Já era quase o fim daquele dia, o sol cedendo espaço ao frescor suave da chuva leve, que baixou o calor e acalmou a poeira do terreiro. Painho surgiu trazendo, como um troféu nas mãos, uma bola meio murcha, chamando cada filho para o campo improvisado: — Vamos jogar, pessoal!
A alegria saltou dentro de mim. Juntei-me animada aos meus irmãos — o time de cada dia, a constelação da minha infância. Hoje, teria o privilégio de jogar ao lado de Painho e da Deise, enfrentando Estevinho, Maria e Patrícia. A trave era obra do próprio painho: galhos firmes demarcavam o lugar do gol, testemunhas vivas do nosso entusiasmo. O chão, recém-banhado de chuva, exalava cheiro de capim e promessa.
Tão logo toquei na bola, pude sentir cada célula do meu corpo acordando: o vento dançava no meu rosto, a emoção escorregava líquida no riso. Pulei, corri, deslizei pelo gramado úmido, a grama cedia docemente sob meus pés. Quando Painho passou a bola para mim, e a rede improvisada balançou com meu chute: — Gooool! — explodi, correndo e festejando, embalada pela risada de Painho.
Meu coração era puro salto. Corri até mainha e vovó, que assistiam de longe, aplaudidas de afeto no olhar. Meus irmãos, mesmo com uma pontinha de raiva, logo devolveram a brincadeira, a vida já era movida por novas partidas.
Depois que Maria fez seu terceiro gol, cansou-se primeiro dos risos e do suor: — Vamos parar? Estou cansada...
Painho aquiesceu, divertido:
— Vamos, está bom por hoje.
— Mas a gente vai jogar todos os dias, painho? — quis saber Estevinho, esperança pendendo da voz.
— Sim, se vocês quiserem! — respondeu Painho, para a alegria geral. Todos nós ficamos encantados com a nova brincadeira; se dependesse de nós, passaríamos anos ocupando aquelas tardes com jogos e risos.
Banho tomado, a pele marcada de grama e alegria, regressamos à casa de vovó, onde o tempo sempre corria diferente. Era noite de lua cheia, e eu parei:
— Tá vendo, gente?
— O quê, vovó? — Patrícia quis saber.
— Olhem direito: é um homem e um dragão na lua.
— Eu tô vendo! — gritou alguém, e, de repente, todos víamos figuras imaginadas no prato luminoso do céu. A infância transforma tudo em poesia: a lua, os pontos brilhando alto, o rumor do mato dormindo.
Vovó iniciou sua história e nosso círculo de atenção se fechou ao redor dela: — Uma vez, eu estava pescando com minha mãe e minhas irmãs… De repente, ouvi um barulho. Lá em cima da pedra, vi uma onça me encarando…
Nos encolhemos, olhos atentos, corações disparados.
— Onça de verdade, vovó? — Onça de verdade, sim, senhora!
Enchíamos vovó de perguntas — não pela dúvida, mas porque amávamos ouvi-la transformar pavor em aventura, susto em memória.
— Fiquei com muito medo, claro! Chamei minha mãe, largamos tudo para trás e corremos para longe. — E o peixe que a senhora tinha pescado? — Minha filha, no susto, a gente largou tudo. Ninguém lembrou de peixe naquela hora! — vovó ria, e sua risada dissolvia todos os medos, tornando a noite ainda mais mágica.
Quando a história terminou, os risos e a noite de lua cheia nos embalaram até o sono chegar. Fui para a cama sentindo minhas memórias desabrochando — flores abertas no jardim secreto do peito. Minha vida começava, e eu sabia: teria ainda muitas aventuras ao lado dos meus irmãos.
Ao amanhecer, o canto do velho galo e a música baixa do rádio eram trilha sonora da casa desperta.
— Vamos, vamos levantar, hoje iremos lá em Mãe! — era o chamado de mainha, tentando acordar os últimos sonolentos.
O café era rápido, o biscoito de água e sal ainda entre os dedos, enquanto atravessávamos a estrada para a casa da outra avó, a “Mãe”, mãe de mainha. Três quilômetros de caminhada, o rosto na brisa, irmãos ao lado. E ali, até as pequenas brigas se fundiam à alegria do caminho partilhado.
Ao chegar à entrada da fazenda, nossos passos desaceleraram diante de uma patrulha insuspeita: uma família de gansos, vigilantes e nada satisfeitos com nossa aproximação. Eram donos absolutos daquele pedaço de terra, sentinelas de penas brancas e vozes estridentes, avançando em nossa direção com uma imponência quase heroica. Seus pescoços longos se arquearam em ameaça, asas semicerradas, olhos atentos, como se desafiassem qualquer estranho que ousasse ultrapassar seus domínios
— Vem, Letícia! — gritava mainha, a urgência tremulando no ar. Mas fiquei imóvel, paralisada diante daquela investida. E foi assim, sem tempo para fuga, que senti o bico do ganso acertar minha barriga — um beliscão inesperado e ardido, que veio carregado de susto e lágrimas.
— Ai, ai! — o choro escapou antes que eu pudesse conter, já correndo até minha avó que vinha ao meu socorro, de braços abertos em porto seguro.
— Ele me beliscou! — reclamei, os olhos marejados, levantando a blusa para examinar a marca da batalha. E ali estava: não uma ferida, mas uma grande mancha marrom, de contornos de mapa, desenhada na pele da barriga.
— Tá vendo, mainha? Olha o que ele fez! — desesperada, estendi a barriga para ela.
Mainha, com sua calma paciente de quem já viu milagres escondidos no cotidiano, sorriu: — Essa é sua marca de nascença, minha filha.
Olhei, surpresa. Era como se, naquele instante, eu descobrisse uma parte de mim que sempre esteve ali, mas nunca tivera olhos para ver.
Mais tranquila, deixei o medo escorrer e fui abraçar meus tios. Tio Val, sempre querido, era prestativo, adorava nos jogar de um lado para o outro no quintal — força e cuidado em igual medida. Enquanto conversava animadamente com tia Kinha, a alegria transbordava. Logo, Tia Leu apareceu, a mais talentosa de todas, braços preenchidos de bonecas de pano feitas por ela mesma, cheiro de tecido novo misturado a carinho antigo.
Deixamos os adultos na casa de farinha e corremos para brincar — nós cinco e as primas, Kassy e Bianca — uma tropa barulhenta, unida pelo privilégio raro de repartir a infância.
Depois de um longo dia de trapalhadas, risos e olhares atentos de mainha, que parecia dizer “se comportem”, seguimos de volta à nossa casinha de madeira, onde vovó e painho nos esperavam, com uma boa notícia.
Para nossa alegria, o tão aguardado dia da mudança finalmente chegou. Estávamos todos envolvidos pela magia da casa nova, que trazia consigo muitas felicidades e promessas de dias felizes.
À noite, quando o escuro caiu sobre a roça, acendemos velas distribuídas em cantos estratégicos, já que a energia elétrica ainda era um luxo distante para nós. As chamas pequenas lançavam sombras dançantes nas paredes frescas, dando ao novo lar uma aura de aventura e acolhimento. Enquanto buscava algo no fundo de um velho baú, Maria, emprestando sua curiosidade ao momento, colocou ali dentro uma vela para iluminar o espaço. Deise, atenta e inquieta, não conteve o ímpeto de investigar e meteu a cabeça no baú no exato instante em que o inusitado aconteceu, o fogo gentil das velas encontrou os fios de seu cabelo, e em segundos, o susto se fez grito.
— Fogo! Fogo no cabelo da Deise! — exclamei, tomada pelo pânico.
Mainha veio em disparada, ágil naquilo que os instintos maternos despertam, e conseguiu sufocar as chamas antes que o desastre ganhasse outra proporção. Ficamos ali, ofegantes mas inteiros, aprendendo juntos — pela primeira vez no novo lar — que a aventura é irmã próxima do susto, e que cada parede da casa nova presenciara capítulos cheios de cor, calor, surpresas e, acima de tudo, afeto.