— Você precisa comer, Letícia — ouço uma voz rompendo o silêncio de horas, no quarto escuro, meu travesseiro estava encharcado de lágrimas; a vida ali fora parecia distante, e minha mente, presa no passado, vasculhava lembranças felizes para me arrancar do pesadelo líquido do presente. Eu já não era uma criança. Nem dividia mais o teto com meus irmãos. Estava com dezoito anos e morava longe — longe da roça, dos gritos e das brincadeiras; longe do sol escaldante, do cheiro de café e da música antiga do rádio; bem longe da terra molhada e das gargalhadas. Eu estava em São Paulo, para ser exata, bem distante daquele lugar que ainda chamo de lar.
— Não… eu não quero comida — respondi entre soluços, o rosto afundado no escuro, percebendo uma tênue luz invadir a sombra. A dor, afiada e funda, martelava a certeza dura: nada, nunca, voltaria a ser como antes.
Verônica insistia, também chorando, as mãos se movendo suaves e trêmulas em minhas costas. Eu estava virada para a parede, mas o som entrecortado de sua voz denunciava: ela também carregava um pouco da minha dor.
— Mas você precisa comer — repetiu, abafada, quase num sussurro.
— Daqui a pouco eu vou, prometo — respondi baixinho, apenas para que ele fosse embora e eu pudesse seguir sofrendo sozinha, sem testemunhas.
Depois que a porta se fechou e restou apenas o tiquetaquear do relógio, agarrei o celular, pesquisando de olhos molhados passagens de São Paulo para Bahia. Os preços eram impossíveis, brutais — mais uma distância entre mim e o adeus. Mordi o cobertor como uma criança perdida, gesto inútil e urgente.
O telefone tocou, rasgando o quarto em dois.
— Letícia, como você está? — tia Kinha, aflita do outro lado da linha.
— Eu não vou conseguir, tia… Não vou conseguir ir… — repetia, o rosto pegajoso recebia mais lágrimas escorrendo tristeza.
— Calma, meu bem… — Ela, do outro lado, tentava juntar os cacos, mas a distância era mais larga que o mundo. Trocamos palavras cegas, e logo o silêncio retornou, mais pesado, tapando a esperança.
Assim fiquei: sozinha, entre um passado que me chama com dedos frios e um presente lento, penumbra cheia de ausências. O peito doía num ritmo estranho, como se a infância, agora escondida sob a pele adulta, latejasse chamando por nomes antigos, por risos que não cabem mais nos dias. Cada batida do meu coração desenhava rachaduras invisíveis, ecos do tempo onde as vozes amadas cresciam como ervas miúdas na margem do silêncio.
Do lado de fora — a vida prosseguia, indiferente ao luto íntimo que me vestia por dentro, como véu negro e úmido. As paredes do quarto se encostavam em mim com sombras compridas, e o ar pesava uma saudade sólida, impossível de aparar. Senti no peito a densidade gasta do tempo, as perguntas mudas do céu antigo, o murmúrio inventado do vento atravessando a janela entreaberta.
Havia um mistério em tudo: como se a dor, espessa e irretratável, trouxesse consigo antigos segredos esquecidos pela casa, vestígios de risos empoeirados, sussurros de sonhos que se roubavam durante a noite. Em certos momentos, parecia ouvir o ranger miúdo das tábuas — lembranças espreitando à beira da realidade. Lá fora, a vida prosseguia alheia, mas dentro de mim era sábado de chuva, uma espera calada, um tempo que não passa.
Na solidão daquela hora, eu era tragada por uma névoa que misturava o já vivido ao impossível de esquecer, atravessando o corpo com o peso doce e cruel da saudade.