A dor plantou raízes em mim quando a vida sussurrou sua fragilidade dentro de casa: vovó foi surpreendida por uma doença repentina. De uma hora para outra, a vitalidade que nos aquecia foi substituída pelo silêncio do quarto, a janela sempre entreaberta deixando entrar luz tímida, enquanto ela já permanecia acamada havia alguns meses. Embora eu soubesse do seu estado de saúde delicado, e dos prenúncios da despedida. Não houve piora brusca; fui pega de surpresa pela delicadeza do fim. Não estava pronta para dizer adeus à mulher mais doce que conheci — e talvez nunca esteja.
O dia da sua partida nascera igual a tantos outros na cidade grande. O som das ruas de São Paulo batia distantes na janela, enquanto eu, recém-adotada pela rotina da capital, pensava pequeno: Hoje é sábado, dia de painho ir à feira. O conforto era breve, fugaz, embalado pela presença da prima Verônica e da tia, a irmã do meu pai. Apesar de tantos quilômetros das raízes, encontrava abrigo nos rostos que também seguravam pedaços da minha história.
O relógio marcava onze — os minutos já esquecidos pela vertigem dos acontecimentos — quando o telefone de Verônica soou. Meus olhos grudaram no aparelho. — É mainha! — anunciei, animada. Peguei o telefone; minha voz saiu alegre, simples, quase uma saudade.
— Oi, mainha!
Mas veio a frase fria, quase cortante:
— Passa o telefone para Verônica.
O chão se abriu sob meus pés. Mainha travava as emoções — queria poupar-me, dividir a notícia primeiro com Verônica, talvez diluir a dor antes de me alcançar. Mas já era tarde: o tom e o timing da ligação desvelavam tudo. Ela não liga para Verônica em pleno sábado, não sem motivo, no instante em que a voz de mainha tocou meu ouvido, o segredo se revelou antes que a boca pronunciasse, como um murmúrio estranho que se espalha entre as paredes silenciosas, eu soube. Minha amada vovó havia partido, deixando um vazio imenso no meu peito, uma ausência que ecoa nos dias e pesa até no ar que respiro. Ficaram os abraços, os sorrisos gravados em cada dobra do tempo; ficou também a dor, com raízes profundas e promissora de permanência.
É difícil nomear esse buraco — ele é dor, silêncio, memória.
Naquela hora, o luto se acomodou em mim como um véu espesso, inundando todos os cantos do corpo já crescido.
Em meio a angústia, minha infância persiste em filmes internos, projetados cada vez que o presente ruge. Nos sábados da roça, risos do quintal, gritos e travessuras, às amanhã se estendiam lentas ao lado de vovó. Agora, parte de mim se despede e parte se esconde, almejando o impossível retorno.
Enquanto minha mente vagava entre presente e passado, Patrícia conseguiu me mandar uma mensagem — daquelas que chegam geladas, ocupando a tela do celular e o silêncio entre as mãos. A notícia atravessou o escudo do tempo trazendo o peso da perda.
— Letícia, sobre vovó… já está sabendo?
Minha resposta veio aos solavancos:
— Está realmente acontecendo?
Eu só queria abraçar meus irmãos, refazer o círculo do afeto, partilhar o luto que nos envolvia.
Levanto da cama, o corpo zonzo de choro. Sei que preciso comer, mas o apetite parece outro idioma. Na primeira colherada, o sabor do coentro me arrasta para uma sexta-feira, dez anos atrás: o cheiro pungente tomava a beira da leira, e nós, de mãos sujas de terra, arrancávamos hortaliças para vender.
— Sua avó está chamando, Letícia — painho avisava, cabeça arqueada para ouvir melhor.
Corri, lavei as mãos e me pus diante dela.
— Amarra o meu cabelo — pediu, entregando pente e xuxinha. Juntei seus fios grisalhos, fiz o rabo de cavalo, meu ritual favorito.
— Eu sempre peço pra você, porque tu prende certinho. Meus braços doem.
— Pronto, vovó. Assim está perfeito.
Fiquei ali, contemplando seu rosto, gravando na memória os traços suaves e o sorriso persistente.
— Vem nos ajudar, Letícia! Queremos assistir ao último capítulo da novela! — Maria gritava, trazendo uma galiota de coentro, Deise logo apressava:
— Vamos terminar logo, queremos assistir!
Terminamos na pressa. Minutos antes de começar a novela, Maria estava sentada no chão da cozinha, com uma panela de pressão no colo, descascando banana-da-terra para ser a nossa janta. De repente, um grito da sala:
— A novela começou!
Patrícia deu um pulo, saiu do banheiro desesperada para não perder nem um segundo, enfiou o pé dentro da panela com as bananas e correu para a sala. A gente caiu na risada, mesmo com a bagunça.