No castelo de Northend, Edgar adormecera depois de uma esplêndida noite de amor com sua consorte. Não acordaria tão cedo. Ela sabia disso e pôde se levantar sem preocupações. Saiu para o corredor e chegou à cozinha, onde pronunciou palavras em uma língua exótica em frente a um armário e uma passagem se abriu. Esta se fechou ao pronunciar as mesmas palavras do outro lado e os servos adormecidos nos enxergões dispostos sobre o chão continuavam a roncar.
Seguiu por uma longa galeria, onde podia exibir seus cabelos com liberdade, até alcançar uma porta entreaberta de onde saía uma luz. Contudo, esta, pesada demais, não se abriria sem as palavras corretas, ditas desta vez em inglês:
– Sua sacerdotisa está aqui. A que o ama acima de todas as coisas visíveis e invisíveis. – O peso se foi e pôde entrar.
Do lado de dentro, cinco indivíduos vestidos em preto e azul, com máscaras nos rostos e capuzes que cobriam as cabeças, dispunham-se em círculo em volta de uma estátua negra com rosto de cão, chifres de veado e um imenso falo. Uma mão apontava para baixo e a outra estava cerrada.
Traçado no chão, havia um símbolo formado por dois círculos concêntricos que continham duas asas entrelaçadas.
– Estávamos esperando pela senhora – adiantou-se um homem baixo com uma criança morta nos braços.
Melinda, como a coordenadora do grupo, era a única que deixava o rosto descoberto.
Pegou o pequeno cadáver e pôs-se a cantar. Saía de seus lábios uma melodia tétrica e infantil.
Manifestou-se, então, ao lado da escultura, que media seus dois metros, uma criatura de maxilares escancarados e dentes que lembravam facas toscas, sem fio, alternados sem harmonia.
As carnes do bebê foram sugadas. Ficaram os ossos.
Das velas escassas, que pouco iluminavam o local, caíram pingos de fogo líquido. Geraram uma poça incandescente a partir da qual despontou um homem alado de pele vermelha, olhos dourados e porte majestoso, que falou à bruxa:
– Fizeram bem em me evocar hoje. As suas antigas irmãs tramam contra você; e consequentemente contra os outros que estão aqui. – Que usavam máscaras de cães, os três homens, ou de ofídios, as duas mulheres. – As três líderes da seita de Hécate, que você conhece tão bem, são nossas inimigas mortais.
– Imaginei que cedo ou tarde agiriam. São terríveis e vingativas. – Tinha em mente a Cibele mais do que as outras. – O que planejam?
– A Pandora vai tentar seduzir o seu marido amanhã, esteja onde ele estiver.
– Não conseguirá nada.
– Sem a minha ajuda, você é que não conseguiria protegê-lo. Criaram uma barreira em volta da jovem que impediria seu acesso aos dois, e ela teria o caminho livre para seduzi-lo e matá-lo. Você não teria poder para quebrar essa proteção, e nem mesmo demônios menores ou seres elementais. Sua sorte é que sou um barão de Lúcifer e Naemah, e minha função é a de ir e vir, trazendo abundância de coisas rapidamente. Percorro a Terra num piscar de olhos e posso trazer coisas perdidas e ocultas. Nada se esconde da minha vista: ela e Edgar ficariam invisíveis e nunca poderiam ser encontrados por você, mas eu posso encontrá-los.
– Fará isso por mim, meu senhor?
– Mas é claro. Hécate não pode restringir as minhas ações.
– Rendo-lhe todas as graças, senhor Seir.
Aproximou-se e beijou o demônio na boca.
Os outros oficiantes puderam retirar suas máscaras e teve início a orgia, sem distinção entre homens, mulheres e criaturas do Inferno, muitas das quais começaram a se materializar: alguns dos servos de Seir, em sua maioria íncubos e súcubos de baixa categoria; sem que Edgar jamais sequer desconfiasse de nada, acreditavam.
Para a manhã seguinte, uma caçada estava programada.
***
O senhor das terras de Northend saiu com alguns de seus vassalos para caçar um veado ou javali, o que propiciaria um belo jantar.
Havia um grande cervo branco nos arredores, dizia-se, o que fora confirmado mais cedo pelo mestre de caça, que colhera fezes que indicavam um animal magnífico.
Edgar avistou primeiro um coelho e este lhe pareceu mais sadio, gordo e atraente do que os que costumava encontrar.
Esqueceu-se de que estava acompanhado e decidiu seguir sozinho, sem ser percebido pelos demais, até mesmo os cães distraídos, com sua besta e a espada embainhada, seu cavalo veloz o bastante para logo se distanciar dos companheiros.
Nada de coelho, contudo, em uma área de mata fechada e escura. O que saiu de uma moita foi uma bela donzela de preto com um olhar hesitante. Parecia assustada.
Ficou imóvel a observá-la e ela se aproximava. Cativo, teve a impressão de que, se se movesse, a jovem desapareceria. Se era uma aparição ou uma mulher de carne e osso, ainda não tinha certeza.
– Olá! Por acaso a senhorita se perdeu na floresta? – indagou, por alguns instantes a esposa apagada de sua memória. O desejo subia por suas pernas e de uma forma muito mais poderosa e selvagem do que lhe ocorrera em outras ocasiões.
– Não sou daqui. Abandonaram-me e estou com medo.
– Quem a largou aqui? Acho que posso ajudar. – Desmontou do animal e deixou sua besta pendurada nele.
– Tudo correndo como o planejado. Ele está perdido – comentou Friga, que observava a cena a alguns passos dali, junto com Cibele, por meio de uma bola de cristal. – Homens são tão volúveis!
Ao se aproximar da jovem, que era Pandora, o frêmito sexual se transformou em uma sensação cada vez mais fria, que o paralisou. O gelo cresceu sob seus pés e foi petrificando seu quadril. Não pôde mais andar: da terra emergiram garras de madeira, mais do que galhos, que foram subindo e envolvendo as partes baixas.
– Sinto muito, Sir Edgar. Desta vez a sua presa não está indefesa – disse a moça.
– Uma bruxa! Maldição! – Tentou desembainhar a espada, mas suas mãos tremiam ao se esforçar para movimentá-las, sem sucesso.
– Se tivesse simplesmente nos respeitado, e permanecido fora de questões que não pode compreender, nada teria acontecido. A sua teimosia e a sua ignorância o prejudicaram. – O rosto da donzela, tão belo, tornou-se duro e terrível. Uma coruja preta pousou sobre uma árvore: os olhos do pássaro transmitiam as imagens para a esfera de cristal fitada pelas duas irmãs.
Edgar perdeu os sentidos e teria lhe acontecido o pior se um fogo não tivesse surgido queimando a relva e chegando às garras que o envolviam. Incinerou-as. Um corpo e braços rápidos passaram, capturaram o senhor de Northend e, para ainda maior susto das bruxas, labaredas envolveram o artefato mágico que as ajudava a ver, o aqueceram em excesso e o explodiram.
– Não! Não é possível! Quem era aquele?! Como pode ter burlado Hécate? – A velha saiu de si.
Cibele percebeu que a proteção espiritual fora destruída, e que inúmeros elementais haviam sido queimados vivos
Um círculo de chamas escuras envolvia a área onde estava Pandora, que se surpreendeu, mas tentou não demonstrar medo diante da aparição de Seir. "Deve se tratar de um dos demônios que aquele homem mencionou. Como pôde quebrar a magia de Hécate?" Esse era seu maior motivo de preocupação.
– Vamos ajudar! – Uma nuvem escura auxiliou Friga a levitar em velocidade, porém não conseguiu ultrapassar a barreira criada pelo demônio, cujas chamas geraram também uma cúpula que parecia de vidro aquecido e que impedia a descida de quem vinha do alto. Todos os esforços para quebrá-la com seus encantos foram em vão. – Filho da puta! Como pode ter tanto poder?
Por terra, Cibele, que foi andando com calma e buscava analisar a situação, tentou provocar alguns tremores no solo, mas os elementais ou se recusavam a aparecer ou fugiam.
– Não tenho nada contra você. Nem mesmo a conheço. Mas não me dirijo contra pessoas, e sim contra objetivos. Os seus são opostos aos meus. – Seir, com Edgar em suas costas, emanou sua energia ígnea contra Pandora, que, demonstrando sua destreza mágica, criou um campo de proteção apenas com sua própria vontade, sem depender de recursos externos.
O demônio sentiu uma pressão quando ela se concentrou para agredi-lo, regulando seu medo e tentando suplantar o calor, o suor espesso nas mãos e um pouco mais sutil no resto do corpo, que a jovem buscava esfriar.
– Não adianta. Só pode adiar seu fim – foram as palavras ameaçadoras de Seir, ao passo que, através de um espelho mágico no espaço de culto de seu grupo, agora sozinha, Melinda acompanhava o enfrentamento, impressionada com a força da Pandora: "É bom mesmo que essa vadia morra logo. É muito mais perigosa do que as outras duas."
A coruja caíra morta e fora consumida pelo fogo, que se alastrava por toda a área. Atacava as árvores, mantendo animais e seres humanos afastados.
Os que haviam ido caçar com o barão se preocuparam com o brusco incêndio, porém não tinham como interferir. Os cachorros latiam e rosnavam sem parar.
Apenas o demônio e o lorde daquelas terras, inconsciente, persistiam ali incólumes, cada qual em seu estado.
A donzela feiticeira estava prestes a cair. Já as outras duas não conseguiam, de jeito nenhum, penetrar no espaço da luta. Eram afetadas pelas forças em conflito. Cibele quase desmaiara duas vezes.
"O que mais teme além de si mesma? É capaz de fitar seu próprio fracasso?" A mão de Seir roçou o rosto de Pandora, que ficava cada vez mais pálida e era preenchida por um frio crescente. Até que desabou.
As chamas em volta e a barreira mágica desapareceram junto com o ente infernal e o esposo de Melinda.
A bruxa de meia-idade, apesar de sua rivalidade com a jovem, chorou; por seu próprio orgulho ferido diante da onipotência do inimigo e, pior ainda, da inimiga.
Friga, no chão, revolvia-se na relva, tomada de raiva. Deixou as lágrimas escorrerem com ódio e tristeza e, gritando, arranhou a terra como se seus dedos fossem garras.
Um corvo crocitou. Os homens nas proximidades procederam às buscas por lorde Edgar, que só seria achado algumas horas depois, na cama de sua residência.
Belanus, que permanecera oculto, limitado à observação, envolveu as duas feiticeiras com um véu criado por sua magia e transportou-as para o seu covil, apavorado e ao mesmo tempo fascinado.
"Teremos que recorrer a Bruce. Não há alternativas", foi sua conclusão.
***
O senhor feudal fora encontrado no castelo de Northend por um par de criadas.
Momentos antes, Melinda demonstrara toda sua falsa preocupação com as notícias de que seu amo desaparecera, para depois agradecer a Deus de joelhos. Os demais servidores da corte e alguns cavaleiros se juntaram em torno do leito. Chamaram um experiente sacerdote para acordá-lo, visto que não despertava.
– Estou muito apreensiva, padre. Quando ele voltará a si? E o que terá acontecido? – inquiriu a gentil e devotada esposa.
– Foi estranho. Sir Edgar se distanciou do grupo sem que ninguém notasse – relatou um dos cavaleiros presentes na batida de caça. – Deve ter visto algum animal mais forte, talvez o grande cervo, e resolveu ir caçá-lo sozinho, isso é bem do seu feitio, porém nunca antes teve problemas com bestas, nem mesmo com javalis. E anormalmente nenhum cachorro o seguiu. Enquanto o procurávamos, aliás, a floresta ficou estranha! Sentíamos um ar pesado e um incêndio se alastrou em algumas partes dela, desaparecendo tão repentinamente quanto havia surgido.
– Há alguns ferimentos que parecem ser de garras. Mas ainda duvidam que não foi um animal o que fez tudo isso? – indagou o sacerdote. – Pelo que me descreveram, só dois tipos de criaturas seriam capazes de causar tanta desgraça: bruxas e demônios.
– Padre, falando dessa maneira o senhor me assusta! – exclamou Melinda.
– Sinto muito, minha senhora. Mas é a verdade. De qualquer forma, temos que render graças aos Céus e a Jesus Cristo pelo fato de lorde Edgar estar vivo. Não faço a menor ideia de como tenha escapado!
– Um anjo do Senhor deve tê-lo ajudado. É a única explicação plausível, pois não vimos nenhum cruzado na região – disse um outro cavaleiro que participara da caçada.
– Ele pode ter agido de forma rápida, quase imperceptível. Cruzados são quase anjos. Por isso não tema por seu marido, senhora. – O padre se dirigiu à esposa de Edgar.
– Às vezes eles me parecem aterrorizantes. Quer dizer, pelo menos o que vi uma vez me pareceu. Só vi um até hoje! – opinou uma criada.
– A face de Deus também pode parecer terrível. Não devemos ser ignorantes. É que de alguma forma eles têm que intimidar, impor respeito e uma postura firme, ou os demônios e os magos não os temeriam. Já convivi com alguns quando estive em Roma, e no trato diário são pessoas afáveis, que se limitam a levar suas missões muito a sério.
Edgar acordou bem na hora em que o sacerdote esfregava o crucifixo em seu peito: "Ah… Estou na minha cama. Mas o que aconteceu? O que é toda essa gente?"
– Meu amado senhor! Até que enfim recuperou a consciência. – Melinda abriu um sorriso brando e, ao seu marido levantar o tronco, envolveu-o com seus braços para beijá-lo na face esquerda.
Ternas carícias o deixaram mais calmo por alguns segundos, porém a apreensão e as indagações voltaram diante daquela aglomeração. O padre, para sua surpresa, foi o que lhe inspirou mais agonia: de onde esperava que viriam a tranquilidade, um alento divino e um hálito de fé, sentiu um bafo fétido de enxofre e seu coração queimou.
Pôs-se a orar mentalmente com um certo desespero; sem camisa, a parte inferior do corpo com um calção, mas coberta por lençóis, olhou para os braços e ficou se perguntando o porquê do sangue nos curativos. Não se lembrava de nada do que ocorrera.
– Sir Edgar, estamos aliviados! – pronunciou-se um de seus homens. – Como se sente?
– Quase como se não devesse ter um corpo. Muito dolorido. Apenas o toque de Melinda trouxe algum alento para as minhas dores – retorquiu o barão.
– O que houve afinal, milorde? Estávamos levantando algumas hipóteses. Agora poderemos ouvir os fatos.
– Acredito que não, pois não me recordo de nada do que aconteceu. De como fiquei assim. As últimas lembranças que tenho dizem respeito a um coelho que resolvi perseguir. Depois foi como se tivesse levado uma pancada na cabeça. Que está doendo até agora... – gemeu.
– Foi ajudado por Deus, meu senhor. Ao que tudo indica, tratou-se do ataque de um demônio.
– Ocorreu um inexplicável e violento incêndio em determinadas partes da floresta enquanto estava desaparecido. – O sacerdote interveio.
– Por Deus! Agora as peças se encaixam. Não consigo me lembrar, mas posso compreender por que me sinto mal diante de Vossa Reverendíssima.
– O que mais precisamente está sentindo, meu filho?
– Neste momento, além da dor de cabeça insistente, o peito arde e ouço vozes desconexas. Insultam o crucifixo. Blasfemam e pronunciam nomes horríveis.
– Não há mais dúvidas! Foi um ataque de demônios. Um cruzado ou um anjo deve tê-lo ajudado.
– Só pode ser. É a única explicação para a graça de estar vivo. Agradeço a Deus e ao meu salvador anônimo!
– Se fosse um cruzado, já teria aparecido. Ou não? – inquiriu Melinda, enquanto acariciava o rosto do marido.
– Não necessariamente – replicou o prelado. – Pode ser um tipo discreto, que após realizar o trabalho preferiu se retirar. Um benfeitor anônimo, o que é mais nobre aos olhos do Criador do que os que buscam a glória. Além disso, por não ter sido um serviço requisitado, mas algo com que se deparou no caminho, não estaria autorizado a cobrar qualquer valor pelo que fez. E como entrou aqui não sabemos, mas muitos deles possuem poderes misteriosos.
– De fato. De todo modo, agora acho que Sir Edgar precisa de recolhimento, repouso e oração – sugeriu um dos cavaleiros. – É melhor irmos e deixá-lo a sós com sua senhora.
– A bem da verdade, já começo a me sentir melhor, graças à mão de Melinda. – Que agora deslizava entre seus cabelos, uma leveza aérea instalando-se em sua nuca. – As dores e incômodos aos poucos se dissipam.
– Parece-me que tem uma consorte de toque abençoado, de mão taumatúrgica – sorriu o sacerdote.
– Que Vossa Reverendíssima não tenha dúvidas disso. – Beijou os dedos da esposa, que estavam quentes, não imaginava que ainda maior o calor na área definida pelos quiromantes como Monte de Lua, onde, ao contrário do que ocorrera segundo a tradição, o dragão havia acabado de incinerar São Jorge e ainda soltava baforadas de fumaça e faíscas.
***
A residência de Belanus, onde Friga despertou, era um aposento estreito, sobre cujo piso de madeira o bruxo estendera dois tapetes, um para que ele mesmo dormisse ali e outro para a Cibele. A velha fora acomodada em sua cama, no canto do quarto.
A janela, pequena, deixava entrar o vento da noite; e ele seguia acordado.
Pouco antes de voltar ao estado de vigília, a mais idosa das feiticeiras sonhara com Pandora acorrentada e chorando. Tentara se lançar em seu auxílio, porém só então notara um círculo mágico ígneo que as separava, também drenando seus poderes e seu ânimo. Bastava cogitar entrar na área do cativeiro mágico para que sua pele enrugada ardesse, como se ferros em brasa fossem colocados sobre ela, e experienciasse a velhice de uma mulher comum, que perdera o apoio da magia. Desabava com seus ossos fracos e as juntas doloridas. Mal conseguia ficar de pé. E entre as chamas, em meio à agonia da que era sua filha, manifestara-se o rosto do demônio e ao lado deste o sorriso triunfante de Melinda, que segurava a cabeça de Sir Edgar, cujo sangue pingava no chão e evaporava com o calor, deixando letras vermelhas na terra. Ao tentar lê-las, despertara.
– Traidora! Maldita traidora! – esbravejou, queimando de ódio.
– O que é pior? Ser salva por um homem ou traída por uma filha? – indagou Belanus.
– Não me venha com provocações agora – replicou da cama, sem se mover.
– A sua outra irmã ainda não acordou, mas já podemos sentenciar nosso fracasso. Subestimamos os demônios de Melinda. Uma Pandora seria capaz de derrotar a outra, mas não de vencer aquele monstro.
– Aquela maldita vai pagar muito caro. Criaturas do gênero não se submetem por muito tempo a seres humanos.
– Um ajuda o outro por interesses em comum. Mas não poderemos errar outra vez: Melinda não vai parar até que as nossas almas também pertençam ao demônio. Então os dois vão ter o que queriam desde o início. Ela se livra de nós; e o demônio fica conosco. Escravos pela eternidade.
– Nenhum sofrimento é eterno. Isso é coisa dos cristãos.
– Mas e o sofrimento que está sentindo agora? Não lhe parece eterno?
– É melhor que se cale, Belanus. Acorde a idiota da Cibele. – Emitiu um gemido desgostoso e, por fim, ergueu o tronco para deixar a cama.
Foram necessários alguns dias de descanso a fim de que as duas bruxas recuperassem a saúde e rumassem, junto com Belanus, para o castelo de Bruce Aleister.
Outras integrantes da Ordem de Hécate ficaram, a princípio, intrigadas com o desaparecimento das três líderes, porém Friga tratara de enviar uma carta por meio de uma coruja, através da qual explicava o trágico fim da jovem e que uma nova Pandora só seria escolhida após o regresso de ambas. A ação contra a traidora que renegara a Deusa era mais urgente, porque se não fosse efetuada logo o tempo de vida seria encurtado não pela metade, mas sim em dois terços. Se Melinda era tão poderosa assim? Não, porém as forças que estavam com ela precisavam de toda a atenção ou sobrepujariam a modesta fé de novatas e aprendizes.
– Esse castelo foi construído apenas com a força da vontade de Bruce e desaparecerá quando ele morrer. – Belanus apontou para a fortaleza daquele mago, rodeada por uma floresta silenciosa, sem o menor sinal de animais, que angustiava Cibele e amedrontava Friga; ali, a vida já quase desaparecera, não fosse pelas árvores secas.
A fortificação, de planta irregular devido ao terreno, fora erguida em cantaria de granito e alvenaria argamassada e apresentava uma muralha com dez torres circulares, cinco equidistantes a oeste e cinco ao leste.
Entraram pelo portão central, encimado por duas esculturas de dragões. Embora estivesse aberto, pairava a sensação de que a qualquer momento uma chuva de fogo cairia sobre os intrusos.
Atravessaram um pátio assombrosamente vazio, subiram uma dezena de degraus e passaram por outro portão. Assim chegaram a uma zona interior elevada, onde se erguia a torre de menagem, esta, no caso, uma estrutura de três pisos com um estandarte de dragão pendurado acima da janela.
– Não entendo. Uma fortaleza guerreira para um bruxo. Qual o sentido? – inquiriu Cibele.
– Não se esqueçam de que Sir Bruce também é um senhor de terras. A diferença é que não possui mais vassalos vivos. Todos morreram por guerra ou doenças. Mas não é que precise deles. – Belanus respondeu.
– Acho que entendi. – A bruxa de meia-idade meneou a cabeça de cima para baixo bem devagar, com uma expressão receosa.
– Bruce enfrentou muitas batalhas em sua juventude. Contra piratas, contra outros senhores feudais ambiciosos… e contra demônios.
– E posso saber como conseguiu vencê-los? Cernunnos não é superior a Hécate. – Friga resmungou.
– Com a ajuda de outros demônios. – Os olhos de Belanus faiscaram e as duas não disseram mais nada até as portas seguintes serem abertas por servos invisíveis.
O céu encoberto e a neblina que não permanecia estática, mas se difundia para dentro da construção, tornavam o ambiente ainda mais lúgubre do que já era.
– Quando disse que este castelo foi construído com a força da vontade do seu amigo… Como foi isso? – Cibele inquiriu outra vez, uma curiosidade que também começava a irritar a velha, que estava achando melhor ficar em silêncio ao caminhar por escadarias, corredores e aposentos repletos de seres que olhos comuns não enxergariam e que mesmo a desatenta bruxa de meia-idade não via, porém que ela, a idosa feiticeira, percebia com clareza: alguns tranquilos, outros hostis, entre espíritos humanos e de pássaros, cães e felinos, criaturas serpentiformes, olhos que despontavam nas paredes e gnomos de semblantes carrancudos.
– Primeiro ele destruiu o pequeno castelo que existia aqui antes, que na opinião dele não resistiria nem a um ataque de um pequeno grupo de brutos, e ergueu este levitando blocos e trabalhando as pedras com a ajuda dos elementais e ouvi dizer que de um demônio enorme, que erguia os pesos maiores com facilidade. – Belanus tornou a fornecer explicações.
– Contos e estórias! – A velha não se aguentou mais e esbravejou. – Quero ver se tudo isso é verdade! O que não entendo é como, por mais incrível que esse sujeito seja, você e os outros filhos de Cernunnos permitem que ele continue como membro de sua Ordem. Pode se tornar um inimigo muito pior do que Melinda!
– Não, minha querida Friga. Bruce inclusive pouco participa de nossas reuniões. É mais um membro de honra; e muito do que consegue obter ele nos dá. Não tem ambições mundanas. Não quer criar e impor uma nova seita. Não acha que está certo e o mundo errado. Simplesmente vive pela magia e para a magia. Não pensa em outra coisa. O interesse dele está no conhecimento puro, não no poder. Não no pequeno poder.
– Ainda não estou certa do que devemos fazer.
– Se não pedirmos, ele não vai nos ajudar. E os cultos a Hécate e Cernunnos sucumbirão.
– Não estamos subestimando os nossos deuses? – questionou Cibele.
– Cheguei à conclusão que os nossos não são deuses da força. São deuses que, ao contrário dos demônios, vivem para criar e fluir com a vida, não para destruir e esmagar. Não que sejam fracos. Mas não vivem para a guerra – sentenciou Belanus.
A bruxa de meia-idade olhou para a velha, que não parou mais de resmungar consigo mesma, em voz baixa, até chegarem às portas do salão de Sir Bruce Aleister.
Belanus apanhou a argola da aldraba com a figura de um dragão e bateu com força. Então a entrada fechada não se abriu, mas foram transportados para dentro por meio de magia.
Depararam-se com um salão amplo, iluminado por escassas lamparinas, cujo fundo era ocupado por um trono vazio, com ornamentos em ouro e estofo verde-claro.
O mago estava de pé, mexendo no corpo estendido na mesa à sua frente, um cadáver de rosto túrgido e convulsionado, com uma nódoa acastanhada no canto da boca.
– Seja bem-vindo, meu amigo Belanus! – Levantou a cabeça para saudar o conhecido recém-chegado. – Vejo que trouxe duas visitas para dividir um bom vinho conosco. – Havia uma taça de vinho branco pousada ao lado do corpo inanimado. Aquele cadáver exalava um odor de podridão. – Por que não trouxe a Pandora, da qual tanto me falou? Mas está bem! Se essas duas forem agradáveis na conversa, já me darei por satisfeito. – Aquele mago trajado em azul-escuro, que aparentava estar na faixa dos trinta anos, soprou a mecha de cabelos castanhos ondulados que descera atrevidamente sobre sua testa e tomou um gole da bebida.
Seus olhos negros apresentavam olheiras fundas e abriu um sorriso carregado com um certo desdém.
O estômago de Cibele embrulhou, enquanto a outra bruxa resmungava.
– Agora não é hora para troças, Bruce. Viemos em busca de ajuda – disse Belanus.
– E a Pandora está morta. Os seus desejos imundos nunca serão saciados! – despejou Friga. – Apesar que eu não deveria esperar nada melhor de homens, um comentando coisas sujas com o outro.
– Meu amigo Belanus nunca falou nada de mais, a luxúria é toda minha! Não generalize, por favor! – De seu pescoço pendia um amuleto de prata com o desenho de um pentagrama de um lado e de um hexagrama do outro.– E por que desejar estar em contato com uma bela mulher, aquecer seu corpo e lhe fazer carinho seria algo sujo? Não seja tão pudica, minha senhora. Está até parecendo cristã!
– Não me ofenda ou poderá pagar caro.
– Não era a minha intenção, grande Friga! Não imagina o respeito que cultivo pela Ordem de Hécate. – Do anel de ouro inserido no dedo médio de sua mão direita, saiu um feixe que abriu o peito do cadáver com mais força e precisão do que qualquer lâmina seria capaz.
Cibele arregalou os olhos. Friga pressionou os lábios um contra o outro.
– Contudo – o mago prosseguiu com sua fala –, foram vocês que vieram interromper a operação que estava realizando em um dos meus servos e, portanto, eu que deveria estar descontente...
– Um servo? Mas como assim? É um cadáver. Você cria e usa retornados? – questionou a Cibele, com um ar persistentemente assustado.
Aquele corpanzil fétido urrou de dor e ameaçou se levantar. A bruxa de meia-idade gritou. Friga meneou a cabeça para os lados e Belanus permaneceu imóvel. Cordas de luz saíram do anel do bruxo e prenderam a criatura arfante.
– Acho que isso responde a sua questão. Ele é dos que me trazem comida. Caça e colhe em florestas distantes, já que aqui não há muito disponível. – O morto-vivo aos poucos parou de ofegar e gritar e foi se acalmando, até tornar a adormecer.
– Desculpe-nos a interrupção, Sir Bruce. Vamos explicar melhor a nossa situação agora. É urgente. – Belanus, ignorando o medo de Cibele e o aparente desprezo de Friga, expôs então, em detalhes, o problema de Melinda, as perseguições de Edgar e as consequências nefastas que tudo isso poderia provocar.
– Compreendo. – Bruce balançou a cabeça afirmativamente ao término da exposição. – Obrigado por me colocar a par, meu bom Belanus. Muitas vezes me entretenho tanto comigo mesmo e com a magia que me esqueço do mundo mesquinho que temos ao redor. Acho que precisaremos chamar um grande amigo meu para lidar com essa crise! Assim não será necessário sujarmos nossas mãos, exatamente como Melinda agiu com relação à doce Pandora. – Bruce também conseguira perceber, ver e descobrir coisas não ditas; mas isso não precisava expor no momento.
– Vai evocar um maldito e imundo demônio – resmungou Friga.
– Deveria ter mais respeito, senhora! E se ele nos ouvir? Muito cuidado. Comigo não fará nada, mas as senhoras deveriam mostrar o máximo de respeito.
A velha proferiu alguns palavrões e Sir Bruce sorriu. Deixou para trás seu retornado e levou-os a um amplo e alto salão, no centro do qual havia um pentagrama invertido que lembrava a cabeça de um bode, traçado no chão em um vermelho brilhante, que gerava a luz do ambiente sem necessidade de velas ou lâmpadas a óleo. Ficava mais ou menos intensa de acordo com a vontade do mago, que notou que a Cibele não erguia mais o olhar:
– Foi traçado com este meu versátil brinquedinho – apontou para seu anel –, que pode riscar madeira e qualquer tipo de pedra como o diamante risca o vidro. O que acham?
– Presente de algum demônio? – Friga indagou em um tom entre o raivoso e o zombeteiro.
– Não, não! Este aqui é mérito meu. Não veio do Céu nem do Inferno, mas do meu vulcão interno, da oficina do deus coxo mas sábio que vive dentro de mim! – Cibele começava até a achá-lo, mais do que simpático, quase fascinante; já a velha bruxa ficava cada vez mais irritada. Em alguns aspectos, invejava aquele sujeito.
– Quem vamos evocar? – inquiriu Belanus.
– Asmodeus. – A resposta direta de Aleister veio acompanhada de uma seriedade que até o momento não manifestara; Friga sentiu a mudança, tentando ocultar um certo temor. – E algo será necessário. Terão que fazer um sacrifício.
– Que tipo de sacrifício? – A velha torceu o nariz e ergueu uma sobrancelha.
– Um intercurso sexual. – O bruxo voltou a sorrir. – Acharam que seria fácil? – Levou um tapa da senhora das feiticeiras de Hécate. – Calma, minha senhora! Em nenhum momento lhe faltei ao respeito! – E retomou a fala, a Cibele boquiaberta: – Não disse que precisaria ser entre nós. – Ao estalar dos dedos, dois mortos-vivos entraram no local, um homem e uma mulher, pálidos e malcheirosos, pregando um susto na bruxa de meia-idade e inspirando um asco crescente em sua irmã mais velha. Belanus sabia não haver outra escolha e recuou. – Vamos para dentro do pentagrama. – E depois que os quatro entraram, Bruce traçou, usando a luz do anel, um círculo mágico em claridade rubra, onde despontaram inúmeras inscrições e símbolos menores. Os zumbis ficaram do lado de fora, e eram por certo corpos que tinham pertencido a dois belos jovens, altos e esbeltos, ainda com os traços delicados à mostra, loiros os cabelos dela, castanhos os dele. – Fechem os olhos e se concentrem na nossa proteção. Sintam-se unos com o círculo. – Aleister ficou sério e foi o único a permanecer de olhos abertos. O casal de mortos-vivos começou a se abraçar e a trocar carícias, ainda de pé. Teve início a evocação em voz alta: – Asmodeus, um dos reis do Inferno, senhor de mais de setenta legiões! Evoco vossa presença diante de meus olhos e de meu espírito, para que venhais em meu auxílio em nome do acordo que temos. – Pronunciou outros nomes do demônio e repetiu o chamado em latim, grego, hebraico e persa.
Por incrível que pudesse parecer, o fogo da paixão incendiou os dois corpos apodrecidos e, embora não fossem mais capazes de gerar uma nova vida, os retornados consumaram sua união. Uma fumaça fedorenta pairava no ar e a pele e os ossos dos dois foram derretendo. Tornaram-se uma lama orgânica a se espalhar pelo piso.
Cibele teve vontade de vomitar devido àquele cheiro, e não ousaria abrir os olhos, mas se segurou; Friga cuspiu no chão e levantou um pouco as pálpebras; Belanus rezava para que Cernunnos o protegesse.
– Podem abrir os olhos. – Dada a permissão pelo oficiante, a poça gosmenta evaporara, portanto nada mais de zumbis, e o fedor ficara ainda mais forte, com Asmodeus que se materializava diante dos quatro na névoa putrefata: bípede e ereto, os braços cruzados com mãos de rocha maciça, passava dos três metros de altura, o corpo musculoso predominantemente negro com partes incandescentes, como os olhos em brasa.
– O que deseja, Aleister? – Também se viam, meio queimando, meio com um aspecto rachado, dois chifres curvos voltados para a frente, emoldurando o rosto, dois para os lados e um para trás. – Ainda não cumpriu a sua parte no nosso acordo e insiste em me chamar?
– Peço perdão pela ousadia, mas desta vez são três amigos meus que necessitam dos vossos poderes.
– E por que eu ajudaria esses vermes? – O demônio aproximou o rosto de queixo pontiagudo, dentes afiados e grandes orelhas com brincos espinhosos pendurados nelas.
Friga teve vontade de retrucar, porém um calafrio aguilhoou sua espinha e faltou-lhe coragem.
Cibele tremia e não sabia mais se continuava achando Aleister assim tão fascinante. Belanus abaixou a cabeça.
– O que tenho a ganhar? – questionou o demônio, salivando.
– Demonstrareis a eles vossa força, e com isso ganhareis novos súditos. Não é o bastante? Além disso, podereis divertir-vos humilhando um dos subordinados de Naemah. Estais a par do que Seir andou fazendo? Ajudando a criar uma seita própria, como se a merecesse mais do que Vossa Majestade!
– Soube de algo por rumores. Seir é um barão e tem todo o direito de fazer o que quiser com os homens, mas de fato não poderia ter criado um culto sem a autorização expressa dos reis. Se tem a intenção de estender seu poder pela Terra sem nosso aval, tendo comunicado isso apenas a Naemah, eu me encarregarei de puni-lo.
– E a bruxa que está com ele se tornou sua amante; e é bela e atraente.
– Não são todas as mulheres que me interessam. Você me disse que poderia encontrar a alma de minha Sarah.
– Vossa Majestade terá que ser paciente.
– Espero que não esteja me enganando.
– Não ousaria, Majestade! Estou trabalhando em silêncio, sem alardes.
– Está bem. Quer que eu destrua essa seita? De qualquer forma, eu posso mesmo me divertir enquanto não me reúno com Sarah. Que Rafael não me atrapalhe desta vez!
– Não irá, meu senhor. Ele não virá em socorro de uma devassa. E vossa diversão será dupla: colocar um subordinado em seu devido lugar e ter a carne de uma bela mulher.
– De acordo. E eles serão meus novos súditos. – Encarou os outros três.
– Feito, meu senhor. – Aleister selou o pacto e o demônio desapareceu em um tufão, dentro do qual sua cabeça parecera se triplicar antes de se desvanecer. A velha feiticeira tentara fazer objeções, mas sua língua travara. A de meia-idade ficara com os braços dormentes. Belanus cogitara dizer algo, porém não tivera coragem. – Está feito. – O bruxo falou; o ambiente estava mais claro e estático. – Podem sair do pentagrama.
– Seu miserável! Fez um pacto por nós! O que quer dizer isso de sermos súditos dele?! – inquiriu furiosa Friga. – Você vendeu as nossas almas?
– Se vocês não oferecessem algo, ele os mataria na mesma hora. Então eu ofereci por vocês, já que não tinham nada a dar.
– Deveria ter nos consultado!
– E o que teriam dado a ele? – Silêncio. Cibele abaixou a cabeça e levou as mãos à testa, encobrindo o olhar. Bruce prosseguiu: – Não se preocupem. Ele irá ajudá-los. – Seu sorriso silenciou ainda mais os outros três, Cibele apavorada, Belanus imóvel e a idosa feiticeira levantando a cabeça e fitando o nada, formulando em sua mente uma prece de desculpas para Hécate. "Perdão por escutar os homens, mas fiz isso pela Senhora!"
***
Em mais um ritual proibido, Melinda preparara com seus companheiros de culto uma comemoração pela iminente destruição da seita de Hécate. Uma taça de ouro que continha o sangue de meninas fora passada de mão em mão para chegar à Sacerdotisa Mestra, que antes de levá-la aos lábios respirou fundo, de olhos cerrados. Teve início um êxtase que se difundia através de carícias na pele, Seir muito próximo de se manifestar. A boca de Melinda palpitava, ansiosa pelos beijos lúbricos, em sua língua emergindo um negrume trêmulo paralelo ao que se dava em seus dedos entregues à força. Seria capaz de rasgar a teia mais cortante e de desferir um olhar brutal contra a morte, percebendo em si uma qualidade de desafio que não deixava nada a dever ao seu venerado amante. Ria por dentro, na beleza da plena aceitação de sua energia, e sentia orgulho por não pertencer a uma categoria a seu ver ilusória: a dos seres santos e justos, que no fim das contas tinham sempre que agir de forma veemente para dobrar o que classificavam como trevas. O que eram os cruzados? De nenhum modo seres puros.
O cálice às vezes assumia a forma de um athame letal, com o qual poderia cortar a garganta ou os pulsos do companheiro ao lado sem o menor remorso. Não era muito melhor e mais sincero viver assim? No espelho de luz metálica, via-se sem pele, o líquido escarlate correndo livre pelas veias nuas. Compreendia, pela dança interna dos componentes do corpo, as qualidades da matéria, que deixava fluir o toque dos tambores dos antigos e a encenação de uma peça banhada por uma substância fluida, doce e abrasadora. Onde estava o pecado? Bebeu o sangue e então atirou o cálice ao fogo e pronunciou a evocação.
Contudo, Seir não apareceu. Sequer um mínimo sinal de sua presença. Tanto as chamas do ritual como as velas triviais se apagaram. Nas sombras, manifestou-se uma fumaça cinzenta e grosseira. Seus companheiros gritaram e foram fincados na parede ou despencaram no chão ao terem seus corpos perfurados por lanças surgidas sem nenhuma explicação.
As mulheres tiveram ânus e seios atravessados; nos homens, o pior ocorrera para suas cabeças e corações.
Aquelas armas estavam banhadas em um veneno, que pingava de suas pontas e impedia qualquer possibilidade de sobrevivência.
– Quem é você? Chamei por Seir. – Melinda, a única que fora poupada, balbuciou diante do monstro que despontara, ao que parecia desarmado.
– Odeio cheiro de peixe. E um deles comeu peixe hoje. O mau odor havia impregnado seu corpo inteiro e me vi forçado a puni-lo por isso. Quanto aos outros, não deveriam andar com um sujeito que tem cheiro de peixe.
– Não me respondeu quem é.
– Não devo respostas a uma vadia como você. As que me agradam são as virgens. Gosto de tornar frios os corações delas. O seu já é gélido.
– Responda-me, demônio: onde está Seir?
– Sou Asmodeus. Superior a Seir. – Derrubou a feiticeira, inclinando-se sobre ela e pronto para o ato.
As roupas se rasgaram sozinhas e a mulher ficou nua e boquiaberta.
– Se veio me ajudar em lugar do outro, serei sua.
– Este não é o lugar apropriado. – A névoa os envolveu e cobriu o cenário. – Há outro muito melhor.
As brumas se retiraram e estavam diante do leito do barão.
– Mas o que pensa que está fazendo?! – tentou falar o mais baixo possível, apesar da indignação e do medo.
Um clarão invadiu o quarto e Edgar acordou da maneira mais brusca, como se o Sol tivesse entrado para cegá-lo. O rei infernal mudava de forma: assumiu a aparência de um dos cavaleiros de confiança do senhor de Northend.
– Saia daqui, Raymond! – Uma voz idêntica à de Melinda saiu dos lábios de Asmodeus. A verdadeira não conseguia abrir os seus. – Edgar acordou! Ele não pode desconfiar de nada!
– Mas eu amo você!
– Eu também te amo, só que agora não é hora nem lugar! Como teve coragem de vir? – O diálogo todo criado pelo demônio.
O senhor feudal ainda tinha a visão ofuscada, porém ouvira tudo.
Não era um pesadelo: passou a enxergar bem e seu mundo veio abaixo de vez, pois sua esposa estava nua no chão com um de seus cavaleiros.
– Mas o que está acontecendo aqui?! – esbravejou, com os lábios trêmulos.
Melinda estava com a boca e os olhos escancarados, assim como seu amante. A língua continuava travada. Ao tentar falar, nenhum som inteligível saía.
– Merda! – O falso homem correu e deixou a mulher desamparada em sua vergonha.
De nada adiantaria evocar a magia, pois todos os seus poderes haviam sido retirados por Asmodeus, assim como sua energia física fora reduzida. Sentia-se exausta, com cãibras nas pernas, como se tivesse percorrido dez estádios em disparada.
Edgar foi caminhando na direção da esposa, seu semblante bestializado e mais vermelho do que nunca:
– Como tiveram coragem? E dessa maneira! Tentando fazer coisas sujas em meu próprio quarto, só faltando subirem na minha própria cama enquanto eu, um completo idiota, descansava exaurido pelos meus deveres! Nunca esperei isso de você, Melinda… E com tão pouca inteligência! E Sir Raymond… Como foram tão descuidados? A tentação deve ter sido grande demais. Isso os excitava, não é? Os demônios alimentavam seus prazeres… – Sangue e fogo não dançavam; agrediam-se. Melinda ameaçou correr, ainda sem conseguir falar. Segurou-a com força pelo pulso. – Sua traidora imunda! – Espremeu com tamanha intensidade o pulso da esposa que o quebrou. Com um grito de dor, ela recuperou a voz, porém não sabia o que dizer. E conseguiria? De pronto as mãos dele alcançaram seu pescoço. – Não tem como se justificar, não é? Ouvi bem o que disse a ele. E você sabe disso. Disse que o amava e que eu não poderia desconfiar. – O ar faltava para a mulher, um frio tremendo tomou conta de seu corpo e, atrás do marido enlouquecido pela traição, deu-se a aparição da Pandora morta por Seir, que a encarava com frieza, trajando um manto negro que se fundia à escuridão da noite.
– Mas o que está acontecendo? – Alguns homens chegaram, mas era tarde demais para a senhora de Northend, cujos braços já pendiam frios, sem vida. O verdadeiro Raymond estava entre aqueles armígeros.
Não demorou para Sir Edgar, que largara o corpo da esposa, arrancar uma espada da bainha de outro cavaleiro e, para a perplexidade dos presentes, decapitar o traidor. Tiveram que segurá-lo para que a matança não se estendesse, pois o senhor daquelas terras parecia ter perdido a razão por completo:
– Vou matar todos vocês! São todos traidores! Traidores vis, que se excitam com os jogos dos demônios! Não vou mais ficar neste antro de monstros pervertidos! – E, ao olhar para o cadáver da mulher, o ódio sangrento e o fogo sexual faziam mais do que rasgá-lo.
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