marcantes:
– Não se preocupe, meu querido. Não me deixo envenenar com facilidade. Sei qual é a sua verdadeira índole e onde mora o seu coração, que sempre estará conosco. Mas não se esqueça que ainda está vivo. Viva sem medo. – Acordou com dor no peito. Viver sem medo? O que ela queria dizer? No fundo, e na verdade nem tão no fundo assim, ele sabia.
Dias depois, Vanessa, ao encontrá-lo ensimesmado no jardim do palácio, se aproximou disposta a lhe trazer paz. Alguma paz. Olhou ao seu redor e, ao constatar que não havia ninguém a observá-los, abraçou-o, antes de qualquer palavra. Acariciou-lhe as costas.
– Você está diferente. E sabe de uma coisa? Não é de hoje; e vem me machucando, assim como sei que está se machucando. Por isso, antes que se fira ainda mais, gostaria que me falasse, mesmo que ache que não quer, sobre o que o incomoda tanto. Sei que é o seu passado... e que há uma mulher.
– Como pode afirmar isso com certeza?
– Mulheres sabem reconhecer esse tipo de coisa. Pode enganar a si mesmo, mas não a sua amiga.
– Será que sou apenas eu quem está se enganando? – A pergunta fez com que a jovem Foscari arregalasse os olhos, ainda abraçada ao corpo dele, sem ver seu rosto, mas afrouxando a pegada. – Por acaso se assustou?
– Não estou assustada. Apenas surpresa.
– O seu coração está batendo depressa.
– Como se fosse só o meu. – Passaram do abraço do corpo para o abraço entre olhares e se deram as mãos. Vanessa sorriu de esguelha e baixou a cabeça. Desajeitado, ele beijou sua bochecha para só depois se aproximar dos lábios. – Eu gosto muito de você, Bruno.
– Também gosto de você – confirmou-lhe, e consumaram o beijo.
Existiam diferentes tipos de gostar. A última conversa que tivera com a esposa fora esclarecedora. Estava na hora de começar a viver sem medo. Sem tanto peso. Sem a escravidão de não poder amar.
– Mas você ainda não me falou sobre o que o angustia. Nunca me fala nada a respeito do seu passado. Acho que está na hora de dialogarmos e de eu parar de monologar.
– Você tem razão. Mas é melhor fazermos isso mais tarde, em outro lugar.
Ela acenou com a cabeça em concordância.
Mesmo com Paolo Foscari ausente e distante, devido a negócios a resolver na Índia, tomaram as devidas precauções: Bruno, com os olhos atentos aos cantos e às sombras, pois alguma língua maliciosa ou então descuidada ou moralista – como no caso da senhora Gemma – poderia colocar tudo a perder, só entrou no quarto dela de madrugada.
– Nunca foi culpa sua. Só você falava porque eu não queria me abrir. Ou até queria, mas sentia que não era a hora ainda – confessou entre os lençóis de um branco luminoso, estendidos sobre a cama de carvalho entalhado, elevada sobre degraus de madeira encerada.
Ainda que o leito de Bruno também fosse bastante confortável, não se comparava a ter ao seu lado e poder tocar um corpo feminino.
– Pois bem, a hora chegou: o que tem a me dizer?
– Despejar assim, do nada? É um pouco complicado.
– Você deixou alguma mulher na África?
– Deixei. No túmulo dela.
– Ah, sinto muito... – Vanessa ruborizou, dando-se conta da infantilidade de seu ciúme.
– Ela morreu durante o ataque de uma nação rival. Ao contrário do que os europeus que nunca estiveram lá pensam, as ilhas africanas possuem muitos povos diferentes, civilizações distintas e modos de ser e agir únicos. As rivalidades são inúmeras.
– E vocês tiveram filhos?
– Tivemos. Também estão mortos. Mas não perdi as esperanças: algum dia pretendo revê-los, e espero que dessa vez seja eterno. Apesar de eu duvidar, com esse peso nos ombros.
– E por que se sente assim? – Vanessa apoiou a cabeça sobre a mão, o cotovelo afundando no leito. – A que peso se refere? – "Será que ele se sente culpado, pensando que traiu a esposa comigo? Não a conheci, então, caso esteja nos vendo agora, onde quer que se encontre, peço que me entenda. Não tenho culpa por amar o homem que você amou, que continua aqui, que continua vivo. Da mesma maneira que um dia você se enamorou dele, o mesmo aconteceu comigo.
Não parece fazer sentido falar por pensamento com uma finada que nem deve estar aqui… Mas se Deus me entende, Ele levará a mensagem para que ela compreenda e não tenha raiva de mim. Os tempos passam e ela se ausentou, enquanto eu estou aqui", tentava conter o ciúme, com uma certa tristeza por ele ainda desejar reencontrá-la, se bem que tivessem tido filhos, um laço forte demais para ser cortado de um golpe. "E comigo será que não pode ser eterno?" Aos seus sonhos opunha-se a realidade: como poderia ter um filho de Bruno e assim ligá-lo a ela? Seu pai nunca aceitaria. Já tinha outros pretendentes. Os desejados por seu pai. A menos que...
– Refiro-me aos meus pecados desde que passei para o lado do seu pai. Desde que ele me comprou. – "Está na hora de me abrir. Não aguento mais. Não consegui ser fiel a você, Laoké. Mas você mesma me disse, se foi você no sonho, que devo viver sem medo. E não posso mentir para ninguém, muito menos para mim: eu a amo. Amo Vanessa. E ela é minha única escapatória para que a minha alma não se perca de uma vez por todas."
– Como assim? – A mente de Vanessa se esvaziara. O diálogo interno se tornara um fluxo dilatado, entremeado por longas trocas de silêncios e olhares.
– O seu pai anda cometendo assassinatos. Ele é o mandante, e eu o executor. – A resposta ao retomar da fala, dada sem titubeios, deixou a moça em estado de choque. Esperava tudo de Paolo Foscari, menos que fosse um homicida e que ainda por cima empregasse mãos inocentes para perpetrar atos abjetos. Sua cabeça pendeu. – Vanessa! – Amparou-a em seus braços. – Fique calma, por favor. – Ela então o encarou com um olhar abatido. – Ficou pálida de repente.
– Não foi nada. Só uma tontura forte! E o meu coração disparou.
– Percebi isso também. Cuidado. – "Deveria ter sido mais sutil." – Se piorar, vou ter que chamar o médico, independentemente das suspeitas recaírem sobre mim depois.
– Não faça isso, ou para mim será ainda pior. – Para a sorte dos dois, o coração dela se apaziguou, com a mão dele sobre seu peito, e puderam voltar a conversar com calma.
– Tente se segurar. Se passar mal a cada revelação escabrosa que lhe fizer, vou me calar de novo.
– Não. Agora que começou, precisa ir até o fim, Bruno.
– Quanto a provas, tenho muitas. Objetos das casas em que entrei, plantas de uma delas, cartas do seu pai descrevendo o que eu tinha de fazer, me passando informações sobre quem era a vítima e sua rotina… E você conhece a caligrafia dele.
– Não precisa me provar nada. Não subestime o meu sentimento. Acredito e confio em você. Será que ainda não se deu conta disso?
– Perdoe-me. – Dessa vez o etíope ficou sem graça.
– Mesmo assim, gostaria de ver as cartas. Para conferir até que nível meu pai desceu.
– Depois poderei mostrá-las. Mas antes quero que ouça o que tenho a dizer.
– Claro. Não imagina por quanto tempo esperei por esse momento. – Respirou fundo, preparando-se por inteiro para o que ouviria, e o etíope foi desabafando à medida que detalhava o inferno cujas chamas se culpava por atiçar, ainda que não fosse o fornecedor do combustível. Algo lhe dizia, no entanto, que o poço do Mal era gélido. – Meu Deus! Depois de tudo isso, fico imaginando o quanto sofreu por todo esse tempo! – exclamou ao término do relato. – E como me arrependo por não ter tomado antes as rédeas da situação, forçando você a se abrir! Fui pequena, imatura e medrosa.
– Não, Vanessa. Já chega, não foi nada disso. Foi uma decisão minha.
– Só que eu poderia ter ajudado. – Não reteve as lágrimas. – Agora só resta uma coisa para nós. – Chorava tanto por Bruno como por si mesma e pela alma e dignidade de seu pai.
– No que está pensando? – Dilatou os olhos.
– No mesmo que você, tenho certeza. Vamos fugir. – E ao pasmo do etíope, que podia até ter pensado nisso, porém sem acreditar que ela tivesse tanta coragem, prosseguiu: – Não me importo com luxo, com conforto, com nada disso! De que adianta levar uma vida de princesa se tudo não passa de uma mentira? Só quero você daqui por diante, Bruno. Só você! – Juntos sobre a cama, abraçaram-se. Ele derramou suas primeiras lágrimas desde que perdera filhos e esposa.
Entrementes, alguém que esperavam que estivesse longe não estava tanto assim.
Alguns dias antes, após anunciar sua partida para a Índia, Paolo Foscari dera férias aos mercenários que o acompanhavam em suas viagens como guarda-costas, retirara um livro da estante em seu escritório e ali abrira uma passagem secreta que se fechara a seguir. Fora adiante por uma sequência de escadas e galerias que terminavam em um ambiente escuro, sem nenhuma vela ou lamparina, onde se sentara diante de um livro aberto sobre um altar alto e estreito, cujo conteúdo, devido às sombras, não era de forma nenhuma visível.
Cerrara os olhos naquele lugar e dera a impressão de adormecer. Ao despertar, diversas noites depois, deparou-se, ao reabrir os olhos, com luzes que saíam daquelas páginas. Letras e símbolos avermelhados haviam preenchido as paredes, as colunas e o chão. Observando-os de perto, seria possível perceber que eram os mesmos contidos nas folhas, as quais, movidas por um vento, espalhavam seu conteúdo. Uma chama ascendera logo atrás do livro e o mercador parecia estar na expectativa de algo.
– Menos mal que retornou, filho do barro – retumbou uma voz sombria. – Como pôde perceber, cumpri todas as minhas promessas. Você se tornou ainda mais rico, as famílias de Veneza se curvam à sua prosperidade e graças à minha influência não desperta sequer as menores suspeitas. As almas de seus rivais me foram dadas pela eternidade e nisso residiu seu pagamento até agora, mas sei que deseja mais. – Da labareda, uma criatura estranha tomou forma, ossos e órgãos e vísceras expostos, pouca pele, o ventre aberto e as costas curvas e esqueléticas, embora fosse alta, pois passava dos três metros de estatura, seu bico recurvo e repleto de dentes afiados dispostos de forma irregular, os olhos sangrentos, os braços compridos que se esticavam à vontade e terminados em dedos que por si eram garras, fortes o bastante para um apenas esmagar uma rocha com um mínimo de pressão.
– O senhor sabe o que é, nobre rei Mammon. Não preciso mais verbalizar.
– A palavra em determinadas ocasiões é muito importante. – A cauda do demônio, flamífera e com aguilhões, deixava uma substância pegajosa e incandescente ao rastejar sobre o chão.
– Quero ser o novo doge! – Paolo Foscari não resistia. Não conseguia frear sua imaginação, ao seu redor escritos e pronunciados títulos de honra e a cidade ao seu dispor, afinal, com o tempo, poderia modificar ou até eliminar a promissio ducalis1, da mesma forma que conquistara a confiança inclusive dos amigos de suas vítimas: humilis Dux provinciae Veneciarum divina gratia Venetiae Dux2; Dux Venetiae Dalmatiae Croatiae3; reconhecido pelo papa como Dominator Marchiae4; Totius Istriae dominator5; não lhe faltaria tempo para percorrer o palácio ducal e reconhecê-lo como seu, uma morada que sempre lhe parecera fascinante, bela e sem peso, como uma renda com seus tantos desenhos e pináculos, o aspecto aberto, os requintes. Nada mais adequado à sua personalidade, vendo-se montado sobre o leão alado a sobrevoar as águas. Na sala do Senado, chamaria os Pregadi6, que se submeteriam à sua autoridade inabalável. Tinha vontade de dar pulos de alegria ao vislumbrar seu futuro.
– Sabe que para isso o que lhe será pedido seguirá um grau de exigência maior.
– Pode pedir qualquer coisa, meu senhor. Este servo está disposto a atender seu desejo.
– Até hoje só pedi as almas de homens poderosos e gananciosos, muito úteis aos meus propósitos, porém desta vez não quero uma alma suja para que eu possa usar. Quero uma alma limpa e saborosa, doce, que eu possa corromper e tornar minha. Quero algo que lhe é muito precioso. Se deseja obter ouro, terá que me pagar por isso, futuro doge.
– Ao que está se referindo? – Calafrios percorreram o corpo de Foscari, sacudido por um pavor não de todo inexplicável.
– Preciso da alma de sua filha. De sua pequena Vanessa.
– Não – retrucou, balançando a cabeça. – Isso não!
– Quer se tornar doge ou não?
– Claro que sim! Mas tudo tem um limite!
– Você falando de limites e fazendo referência a alguma espécie de moral? Não teve o menor receio ao deixar crianças inocentes sem os pais. Todavia, na hora de lidar com seu próprio sangue...
– Eu não entreguei as crianças ao senhor! Apenas homens ávidos e corruptos, avaros ou pródigos! Se tivesse me exigido um menino ou uma menina, eu nunca teria aceitado.
– Tem certeza disso? Duvido muito. A situação só mudou porque pedi a sua filha.
– Diga-me, rei Mammon, que esta é apenas uma brincadeira, um capricho do senhor.
– Não se trata de um capricho. Quero Vanessa – escancarou a boca e desta pingava uma saliva pegajosa misturada com sangue.
– Não. Eu me nego.
– Tolo! A sua negação foi dada com firmeza. No entanto, as almas terrenas que me entregou me garantem que agora eu consiga permanecer materializado por um bom tempo e possa buscar o que quero.
– Não! Eu não vou permitir! – Tentou se mover, mas tremia e não tinha forças, devorado que estava sendo pelo medo.
– Não vai? De que forma? Humano fraco e insignificante, terei a sua Vanessa e as almas e a carne de todos os que moram nesta casa! E você não irá se tornar doge, afinal disse não, o que quer dizer que não queria tanto assim ser o senhor de Veneza. Uma pena: se tivesse dito sim, teria comprado meu ouro; disse não e eu fico com o meu e o seu.
– Você trapaceou, demônio! Me enganou o tempo todo! – Com esforço, conseguiu mover a língua com intensidade o bastante para esbravejar.
– Não, você que se enganou. Não lhe menti em momento algum. Se tivesse dito que a sacrificaria, logo seria eleito doge. Todos se comoveriam com o massacre que certos delinquentes teriam levado a cabo na casa dos Foscari! Mais uma família vítima de vis assassinos! Contudo, preferiu dizer não. É o que os humanos fazem: negam, em sua arrogância, o que não são capazes de compreender. Bando de ignorantes!
– Senhor Jesus Cristo! Por favor, me ajude… – Fechou os olhos e pôs-se a orar enquanto desciam lágrimas de desespero.
– Oh! Agora chama por aquele que por tanto tempo renegou? Que comovente! Dessa forma sou eu quem acabará chorando, messer Paolo.
– Cale a boca, seu monstro vil! Não sei como me deixei levar, como me deixei corromper dessa forma!
– Você pode ter forma humana, mas é um monstro muito mais feio e vil do que eu. – Mammon moveu suas garras e em um instante o sangue esguichou para as paredes e todo o ambiente voltou a se apagar.
O demônio não demoraria a subir as escadas.
***
– Já estou pronto. Vai levar mais alguma coisa? – Nos aposentos de Vanessa, Bruno dirigia esta pergunta à sua amada. – Disse que não queria luxo, só que está enchendo as bolsas – brincou.
– Tudo tem um limite, não é, meu querido? O máximo que eu puder levar, eu levo.
– Tudo tem um limite, menos os meus braços para carregar o que for.
– Sem ofensas, mas você está acostumado com peso.
– E como… – Ficaram em silêncio por um tempo, enquanto ela terminava de arrumar os pertences para a escapada.
– Não vejo a hora de sair dessa cidade. Pronto! Acho que agora chega.
– Vamos então. Imagine o que aconteceria caso o seu pai chegasse de repente justo agora...
– Não diz uma coisa dessas! Mas não vai, é madrugada. Vamos logo. – Contudo, a felicidade e o entusiasmo dos amantes em fuga, mesclados a um certo frio na barriga, sofreram um choque pois, ao irem descer os primeiros degraus, se depararam com a escada para o saguão manchada de sangue e, mais embaixo, com a cabeça de um dos copeiros dos Foscari. – Meu Deus! Mas aquela é a cabeça do Giacomo!
– O que está acontecendo aqui? Quem entrou? – Assustado, o etíope olhou ao redor.
A filha de Paolo Foscari sentiu náuseas e tontura e por pouco não perdeu os sentidos.
– Será que o meu pai de alguma forma nos enganou e descobriu tudo?
– Isso não tem lógica! De que jeito? E por que mataria o pobre Giacomo?
– É verdade. Isso não teria motivo. – Tomaram coragem e desceram juntos.
Ela buscava ficar o mais perto possível dele, cada vez mais gelada. Bruno com o corpo em brasa. Qual o pior Inferno?
Ao vasculharem a casa, só havia corpos mutilados e pedaços de corpos. A senhora Gemma fora esquartejada. Todos os criados haviam sido brutalmente assassinados.
– Só pode ser obra de algum demônio. Não existe outra explicação.
– Vamos sair logo daqui então! – De volta ao saguão, o pânico não protegeu a jovem, que foi atingida na cabeça por uma espécie de dardo e despencou no chão já sem vida. O sangue se espalhou debaixo de seu crânio rachado. O africano ficou estático, sem conseguir soltar as bagagens que carregava.
– Quem diria. Interrompi a brincadeira dos dois pombinhos. Que castigo para Paolo Foscari! Sua filha apaixonada por um escravo! Ele nunca teria esperado por isso. – Mammon vinha vindo na direção do etíope, com um colar de cabeças humanas em volta do pescoço; entre estas, a do ganancioso comerciante.
Seus sonhos haviam sido mais uma vez estraçalhados por uma carnificina. Bruno liberou um urro, largou as bolsas e disparou com as mãos nuas na direção do demônio. Não tinha mais nada a perder. A morte seria uma dádiva: "Não vou lutar para vencer, porque sei que é impossível. Mas por mais medo que tenha da dor, minha esperança é que será rápida e que logo estarei no Paraíso com Vanessa e minha família! Perdão, meu Deus, pelos crimes que cometi!" Mas o demônio se esquivou:
– Você não tem vontade de viver. Se é assim, um vil escravo dos seus sentimentos e recordações, o que é pior do que ser escravo de outro homem, não me interessa. – Foi um novo golpe ouvir isso; a criatura sumiu por um instante e reapareceu em outro canto do salão.
– O que está dizendo, seu monstro? Quem é você para definir o que sinto?
– Sou alguém que sabe muito bem ler os desejos dos seres humanos. Sou o senhor dos desejos dos que amam o mundo e a vida! Enquanto você agora detesta a vida e deseja a morte. Ao morrer, ficaria fora dos meus domínios, não sei se entre os suicidas ou se no Purgatório. Portanto, não tem qualquer valor.
– O que vai fazer com a Vanessa? É isso o que mais me importa!
– Veja com os seus próprios olhos escravizados pelo amor perdido. – Uma fumaça passou a sair do cadáver da moça, ressecando-o. Só os ossos restaram. Transformados em poeira.
O vapor da vida foi para o peito do demônio, que inspirou profundamente. Deliciava-se com aquele ar, ígneo e ao mesmo tempo úmido, que redobrou suas forças.
Deu um salto sobre o lustre do saguão, derrubando-o, e fez o mesmo em todos os outros espalhados pela casa. Apagava também as velas e lâmpadas, reduzindo a mansão dos Foscari à plena escuridão. Bruno não tinha como fazer nada.
Cogitou apanhar uma espada e cortar a própria garganta, mas seu braço tremia só com a perspectiva de encostar uma lâmina fria em seu pescoço. Restou-lhe uma pergunta:
– Qual seu nome, criatura do Inferno?
– E por que isso interessaria a você? Oh… está pensando em algum dia se vingar? – Reapareceu pingando sangue e saliva da boca na frente do homem, seu rosto grotesco discernível nas trevas e seu hálito putrefato ainda mais.
– Se é verdade que pode ler os desejos dos homens, está lendo bem os meus.
– Acha que devo acabar com você agora para garantir o meu futuro?
– Se é o que pensa...
– Não me faça rir! Só para contrariar você, que está me parecendo muito divertido, permitirei que viva mais. Muito mais! E irá me procurar por todas as partes, mas sabe onde voltará a me encontrar? Com mais frequência do que imagina, nos corações gananciosos dos seres humanos.
– Vou caçá-lo por todas as partes. No fundo, você já estava por trás de tudo quando perdi a minha esposa e os meus filhos.
– Por que tanto ódio, irmão? E somado a teorias infundadas...
– Paolo Foscari era um bruxo, não era? Por isso esta noite aconteceu este desastre.
– Diria que um aprendiz de feiticeiro.
– Pois juro vingança também contra todos os bruxos, magos e supostos magos.
– Você deduziu bem. Como conseguiu?
– Já li sobre resultados de evocações demoníacas que falharam. E um amigo me falou a respeito disso.
– Então posso esclarecer um pouco mais: ele me evocava para que ninguém nunca suspeitasse do que fazia, a fim de que seus crimes passassem impunes e ficasse cada vez mais rico. No entanto, a situação saiu do controle quando ele me pediu para ser doge. Então, quis algo bem valioso em troca!
– E ele aceitou sacrificar Vanessa?!
– Não está vendo a cabeça dele aqui?
– E daí?
– Sei que nós demônios temos a fama de não honrarmos a palavra, mas garanto que isso é infundado. Eu não teria matado Paolo Foscari se ele não tivesse se negado.
– Pelo menos pingos de vergonha, honra e amor ele ainda tinha.
– Ainda que não acredite, a filha era tudo para ele. Assim como ser doge o objetivo total. Se ele queria um todo, tinha que me dar outro todo.
– E eu no meio de feitiçarias e ambições alheias! Alheio a isso tudo. Uma marionete.
– Um escravo tolo, de fato. Um fracote. Como um boneco de pano para ser queimado.
– Cale a boca.
– Antes de ir embora… posso lhe fazer uma pergunta? É simples. – Silêncio. – Já que não me reponde, vou perguntar de qualquer jeito: jura vingança também contra as bruxas?
Bruno tentou atacá-lo com seus punhos. Entrementes, sombras de mulheres o envolveram e o acorrentaram, ainda que não com correntes físicas, por mais que parecessem sê-lo, sob o riso do inimigo. Este se afastou e, à medida que desaparecia, alguns vultos femininos ficaram claros: a senhora Gemma; algumas criadas da casa; e Vanessa, agora escravas do terrível demônio.
Ventos apavorantes escancararam as janelas da casa e, quando cessaram, ninguém mais restava, sequer os corpos das vítimas, Bruno estava ajoelhado no chão, sem correntes. Sozinho nas trevas e entre os móveis em absoluta ordem, apenas os lustres quebrados e as velas e lamparinas apagadas. Livre!
Mas a que preço?
1 Carta de princípios e promessas que os doges precisavam jurar ao entrarem em suas funções.
2 Humilde duque da província de Veneza, pela graça divina duque de Veneza.
3 Duque de Veneza, Dalmácia e Croácia.
4 Senhor das Marcas.
5 Senhor de toda a Ístria.
6 Nome pelo qual eram conhecidos os senadores de Veneza.
Literunico - O espaço dos criadores de conteúdo literário.