Nesse interlúdio tênue, o passado me tomava inteira — cena reconstituída nos vãos da memória: eu, pequena, inventando mundos no quintal, mãos sujas de terra, cabelos ao vento, enquanto minha avó me olhava longamente, paciente e sábia, olhos que atravessavam os anos e me abençoaram sem palavras. Suas frases, que reapareciam límpidas e novas entre as dores do presente, pareciam agora gestos de quem reconhecia minhas quedas e conquistas, quem costurava com doçura cada passagem e cada nova página da minha história.
Mesmo sob o peso agudo do peito, experimentava — em meio ao pranto — uma difícil gratidão: fui inteira no amor, fui inteira na infância, ainda que o tempo seja rio que corre e jamais retorna à fonte. Adormeci, exausta e líquida, amparada pela blusa vermelha que ela me dera, cercada de saudade e fios de lembranças.
Acordei entre os restos de lágrimas, os olhos buscando algum sinal do mundo fora de mim: o celular, frio nas mãos, prometia notícias num tempo incapaz de consolo. Vieram aos poucos, e vieram como pancadas: uma das filhas da vovó passara mal; mainha era agora puro pranto, amortecida por remédios; Deise recusava aos pés seguir o cortejo, recusava, também, o cemitério, onde restam vazios e ritos frios; Maria, traída pelo corpo, tombou ao ver o caixão descer no frio da terra. De Estevinho, quase nada — só o silênico pesado de quem também carrega a nossa dor dispersa.
Mais forte, de repente, me invade a lembrança do abraço derradeiro:
Há dois meses atrás suas mãos me abraçaram, e o abraço dizia — sem dizer — que talvez fosse a última vez. Sua voz mansa, ainda assim sussurrava, esperança de reencontro, embalava minha ilusão. Quis tatuar em mim aquele momento, repeti: “Não será o enlace final”, mesmo não tendo certeza. Rosto e visão desfocados pela água do choro, sentia um medo infantil de perder o semblante dela para sempre. Mainha chorando na sala; eu, no quarto, pendendo entre despedida e esperança. Hoje entendo porque mainha também chorava; ela já sabia. O médico havia dado um prazo; o destino da ausência já sussurrava. Mainha, sozinha, carregou o segredo do fim que se aproximava, protegendo-nos como podia do inevitável.
Hoje, existe um fio que nos une pulsando no compasso da dor, apertando no peito a ausência, como quem lembra o calor de uma despedida ainda recente. Esse mesmo fio, já transportou alegria, amor, já foi caminho de riso que deixava leve a alma, já foi afeto puro, daqueles que enchem os olhos d’água e os dias de esperança e agora embala saudade – uma saudade bonita, que não é ausência, mas presença que permanece mesmo quando o tempo insiste em passar.
Esse fio sutil atravessa as memórias e costura, delicadamente, todos os instantes que um dia aqueceram nossos sonhos. E, embora hoje ele doa, carregado de silêncio e tristeza, é também o mesmo fio que ainda nos liga à doçura do que vivemos.