A manhã se derrama ensolarada no quarto pequeno, e eu, com o cabelo todo bagunçado, a cara ainda amassada de sono e os olhos preguiçosos, sento à beira da cama e encaro por instantes o vazio da parede. Devagar, vou notando tudo ao meu redor: na cozinha, o cheiro do café recém-passado se espalha, enquanto um rádio chia baixinho, tocando a sinfonia da vida. Vejo uma mulher andando de um lado ao outro, cabelos erguidos num coque apressado, movimentos ágeis de quem sempre tem pressa. Só então, quase de relance, percebo: é minha mãe, rainha silenciosa das rotinas, dona dos cheiros e vozes que moldam a minha existência.
O silêncio do começo do dia sempre se quebra com algum grito, panela batendo ou risada fora de hora. Perto da janela, meu pai, sentado quieto, observa o mundo lá fora como quem lê um livro só dele. A luz, cruzando as frestas da casa de madeira, faz as paredes parecerem menores, respirando, cheia de vida.
Olhares curiosos e levemente familiares passam por mim: uma criança gentil.
Essa sensação de pertencimento me preenche enquanto olho para cada canto, como se tivesse acabado de cair de paraquedas neste mundo, como se minha consciência fosse depositada na minha mente justamente nesta manhã, enquanto tomo café ao lado dessas pessoas. Aqui, crio minha primeira memória, uma lembrança que levarei comigo para toda a vida adulta. Enquanto o café quente escorria pela minha língua, acompanhado dos biscoitos, ao meu lado, Patrícia sorria magrinha e pálida, de cabelos pretos e olhos castanhos. Ela não parava de falar e mantinha as mãos em meus ombros, como se o toque também fizesse parte da conversa.
Do outro lado, duas crianças competiam para ver quem seria o "cachorro melhor": Maria e Estevinho, um pouco maiores e donos do privilégio de terem vindo primeiro. Eles pareciam mais sábios e sustentavam suas convicções com firmeza. Um pouco mais afastada, Deise nos observava com um olhar de curiosidade; ela era a menor entre nós, seus olhinhos ligeiros e o riso solto faziam com que a gente quisesse cuidar dela, mesmo sem saber por quê. E eu, ali no meio, com duas crianças menores e duas maiores — parecia ser mesmo a filha do meio.
— Terminei, mainha! — anunciou Maria, pulando do chão onde estava sentada.
Mainha continuava andando de um lado para o outro, meio perdida entre tantas coisas para fazer.
— Todo mundo terminou? — perguntou, aproximando-se.
— Sim — respondi, estendendo minhas mãos pequenas, um prato de alumínio reluzente e o copo amarelo de plástico tremendo entre os dedos.
— Vem, vamos brincar de tubarão! — gritou Estevinho, correndo para um dos cômodos.
Ao segui-lo, meus olhos passearam pelo quarto ainda inacabado: uma cama sem colchão se destacava no centro, feita de tábuas nuas, enquanto fios de vida antiga se enrolavam nas coisas amarradas e empacotadas no canto. O espaço livre parecia um convite à imaginação, como se aquela ausência já fossem promessas de brincadeiras.
Estevinho se jogou primeiro sobre a lousa dura da cama, rindo, e chamou o Tubarão. O pequeno cachorro disparou numa alegria feroz, tão rápido que era impossível saber se era branco ou cinza — era só movimento, orelhas que cortavam o ar e patas que batucavam o chão de terra batida.
— Sobe, Letícia! — veio o grito, ecoando entre gargalhadas e o estalo das ripas da cama. Senti, então, o susto bom da mordida babada de Tubarão, fininha e cheia de graça. Era um convite irresistível. Subi depressa, rindo alto, e me juntei à brincadeira: o desafio era simples e divertido, esticar os pés da cama enquanto Tubarão tentava nos alcançar, farejando, pulando, acertando dentadinhas cheias de ternura.
Tudo era riso, tudo era fuga e reencontro, a cada investida do cachorro, nossas risadas se misturavam ao som de suas patinhas nervosas. Era como se o tempo suspendesse ali, feito nuvem presa na janela de um quarto ainda vazio que criava o próprio lugar da memória.
A diversão só foi interrompida pelo chamado de mainha, abrindo outra porta para o dia: — Vamos lá na casa nova!
Casa nova... pensei comigo, sentindo de novo a razão daquela bagunça alegre. O futuro vinha chegando devagar, cada passo era feito de mudanças. Painho estava construindo, com esforço, outra casa — maior, erguida no chão da escolha livre, terra de roça. O novo lar seria a cem metros da casa de vovó, um futuro aninhado à história. Minha consciência era um círculo perfeito, encaixando cada imagem nessa tapeçaria viva de lembranças que eu, sem perceber, começava a costurar.
Saltamos da cama como pipocas estourando — eu, meus irmãos e Tubarão, o cachorro, com o rabo em festa. Seguimos mainha com passos apressados, misto de ansiedade e esperança. No meio do caminho, brotou a pergunta atravessada de vontade:
— Quando a gente vai mudar? — arrisquei, o coração batendo forte, torcendo por um “hoje”.
Mainha informou, com a calma de quem entende o tempo das coisas: — Seu pai falou que ainda leva uns três dias para o cimento secar.
Cheguei à casa nova ainda envolta em véus de mistério. O cheiro forte da madeira recém-cortada penetrava fundo, misturando-se ao aroma das lonas pretas estendidas no chão — sim, aquele cheiro de promessa e inquietação. Mainha, vigia dos nossos passos, cortou o ar: — Não pisa!
A voz dela era como um vento que segura a poeira, preocupada. Pelo corredor em obras, vi o futuro sendo sonhado, enquanto meus pés hesitavam diante da travessia. E então, como uma luz ao fim do caminho, minha avó, rainha de todas as manhãs, apareceu, sentada, tomando café com banana-da-terra.
— Bença, vovó! — ecoamos, era como um canto em cinco vozes, cada uma carregando uma nota de fervor.
— Deus abençoe vocês — devolveu, com um sorriso de quem conhece todas as bênçãos do mundo.
Vovó era doce como fruta madura: sua pele morena, marcada pelo sol — estampa da roça, dos dias longos, e os cabelos lisos e pretos como os de índia. As mãos mergulhadas na bacia de banana, dedos habilidosos transformando o simples em grandioso, provocavam nossa fome de infância.
— Vocês querem um pouco? Toma! — esta era a pergunta mágica, a chave para a alegria, pronunciada com aquele sorriso largo, inventado só para nós.
Mainha, dura como a enxada que prepara a terra, bradou:
— Não dê sua comida pra eles, dona Idalina! Eles já tomaram café!
O tom, severo, desenhava limites num mundo de abundância afetiva.
Fiquei pequena diante da resposta. Mas vovó, como sempre, dissolveu a tristeza:
— Mas eu já comi muito, posso dar um pouquinho pra eles.
Seu carinho era suavidade que desarmava qualquer regra.
Com risos envergonhados, nos aproximamos, olhos pidões brilhando ao redor do seu afeto. Paciente, ela preparou bolo de banana com carne e farinha, alquimia de sabores entre seus dedos. Era único o sabor: nunca houvera nada igual.
O doce da banana descia suavemente pela garganta, a carne misturava memória e fartura. Eu pensava, entre um pedaço e outro, como aqueles pequenos fragmentos de vida ficariam eternos dentro de mim.