O fardo da dor que carregava dentro de mim era, aos poucos, aliviado por aquelas memórias. Sabia que não apagariam o sofrimento, mas suavizavam a ausência — mesmo assim, nada era capaz de me fazer esquecer que jamais a veria novamente. Pergunto-me, em silêncio: — Como é que se diz adeus? Terão sido suficientes os longos abraços que dei? E os milhares de “te amo” que repeti ao decorrer dos anos ao seu lado — será que bastaram? E se, um dia, minha memória me trair e eu esquecer seu rosto, suas histórias, sua voz? O pensamento foge, galopando por territórios de dúvidas, enchendo-me de perguntas sem respostas. E logo me percebo entregue, submersa, à correnteza das lembranças da minha doce infância.
Aos sopros dessas memórias, deixei-me atravessar pela tarde, navegando entre cenas antigas. Quando a imaginação voava alto — e nós íamos junto com ela.
— Eu sou um morcego! — Patrícia gritava, de cabeça para baixo, cabelo varrendo o ar. — Cuidado! — Maria alertava, o olhar atento e protetor de irmã mais velha. — Eu amo nosso brinca-brinca — dizia Deise, contemplando ao redor, como se naquele instante coubesse todo o nosso universo.
Ali, entre vozes infantis e a luz filtrada pelas folhas, o tempo era leve — e a saudade, por um segundo, quase esquecida.
— Vamos comer eugênia?! — o convite escapou leve dos meus lábios, e Maria disparou em corrida, sem esperar por qualquer resposta.
— Mas eu não posso — disse Deise com um suspiro contido. — Mainha me proibiu… Da última vez que comi, passei mal.
— Vamos dar um jeito — segurei o braço de Deise e corremos juntas, coração pulsando com a expectativa do proibido.
Cruzamos o quintal, passando pela mainha e as visitas, que sorriam devagar sob a sombra do pé de manga. Junto com Patrícia e Deise, avancei tentando não chamar atenção, mal cabendo em mim a ansiedade da travessura.
Pegamos uma lona preta, encobrimos Deise e começamos a colher eugênias; era ritual secreto, sorriso cúmplice, passado de mão em mão no silêncio da tarde. O doce da fruta se misturava à adrenalina da desobediência, enquanto oferecíamos a Deise algumas, disfarçando o sabor aos olhos de mainha.
Depois de alguns minutos, sentamos perto dela, nossas vozes baixas e o tempo dormente ao redor. — Será que a vovó vai demorar para voltar? Ela está morando em Camacan faz alguns dias — perguntou Deise, olhos perdidos no horizonte.
— Acho que não, ela faz muita falta… e a comida dela também — comentei, lembrando do tempero único, do cheiro que preenchia a casa inteira.
De repente, um gemido suave, Deise apertou a barriga, se encolhendo na lona. Eu e Patrícia nos entreolhamos, olhos arregalados, o medo surgindo entre nós como um vento súbito.
— Meu Deus! Tu comeu…
— Deise comeu eugênia? — Mainha já vinha, furacão, voz erguida em sentença.
— Sim, ela comeu — confessamos, sem coragem para negar o óbvio.
Mainha pegou Deise pelo braço, apressada, e logo chamou Patrícia. As duas foram arrumadas, preparadas para partir. A carona improvisada com as visitas, o destino: hospital em Camacan.
Fiquei só, a adrenalina cedendo espaço ao vazio. A tarde se arrastou mansa, e a sensação de que algo estava faltando me abraçava — o quintal parecia maior, o silêncio mais fundo, o gosto da eugênia já distante, como uma saudade precoce que se espalha no corpo inteiro.
— Vou sair. Pega a roupa que sua mãe pediu e recolhe o cacau — disse painho, mãos penduradas na janela, o rosto perdido na luz que já se desfazia.
Olhei para Maria, surpresa. Anoitecia lá fora, a sombra da mata crescendo no quintal. Sozinhos? Nunca havíamos ficado assim, só nós, sem o refúgio dos braços de nossa mãe ou o afago da vovó. O silêncio parecia mais denso. Assim que painho se afastou, um peso inquieto se espalhou pela casa.
Olhei para os quatro cantos da fazenda. Por mais que os meus olhos procurassem por abrigo, não vi nada além de mata — cerrada, escura, balançando forte ao sopro do vento. Eu, Maria e Estevinho sentíamos o medo subindo devagar, como uma friagem pelas pernas. Bastou um ruído estranho, e nossos olhos se encontraram, arregalados. Corremos para fora, coração aos pulos, buscamos a roupa e o cacau estendidos na lona amarela, os braços atrapalhados, dedos ansiosos. Mal reunimos tudo, corremos de volta e, num só gesto, trancamos portas e janelas, selando a casa contra fantasmas e segredos da noite.
Ficamos ali, um tempo, na luz fraca da vela, sentindo o medo gritar baixinho no peito. Lá fora, os sons se multiplicavam — o vento, os galhos, talvez algum animal, talvez nada. Até que passos — passos ou seriam apenas batidas do nosso coração? — começaram a se aproximar da casa. Maria apagou a vela. Num segundo, corremos até nosso quarto, o escuro agora inteiro e íntimo. Nos atiramos juntos na cama estreita: eu, Maria, Estevinho, disputando cada canto, cada centímetro de conforto, cada raio de coragem.
De repente, senti uma mordida nas costas. Dei uma cotovelada no Estevinho, mistura de susto e protesto abafado. O som de fora se dissipou, ficou apenas o barulho dos nossos suspiros, os corpos quentes e juntos, naquela noite que parecia eterna.
Os minutos passaram lentos. Quando o medo começou a ceder, rimos baixinho entre nós — riso tenso, meio chorado, até que o sono veio, levando consigo os últimos traços da noite e prometendo, em silêncio, que juntos sempre seria menos assustador.