Após aquele breve momento, as vozes flutuavam baixas, mas límpidas, pelo ar da manhã. Mainha conversava com vovó, palavras acertando destinos: — Eles vão ficar aí enquanto eu vou trabalhar. Se eles desobedecerem, a senhora me avisa, tá bem?
Sorri para vovó, um sorriso doce, esperançoso, feito infância fresca. Ela se levantou da cadeirinha velha marcada pelo tempo e pelas histórias dos seus dias. E então, como quem foge do comum rumo à maravilha, corri com meus irmãos para brincar, pernas leves, sem pesos, sem medos.
Nos adentramos sob os pés de cacau da fazenda; era um templo natural, onde a sombra desenhava trilhas de segredo e o aroma doce das folhas maceradas nos envolvia. Olhei para cima: o céu azul se estendia entre as copas recortadas das árvores gigantes, promessas silenciosas de liberdade.
— Vamos brincar de quê? — Deise deslizou a pergunta, curiosidade brilhando nos olhos. — Esconde-esconde! — Maria já pulava, atrevida, no pé de cacau mais velho, como se a árvore fosse trampolim de alegria.
A animação espraiou-se entre nós: todos vibravam, esperando o início da corrida. Patrícia começou a contar, olhos bem fechados e voz firme no tempo escolhido. Nós corríamos, desaparecendo sob a dança das folhas secas que forravam o chão como tapete, enquanto borboletas de todas as cores traçavam desenhos vivos no ar.
Parei, suspensa por um instante, só para admirar as borboletas: eram efêmeras como memórias, colorindo meu pensamento. Até que as mãos agitadas de Estevinho me encontraram: — Bora, ela está chegando!
A partida de esconde-esconde era mágica, um inventário de espaços infinitos para nos perdermos e acharmos. Dentro daquele terreno imenso, agora orgulho e ninho, havia esconderijos sem fim para quem soubesse sonhar. O medo de ser encontrada misturava-se ao riso:
— Te achei!
Patrícia gritava correndo atrás de Deise, e o som dos seus pés e dos seus risos se misturava ao rumor do vento. — Não me achou! — Deise provocava, visible e ágil, desafiando as regras com rebeldia de criança. — Achei sim! — Patrícia insistia, correndo atrás dela com energia feroz.
Assisti à cena, rindo alto toda vez que os cachos de Deise saltavam, livres, acompanhando o ritmo da fuga. Seguimos todos para o quintal onde vovó capinava, suas mãos firmes domando a terra, seu olhar atento às travessuras dos netos.
— Parem de correr! — pediu vovó, voz de comando mansa e sábia.
Deise se escondeu atrás da avó, sorriso enviesado, sabia que ali estava segura. Patrícia, inquieta, protestou: — Sai de trás da vovó! Tu sabe que ela não gosta de briga, por isso tu vai aí! — Não gosto mesmo, já falei! — reafirmou vovó, com serenidade, tentando destrinchar a confusão.
Deise sorria de banda, protegida pelo escudo invisível do carinho da avó.
— Não vou brincar mais! Ela não sabe brincar! — Patrícia exclamou, indignada, e, por um momento, todos concordaram, a brincadeira suspensa no ar.
— Já sei: vamos tomar banho na fonte? — sugeriu Estevinho, recebendo um olhar incrédulo da vovó.
— Fonte? Aí, aí, menino, sua mãe já não falou pra não irem perto daquele rio?
O medo, entrelaçado ao cuidado, morava na voz dela.
– A gente só fica na parte rasa, vovó – insistimos em coral, tentando convencer, até que ela, depois de um suspiro rendido, finalmente cedeu: — Não demorem por lá, ouviu?
Caminhamos jubilosos pela trilha de terra, passando pelo varal onde mainha estendia as roupas, até alcançar o riacho. Era o mesmo onde a água corria escura, mas serena e limpa, deslizando sobre pedras como dedos numa prece. Ali mainha lavava roupas, panelas, bacias, tudo da vida atravessava aquele leito. O som era de água e infância entrelaçadas.
Maria e Estevinho se arriscaram primeiro: pulavam, mergulhavam, tentavam nadar, cada qual mais desajeitado que o outro — braços e pernas se debatendo como peixes fora d’água. Fiquei à margem, pé molhado, olhos atentos à dança deles.
— Vem, está tão bom! — chamou Maria, sorriso aberto. — Tenho medo, ainda não sei nadar — confessei, pequena de coragem. — Eu aprendi a nadar depois de engolir uma piaba viva! — declarou Estevinho, a voz cheia de orgulho. — Eu também! — reforçou Maria, dando-lhe razão. — Eu quero! — disse Patrícia, com a mesma pressa de crescer. — Também quero! — alinhei-me à vontade deles, coração batendo.
Naquela mistura de verdade e crendice, Maria e Estevinho começaram, risonhos, a caçar piabas entre as pedras. Meus olhos acompanhavam, ansiosos, seu vaivém.
— Achei! — gritou Estevinho, exibindo o peixinho, escorregadio e vivo, reluzindo sol e água na palma da mão. Com olhos fechados, atendi ao ritual: engoli o peixe num gesto solene, acreditando cegamente que agora, enfim, aprenderia a nadar.
Mal o peixe se acomodou no fundo do meu estômago, já estava eu dentro d’água, testando coragem contra correnteza. Mergulhei, pernas dando chutes, braços tateando o mundo submerso, até sentir os pés atolados no barro do fundo. O riacho era raso, e talvez só ali, com a água esfriando meu medo, percebi que nenhum peixe me ensinaria: eu teria de aprender sozinha, com meus próprios gestos e tropeços.
O barulho da água, invasor nos meus ouvidos, embotava tudo, até que uma voz soou acima do murmúrio do riacho:
— Espera, alguém está chamando! — alertou Patrícia, pedindo silêncio súbito. Silenciamos, o coração aos saltos.
— Venham embora, meninos, já está na hora da mãe de vocês chegar! — ecoou o chamado da minha avó, firme, atravessando a margem.
Pulei mais uma vez na água — última celebração fresca do calor baiano — e, em bando, corremos até ela.
Nos enfileiramos, pingando na beirada da casa sob o olhar agora sério da vovó. Cabeças baixas, estudando os próprios dedos dos pés, já enrugados e cansados de tanto brincar. Levantei o olhar, buscando compaixão na voz dela, que conversava com Maria, a mais responsável.
— Vocês ficaram muito tempo na água...
— Não conta pra mainha! — insistiu Maria, as mãos ainda tremendo de frio enfiadas sob o queixo. — Não conta pra mainha, vovó! — reforçamos em coro, enquanto vovó, de mãos firmes na cintura, balançava a cabeça entre a ternura e o dever: — Uma hora ela vai descobrir… vão se secar! Ela apontou o dedo, já se voltando para dentro da casa.
Fui atrás dela, o corpo ainda úmido, sentindo a alegria grudada na pele. O cheiro bom da cozinha flutuava no ar, convite impossível de recusar.
— Não chegue muito perto! — avisou ela, manejando a lenha, alimentando o fogo do fogão.
— Sua mãe pediu pra eu cozinhar esse feijão — explicou, mexendo, com mão experiente, a grande panela que perfumava todo o ambiente.
— Como a senhora é habilidosa! Eu amo feijão! Mainha vai demorar, vovó? — Não, ela está quase chegando.
O atraso do tempo parecia derreter no calor da cozinha. Observei minha avó: o rosto iluminado pelo fogo, cabelos presos num coque baixo, a fumaça subindo, preguiçosa, até o teto de telhas de eternit. O calor se derramava sobre nós, tingindo tudo de sonho.
— Vovó, eu te amo! Ela riu, como quem não acredita na sorte de ser amada: — Essa menina quer me enganar… — Vocês sabem que eu também amo todos vocês — completou, ajeitando a colher —, mas por isso mesmo que eu insisto: é importante ouvir e obedecer ao que a mãe de vocês fala.
Saí da cozinha ainda pingando, ouvindo os risos que brotavam lá fora, à frente da casa. A bronca não afastou nossa alegria. A infância tem esse dom de transformar cada susto em milagre: tudo era encantamento — o mundo parecia tecido de magia, e sobre ele, nossa infância pulava, escorrendo vida e descobertas, feito água límpida de riacho.