O domingo amanheceu com cheiro de terra e promessa. Mainha nos convocou logo cedo, para ajudar na plantação de milho e amendoim — vozes e passos entrelaçados nos primeiros raios, mãos pequenas de criança ansiosa para colaborar.
— Coloca três sementes em cada buraco — ela ensinava, olhos atentos guiando os nossos desajeitados.
A roça era palco e sala de aula: dedos cheios de barro, cabelo recheado de vento, o cuidado paciente de mainha entre as linhas do milho e do amendoim. Ali, cada semente era esperança lançada ao solo, mistério de futuro pausado entre as mãos — herança antiga de quem aprende desde cedo o ciclo do alimento.
— Semana que vem a gente já vai estudar. Estou ansiosa! — sussurrava Maria, misturando o brilho do olho ao da manhã. — Sim! — respondemos em coro, a alegria bailando nas vozes.
Deise olhava tudo com fascínio e estranhamento; seria sua primeira vez na escola rural. Mainha avisava, sempre aflita: — Cuidado com a Deise no caminho. Não saiam da estrada, venham direto para casa.
O percurso era longo: caminhávamos cerca de uma hora até o outro lado da paisagem, cruzando matos e riachos para chegar ao destino dos cadernos.
— Cuidado com essa menina. Maria e Estevinho, que são maiores, cuidem dela — reforçou vovó, preocupação suave temperando a rotina.
Ao cair da tarde, voltávamos da roça cansados e felizes, prontos para o banho renovador. — Eu já aprendi a nadar! — anunciei, orgulho estalando no peito, logo atraindo os olhares dos irmãos. — Olha! — Aprendeu mesmo! — celebravam, jogando água para o alto, mãos em festa.
Corríamos, ainda ensopados, direto para casa, porque era hora do ritual mais aguardado: sentar em volta da pequena TV e assistir ao Domingão do Faustão com painho. Ali, cada risada abria espaço para a vida pulsar, mesmo sabendo que aquela caixa preta só funcionava quando ligada à bateria do automóvel. Mas bastava — bastava, porque éramos juntos, e juntos é sempre mais festa.
Embalados pela calma daquele lugar, a semana voou, nos olhos, a alegria transbordava, quase escapando pela beirada do rosto. Quando a novidade era muita, corríamos para contar à avó: — Vovó, vamos pescar! — gritei, chegando ao lado de Patrícia, o fôlego dançando na garganta.
— Vamos pescar no Rio São Pedro!
Nossa empolgação tinha justificativa: da outra vez, mainha não tinha deixado a gente ir com ela. Agora, equipadas de sonhos, seguimos lado a lado com nossos pais. Eu e Patrícia no centro, Estevinho, Maria e painho adiante, mainha por último, sempre vigiando o rebanho de filhos.
— Vamos ver se vocês aguentam — desafiava Estevinho, tirando sarro da nossa resistência. — Nossos braços são magros, mas somos fortes, né? — eu e Patrícia respondemos, cheias de bravura inventada.
O Rio São Pedro nos acolheu com seu convite líquido. Painho colheu cocos, aliviando nossa sede antes da pesca começar.
— Vamos! Eu e Estevinho seguramos a rede e vocês batem no canto para o peixe entrar — orientava mainha, sua voz misturada ao vento.
Mergulhei os pés, água fria subindo lenta pelo corpo, o receio de enfrentar uma cobra misturado à vontade de ser corajosa de verdade.
— Vai, Letícia, mais forte! — gritava Estevinho, torcendo do seu jeitinho torto. — Calma… — respondi, aprendendo a guardar o medo e ouvir a correnteza.
Maria iluminava a água com a lanterna na cabeça: — Olha o peixe! Puxa!
Quando vi os peixes, esqueci o medo — só pensava na chegada, no cheiro gostoso de peixe fresco. Voltamos para casa encharcados, arrastando os pés cansados, mas a alma acesa de alegria. Na cozinha, vovó já nos esperava com os temperos prontos para a moqueca. A fome era tanta que não dava para dormir antes do jantar.
Sentamos em volta da mesa, ouvindo painho contar para a vovó como foi nossa primeira vez na pescaria — sorrisos pontuavam cada palavra, e o aroma da moqueca inundava tudo com promessa de festa. O sono pesava.
A voz de mainha, serena, ecoava: — Comam com cuidado!
— Posso ir dormir, mainha? — pedia Maria, os olhos querendo fechar. — Não. Espera um pouquinho, vocês acabaram de comer.
O cansaço era tanto que mal vi quando o sono me levou.
O dia seguinte trazia um brilho diferente: nossos pais iam sair, e após a escola, ficaríamos sozinhos com vovó — o que era sinônimo de liberdade, de brincadeira com menos regra, de banho demorado e afazeres apressados. A gente vibrava por tê-la por perto, pois tudo ao redor ganhava magia. Quando as travessuras ameaçavam virar bronca, ecoava alto o nosso escudo favorito: — Vovó, não conta pra mainha!
E quase sempre ela sorria, cúmplice dos pequenos segredos.
Tinha teatro também:
— Alô, hoje eu vou no cabeleireiro — dizia Patrícia, com um telefone de papelão gigante entre as mãos. — Eu também, tchau! — respondemos, entre risos, “conversando” horas a fio naquele telefone imaginário, encantamento puro.
No fim do dia, deitamos todas debaixo do céu claro: — Hoje é o aniversário da vovó, né? Ela disse que nunca teve uma surpresa.
— Então vamos fazer! — pulou Maria, poeira dançando pelos tornozelos.
Arrumamos tudo. Maria, toda empolgada, cozinhou e fez o arroz em formato de bolo; eu e Patrícia separamos os pratos. Quando a noite caiu, fomos para a casa dela para fazermos nossas orações e esperar nossos pais.
Depois de cantarmos um pouco e conversarmos, combinamos:
— Vamos orar pela aniversariante.
Nossos olhos de quem estava aprontando se cruzaram, cúmplices. Eu e Patrícia estávamos orando quando Maria entrou na sala, trazendo a comida e os pratos. Ao passar, esbarrou na Patrícia, fazendo barulho, e um sorriso escapuliu. A vovó quase abriu os olhos para olhar.
— Não acabou a oração ainda, senhora! — disse Patrícia, tapando o rosto da vovó com as mãos pequenas.
— Surpresa! — gritamos juntos, rindo com alegria verdadeira.
— Vovó, a senhora nunca recebeu uma surpresa mesmo? — perguntou Deise, enquanto ela colocava o prato.
— Não… a gente nunca ligou muito pra isso — respondeu vovó, doçura estampada no olhar antigo, como quem revela uma verdade sem mágoa, só um costume herdado do tempo.
— No ano que vem, a gente vai fazer um bolo de verdade com o dinheiro do milho, vovó — comentou Estevinho.
Enquanto comíamos o arroz de aniversário com carne-seca, aquela comida simples, mas temperada de festa, aproveitei o sorriso suave de vovó, absorvendo a cumplicidade rara dos meus irmãos naquele breve instante. O desejo era simples: vê-la feliz, torcer para que ela não contasse nossas travessuras para mainha — um segredo partilhado entre netos que conhecem a generosidade dos silêncios da avó.