Ninguém esperava que eu aparecesse aqui. Consigo ver isso nas expressões surpresas nos rostos das pessoas quando me vêem cruzar a porta da igreja lotada, vestindo um vestido preto, e me sentando no último banco, sozinha, no meio do discurso fúnebre. Para ser sincera, até esta manhã, nem mesmo eu sabia que viria até aqui. Não pretendia prestar nenhum tipo de condolência pelo morte de Noah Thompson. Mas depois de passar a noite inteira revirando na cama, tentando deixar essa história toda para lá e seguir em frente, concluí que eu precisava estar aqui. Mais do que isso, eu merecia estar aqui, não por ele, mas por mim mesma. Queria me despedir de toda a ilusão, das memórias felizes e dos olhos azuis encantadores que achei conhecer tão bem, mas que faziam parte de uma pessoa que nunca existiu de fato.
Tento não olhar para os lados, mas consigo sentir a pressão de saber que estou sendo assistida por todos, e que o burburinho que se instaura no ambiente é sobre mim, a garota que quase foi assassinada pelo namorado psicopata. "Por quê ela está aqui?", "Não achei que ela viria.", "Talvez precise de um ponto final.", "É corajosa. Se fosse eu, jamais apareceria aqui.", "Talvez queira que a família do garoto a olhe nos olhos e peça as desculpas que o filho nunca vai poder pedir.", "É revoltante o que ele fez com essa garota.".
Sinto-me como um animal de zoológico sendo observada por todos por trás das grades, a uma distância segura. Ninguém se atreve a entrar na jaula para cutucar a fera, é claro. Não sabem o que poderia acontecer, mas sabem que nada de bom poderia vir disso. Então apenas engulo em seco e forço a mim mesma a fingir que não é comigo, enquanto me esforço internamente para não ceder à pressão externa. Estou aqui por um motivo, e ninguém precisa saber qual é ele, porque meus sentimentos conflituosos em relação a morte de Noah não são da conta de ninguém.
Fixo os olhos na fotografia de Noah, sorrindo em um barco, sob um sol escaldante e uma praia de águas azuis cristalinas ao fundo, possivelmente de férias com a família. Parece o garoto por quem me apaixonei, e não aquele que fez todas as coisas horríveis que fez em segredo, e em seguida tentou me matar. Me causa até uma sensação estranha, como se esse tempo todo que vivi ao seu lado não tivesse passado de um sonho. As memórias não parecem reais. Nem mesmo o agora parece real. De repente sou tomada por uma sensação de despersonalização, como se nada disso estivesse realmente acontecendo, e tudo ao meu redor se torna apenas cenas de um filme que estou assistindo, e não participando.
Quando estávamos juntos, eu me sentia sortuda por, dentre todas as garotas que o admiravam no colégio, Noah ter escolhido a mim. Às vezes me perguntava o porquê de sua escolha, mas nunca em voz alta. Tinha medo de que, se perguntasse em voz alta, ele começaria a pensar demais sobre isso, até perceber que sua escolha de estar comigo, na verdade, não fazia muito sentido, e então iria embora. Hoje vejo que isso sim, seria sorte. Ter sido escolhida por Noah não era sorte. A sorte, na verdade, era de todas as garotas que não foram escolhidas por ele, e não precisam estar aqui essa manhã para se despedir de um monstro que as arruinou por dentro. Todas aquelas garotas que nunca tiveram a chance de sentir tanto os lábios quentes de Noah Thompson contra os seus, quanto suas mãos enroscadas brutalmente em seu pescoço, casualmente te assistindo caminhar para a morte.
A cerimônia dura cerca de uma hora e meia. Quando termina, após um padre careca e de feições amigáveis fazer um discurso pouco verídico sobre a vida e marca que Noah deixará para as pessoas ao seu redor, todos se levantam para cantar uma canção fúnebre meio deprimente que parecem saber de cor, mas eu nunca ouvi antes. Talvez seja um bom sinal: significa que não estive em funerais o bastante para saber a letra da música, como os outros.
Mantenho-me em silêncio, praticamente imóvel, encarando fixamente o caixão enquanto ele é fechado e começa a ser levado por uma portinha até os fundos da igreja. Mesmo sentada a uma distância razoável, consigo ouvir uma mulher colapsando diante da cena. Não a vejo, mas pelos gritos agudos de dor e desespero, suponho que seja a mãe de Noah. Há uma comoção na igreja diante disso, como se todos quisessem de alguma forma, abraçá-la, numa tentativa inútil de oferecer amparo em meio à dor da perda de seu filho. Eu, por outro lado, respiro fundo e tento me manter discreta no banco dos fundos, torcendo para que seu sofrimento a impeça de me ver aqui quando passar por mim, porque de repente me sinto mal de ter vindo. Talvez, olhar para mim a lembre de que eu sou parte da razão para seu filho estar morto agora. Não que seja minha culpa, exatamente. Sou responsável por todas as escolhas que fiz até aqui — as boas, e as ruins —, mas certamente não sou responsável pelas escolhas de Noah. Ainda assim, quando vejo sua mãe reunindo todas as suas forças para se colocar de pé e caminhar pelo corredor da igreja, porta afora, apoiada em Theo e em seu marido, sou invadida pela maior culpa do mundo simplesmente por estar aqui, ainda viva, apesar de saber que isso não faz sentido.
Os olhos de Theo passam por mim rapidamente, mas voltam logo em seguida, como se não acreditasse que estou mesmo aqui e precisasse confirmar novamente. Ele continua oferecendo apoio à mãe enquanto caminha para fora da igreja, mas os olhos ficam pairando sobre mim durante alguns instantes, acinzentados como um dia nublado, mas parecem cristalinos como vidro em contraste com o terno preto que está usando. É a primeira vez que o vejo de terno, e apesar de não ser nenhuma surpresa, o visual lhe cai muito bem.
Para o meu alívio, os olhos da mãe nem sequer notam a minha presença, porque parecem desconectados da realidade, inchados e vermelhos por causa das lágrimas. Já os olhos do pai, severos, parecem não querer me dar a satisfação de reconhecer que estou aqui, apesar de claramente ter me visto.
Apesar do meu sentimento de revolta em relação à Noah, abaixo a cabeça em sinal de respeito quando seus pais passam por mim, porque é a única coisa que posso tentar oferecer agora.
Caminho atrás da multidão espalhada pela rua, todos vestidos de preto e andando cabisbaixos e silenciosos em direção ao cemitério, mais em respeito à perda da família Thompson do que em respeito ao defunto, de fato. A notícia que corre pela cidade, e, talvez até pelo estado, é a de que Noah matou Dylan e Colin (o motivo ainda não se sabe ao certo), e, quando eu descobri sobre o que fez, tentou me matar também. Na semana anterior, dezenas de repórteres tentaram falar comigo, com minha família e com minhas amigas no hospital. Quando não conseguiram, passaram alguns dias acampando na frente da minha casa, fazendo perguntas do lado de fora cujas respostas eu ainda devia aos meus pais, do lado de dentro. Mas os meus pais decidiram facilitar as coisas para mim por julgarem que eu ainda estaria abalada com toda a situação, apesar de pararem na porta do meu quarto pelo menos quatro vezes ao dia para perguntar como estou me sentindo, ou para me oferecer alguma coisa para comer.
Durante o enterro, mantenho-me a uma distância segura da cena toda. Theo permanece imóvel, assistindo o caixão com o corpo do irmão ser baixado às profundezas da terra. A mãe cobre o rosto inchado e vermelho pelas lágrimas com as mãos, incapaz de encarar a realidade diante de si. O pai de Noah parece zangado com o fato de que não existe nada que ele possa fazer para trazer o seu filho perfeito de volta. O único filho que parecia lhe causar orgulho agora está morto, e ele sabe que terá de se contentar em ser apenas o pai de Theo. É um homem desprezível e arrogante.
No entanto, conforme o caixão desaparece da minha vista, sinto a melancolia abrupta de ser forçada a me despedir da vida de alguém que conheci. Não achei que choraria, mas sinto algumas lágrimas rolarem pela minha bochecha involuntariamente, porque, no final das contas, meus ossos não são feitos de ferro. No fim, quando tudo se encerra e a terra termina de cobrir o caixão, as pessoas, aos poucos, lenta e discretamente, começam a se espalhar pelo cemitério, voltando para suas vidas normais. Algumas esperam por mais tempo, incapazes de partirem enquanto assistem uma mãe se debulhar em lágrimas por ver o filho partir. Não que exista algo que qualquer um possa fazer por ela neste momento, apenas parece rude dar as costas para a cena como se não fosse nada demais.
— Como se atreve a aparecer aqui? — Uma voz irrompe do meu lado, enquanto me distraía com a mesma coisa que todos. Quando viro o rosto, me deparo com Richard Thompson, furioso como um touro bufando, o rosto vermelho de raiva e um dedo acusador vindo bem na minha direção.
— Pai, pare com isso! — Theo fala atrás dele, tentando conter a fúria do pai, em vão.
— Você deveria estar na cadeia pelo que fez com o meu filho! — Exclama ele, irado.
Sinto os olhares das pessoas que já iam embora se voltando para nós de repente, todas parecendo dispostas a ficar mais um pouco para a segunda parte desse show de horrores. Olho ao redor, e todos parecem perplexos com a situação, mas não se atrevem a se intrometer entre nós. De longe, ainda consigo enxergar por entre a multidão que a mãe de Noah permanece ao lado do túmulo do filho, mas agora todo o foco se desviou para nós. Ao menos a pobre mulher pode ter um pouco de privacidade nesse momento.
— Do que você está falando? — Indago, perplexa com o fato de que ele acha mesmo que eu fiz alguma coisa a Noah quando as marcas que o filho dele deixou no meu pescoço enquanto tentava me matar ainda estão bem visíveis e doloridas.
— Devia se envergonhar de estar aqui! — Ele grita, aproximando o rosto do meu, quase como se estivesse prestes a terminar o que Noah começou. Pelo seu hálito, noto que com certeza deve estar bêbado, o que não é um bom sinal. Dou um passo para trás, hesitante.
Mesmo que a cena diante de todos seja a de um homem adulto enorme se aproximando com brutalidade de uma garota adolescente franzina, a princípio, ninguém tenta afastá-lo de mim, exceto Theodore. Quando percebe o crescente risco, ele envolve os ombros do pai com o braço, puxando-o para trás e o afastando de mim, o que parece revoltar Richard Thompson ainda mais, porque, como uma criança birrenta que não consegue o que quer, ele começa a se debater nos braços do filho, numa tentativa incessante de se desvencilhar e partir para cima de mim.
Já vi Theo separar uma briga antes, e ficou claro para mim que não é o tipo de coisa com a qual ele tem dificuldade. Mas o pai, igualmente alto e nitidamente alterado, parece fazer de tudo para tornar a contenção de Theo inútil.
— Você é um monstro! — Ele vocifera para mim, apontando como se fizesse questão de que todos ao redor soubessem que é de mim que ele está falando. — Você é quem deveria estar morta!
— Já chega, pai! — Exclama Theo, colocando-se entre nós, quando se dá conta de que puxar o pai na direção oposta não está sendo o suficiente.
Richard é forçado a se afastar quanto o filho praticamente o empurra para trás. Está ofegante, mas não parece estar mais calmo. Ele olha para Theo dos pés à cabeça, com desprezo. Consigo ver os músculos das costas de Theo se enrijecerem, como se estivesse pronto para um possível confronto físico.
— Vai defendê-la? Depois do que ela causou ao seu irmão? — Indaga o homem, inconformado com a atitude do filho.
Theo balança a cabeça como se isso não fizesse sentido algum.
— Ela não causou nada a Noah. Ele fez as próprias escolhas que o fizeram ter o fim que ele teve. — Argumenta, embora seja inútil. Seu pai parece convencido de que a responsabilidade do acontecimento é toda minha.
Richard solta um riso de escárnio, passando a mão na barba por fazer.
— Por favor, a única razão para estar defendendo essa ninfetinha porque se apaixonou por ela, e só a quis porque Noah a quis primeiro! Deveria se envergonhar também! Talvez vocês dois se mereçam, no fim das contas. — Não vou mentir: o adjetivo me ofende. Não é como se fosse verdade, mas mesmo assim. Theodore, no entanto, permanece imóvel e calado na minha frente, como se não se abalasse pelas palavras do pai. — Você me dá nojo, Theodore. — Ele prossegue. — Nunca pensei que viveria para ver a morte do único filho que me dava orgulho, e teria que passar o resto da minha vida me contentando com você, como ela vai fazer! — Ele exclama por fim, tornando a apontar para mim.
Não sei exatamente o que despertou a raiva até então adormecida em Theodore. Tudo o que sei é que, assim que o homem termina de proferir as últimas palavras, a mão de Theo se fecha em um punho e o atinge em cheio no rosto, com força e velocidade impressionantes, de modo que ninguém foi capaz de prever seu movimento a tempo de impedi-lo. Richard tomba para trás, caindo sobre a grama do cemitério, entre os pés das pessoas curiosas que se aproximaram de nós, mais para assistir ao espetáculo do que para ajudar de alguma forma.
— Seu desgraçado! — Ele grita do chão, o nariz jorrando sangue. Quando faz menção de se levantar para revidar o golpe, Theodore se inclina e o empurra de volta ao chão, desferindo mais alguns socos contra o pai, assegurando que ele fique lá por mais algum tempo. — Você está morto para mim, ouviu? — Richard Thompson esbraveja do chão, revoltado, enquanto os curiosos finalmente tem a decência de ajudá-lo a se colocar de pé.
— Eu sempre estive, não é? — Theodore grita de volta para o pai, antes de se voltar para mim, colocando a mão em minhas costas e me guiando para longe de todo o caos no qual estávamos envoltos, quase como um segurança, até estarmos distantes o suficiente da multidão para que todas as vozes se tornem apenas um ruído indistinguível.
Não consigo decifrar exatamente quais emoções Theo parece estar sentindo no momento, mas a expressão em seu rosto é a mais séria que já vi nele antes. Paramos sob a sombra de uma árvore, no canto oposto do cemitério, observando as pessoas curiosas ao redor de Richard Thompson, o auxiliando como se ele fosse a vítima aqui, enquanto outras passam direto por ele, sem se importar em parar para entender a situação ou ajudá-lo. Aos poucos, a maioria delas começa a se espalhar, desaparecendo portão afora, até que o cemitério torne a ficar vazio, com a exceção de outras famílias enlutadas diante dos túmulos de seus entes queridos.
— Sinto muito pelo meu pai. — Ele diz, então.
Franzo o cenho, confusa. Não sei ao certo pelo que Theodore está se desculpando, afinal, se não estivesse lá para me defender, nem sei o que teria acontecido.
— Não foi culpa sua.
— Mesmo assim. — Responde, fixando os olhos sobre mim.
Cruzo os braços, sem graça sob seu olhar.
— Você está bem? — Pergunto, de repente. A pergunta soa estúpida assim que deixa a minha boca. Quem estaria bem nessa situação?
Theo dá de ombros e balança a cabeça, como se isso não importasse muito.
— Vou ficar.
De repente me dou conta do que Theo pode estar sentindo nesse momento. Ele provavelmente não admitiria isso, mas se sente quebrado. Se sente novamente como um problema, como se sentiu durante toda a vida. Bem quando suas feridas já pareciam estar cicatrizando, seu pai vem e as perfura de novo, as fazendo jorrar sangue. Theo se mantém quieto, tentando lidar com suas emoções sozinho, como se ainda fosse um garotinho solitário de catorze anos, indesejado por todos ao seu redor, graças às palavras do pai, o que aumenta o enorme desprezo que eu já sentia pelo homem. Gostaria de abraçá-lo até que ele se sentisse amado, completo e suficiente, mas talvez isso não seja bom o bastante para parar sua dor neste momento. É complicado demais.
Não sei bem o que dizer para fazer com que Theodore se sinta melhor, o que deve ficar visível em minha expressão, porque logo ele muda de assunto:
— Não achei que você viria. — Ele admite. Não parece chateado ou irritado em me ver aqui, apenas surpreso.
Assinto.
— É, ninguém achou. Acho que eu não deveria ter vindo, mesmo. É estranho estar aqui. — Admito, olhando para além dele.
— Acho que te conheço bem o bastante a essa altura para saber que ia se arrepender se não viesse.
Sorrio.
— É, talvez. — Dou o braço a torcer. — É que... eu não queria causar uma cena ou ofender os seus pais em um dia tão difícil ao vir até aqui. — Sinto a necessidade de esclarecer.
Ele balança a cabeça como se essa ideia nunca tivesse lhe ocorrido, nem por um segundo.
— Tem o direito de estar aqui, Liz. Não tem culpa de Noah ter tentado te matar, e não tem culpa de ter sobrevivido.
Suspiro. Sei que ele tem razão, e sei que está sendo sincero sobre isso. Mas ainda assim, depois de tudo, não parece que eu deveria ter vindo.
— Sabe que a minha mãe não te culpa pelo que aconteceu, não é? — Ele fala, de repente, como se pudesse enxergar através de mim.
Abaixo a cabeça, encarando os meus próprios pés. Meus sapatos estão sujos de lama. Vou precisar lavá-los quando chegar em casa.
— O seu pai, sim. — Rebato.
Theo balança a cabeça.
— Não se preocupe com isso. Não tem que ligar para o que ele pensa.
Levanto os olhos para ele, observando o seu rosto. Ele parece ainda mais cansado do que quando foi me visitar no hospital há alguns dias, com olheiras roxas sob os olhos. Suponho que esteja cuidando de todas as burocracias que envolvem a morte de Noah, já que os pais não parecem estar lidando com isso muito bem. Ainda sim, Richard Thompson, o enorme babaca a quem Theodore chama de pai, o faz sentir como se ele não valesse nada. Odeio isso.
Suspiro, de braços cruzados.
— É, tem razão. — Concordo. — E você também não.
A frase parece surtir algum tipo de efeito sobre ele, porque fica em silêncio por alguns segundos, como se ponderasse a respeito de aceitar o meu conselho ou não. Por fim, ele apenas sorri, sem graça.
De repente, olhos de Theo descem até o meu pescoço, para os hematomas roxos e esverdeados deixados ali por Noah. Vejo uma pequena ruga se formar entre as suas sobrancelhas. Quase como se não pudesse conter a si mesmo, ele leva as pontas dos dedos até as manchas, tocando-as suavemente, como se temesse me machucar. Sinto um arrepio percorrer todo o meu corpo sob o seu toque, mas não me movo. Ele parece horrorizado, como se estivesse assombrado por uma imagem mental e bem gráfica das mãos de Noah envoltas em meu pescoço com tanta força e raiva, que foi capaz de deixar as marcas de seus dedos em mim.
Theo engole em seco, afastando as mãos como se de repente voltasse para a realidade.
— Sinto muito que isso tenha acontecido com você, Liz. Não merecia passar por nada disso.
Olho para ele, sentindo lágrimas brotarem em meus olhos, repentinamente emotiva, apesar de toda a raiva que vinha sentindo de Noah até agora. Há algo sobre Theodore que me faz sentir como se estivesse em casa o tempo todo, o que às vezes desencadeia o tipo de emoção que você só demonstraria em casa, em um ambiente seguro. Mas de algum modo, estou em casa se estou aqui com ele. Por isso, desabo a chorar como uma criança, correndo para dentro de seu abraço. Afundo o rosto em seu tórax, ouvindo seu coração pulsar acelerado, e por um segundo ele não sabe bem o que fazer, como se sentisse que precisasse dizer algo em um momento como esse, mas nenhuma palavra lhe parecesse suficiente para amenizar a minha dor. Então, por fim, decide não dizer nada, apenas envolvendo-me com força, em um abraço terno e reconfortante.
Após alguns minutos de completa vulnerabilidade, me afasto lentamente de Theo. Talvez devesse me sentir envergonhada, mas não me sinto.
— Sinto muito por sua perda. — É só o que ele fala, no fim das contas. É a primeira pessoa a me dizer isso hoje. As pessoas devem achar que condolências não se aplicam ao meu caso, porque Noah tentou me matar. Mas não é como se eu não tivesse perdido nada. Eu perdi alguém, ainda que fosse apenas a ideia de alguém que achei que existia.
Ajeito o cabelo atrás da orelha e limpando as lágrimas que escorreram pelo meu rosto como uma cachoeira.
— Sinto muito pela sua, também. — Digo, fungando.
Ele balança a cabeça.
— Nós dois sabemos que você perdeu muito mais do que eu.
Sei que agora ele não está falando agora do garoto que tentou me matar, e sim do garoto amável que Noah se esforçava em aparentar ser, e parece haver um consenso silencioso entre nós de que essas são duas pessoas completamente diferentes.
— Mesmo assim. — Respondo, e ele me lança um sorriso gentil.
Em meio ao silêncio que cresce entre nós, fico encarando o túmulo de Noah, à distância. Agora que está vazio, parece mais real. Durante o enterro, não tive coragem de me aproximar, o que se provou uma boa ideia, no final das contas. A última coisa de que gostaria é que Richard decidisse causar um showzinho em meio à despedida final de Noah. Isso, sim, seria embaraçoso.
— Quer ir até lá? — Pergunta Theo, seguindo o meu olhar.
A pergunta me pega de surpresa. Hesito por um instante, mas no fim, assinto, aceitando, caminhando atrás dele.
"Noah Leonard Thompson, filho amado", leio sobre a lápide assim que me aproximo. Só estou descobrindo agora que os seus dezessete anos de vida foram brevemente resumidos a "filho amado". Foi o melhor que ele pode fazer com o curto tempo que teve.
Agora que estou aqui, de pé diante do túmulo de Noah Thompson, percebo a inutilidade de tentar me agarrar a qualquer tipo de sentimento que o mantenha vivo em minhas memórias.
Minha terapeuta diz que a raiva é a melhor saída de escape para o sentimento de luto. Nunca disse isso a ela, mas não sei se isso é mesmo verdade. O luto nada mais é que o vazio causado por uma perda. Preencher esse vazio com outro sentimento — especialmente um sentimento tão forte como a raiva — não me parece ser um bom indício de superação. É como a linha tênue entre o ódio e o amor. A maioria das pessoas acham que são sentimentos muito distantes e opostos, mas na verdade, o ódio pode ser muito semelhante ao amor em alguns aspectos. Há uma quantidade consciente de energia e tempo que se desprende sobre a outra pessoa em ambas a situações, de modo que, o ódio, a qualquer momento, poderia se tornar amor, em uma terça-feira qualquer em que você passa a encarar a pessoa de um outro ângulo. Talvez, no fundo, ambos sejam fruto da mesma coisa: algum tipo de admiração. Da mesma forma, substituir o luto pela raiva não me parece ser um grande progresso. O progresso da superação sentimental só começa a surgir a partir da indiferença. E então me dou conta de que estou pronta para aceitá-la. Não há sentido em tentar entender, ou manter qualquer tipo de ressentimento sobre ele, no fim das contas, porque a existência de Noah chegou ao fim, então me dou conta de que deixá-lo vivo em minhas memórias, ainda que seja para manter aceso o sentimento de raiva que me dá combustível para seguir em frente em meio à esse confuso luto, já não faz mais sentido algum.
— Filho amado. — Theodore lê sobre a lápide, quase como se achasse graça do título escolhido. — Me pergunto o que vão escrever na minha. — Brinca. Ou talvez seja um questionamento sério, e até mesmo válido. Se, para os seus pais, Noah era o filho amado, o que sobraria para Theo aos seus olhos?
Curvo os lábios para baixo.
— Bom, acho que você ainda vai ter a chance de ser muitas coisas além de apenas filho. — Falo.
— Tipo o quê? Bom vizinho? — Indaga ele.
— Ou então, jogador de boliche mediano. — Sugiro.
Theo abaixa a cabeça, envergonhado.
— Isso foi golpe baixo.
— Baixo como a sua pontuação no boliche? — Provoco ainda mais.
Ele ri.
— Que tal deixarmos de fora o quão ruim eu sou no boliche? Acho que prefiro o lance do bom vizinho.
Dou risada.
— Tudo bem. Podemos manter isso em segredo, então. Não vou contar a ninguém. — Prometo.
Viro o rosto para ele, apenas para encontrar os seus olhos cinzentos fixos sobre mim, com um tipo de olhar que, até então, só tinha visto em filmes de romance clichê.
— O que foi? — Pergunto, sorrindo enquanto sinto minhas bochechas corarem.
Theo dá de ombros.
— Nada, eu só... gosto dos seus olhos. Eles mudam de cor o tempo todo, sabia? Agora estão esverdeados, mas no sol ficam castanhos. — Observa. — São bonitos.
Permaneço estática, sem saber o que dizer enquanto ele me observa como quem acabou de descobrir algo importante sobre si mesmo, ou algum segredo sobre a vida que todos estão procurando por aí. Seus olhos brilham como se tivesse encontrado um tesouro. Como se pudesse ver em mim a pessoa com quem gostaria de passar o resto de seus dias, e, droga, como eu gostaria de ser essa pessoa!
Engulo em seco, me perguntando se ele ainda ficaria se soubesse quem eu sou de verdade. Se ainda iria olhar para mim desse modo se soubesse de todas as coisas terríveis que eu fiz. Gostaria de ser a garota que ele vê em mim. Ela parece legal. Muito melhor do que eu.
— Posso te levar para a casa? — Ele pergunta, por fim.
Inclino o rosto para trás, desconfiada.
— Bom, isso depende. — Digo. — Quando você diz "casa", quer dizer minha casa ou o seu quarto? — Provoco.
Ele abaixa os olhos e abre um sorrisinho malicioso.
— Vou deixar essa escolha ao seu critério. O meu quarto está sempre à sua disposição. — Responde, com um sorrisinho cafajeste. — Na verdade, ele me disse que até sente sua falta por lá.
Dou risada, envergonhada.
— Diga a ele que não pretendo voltar tão cedo.
Theo curva os lábios para baixo, como se tivesse acabado de receber más notícias.
— Está ficando abusado, Theodore. — Falo.
Ele dá de ombros, como se isso fosse um elogio.
— É o meu charme.
Aperto os olhos.
— Engraçadinho. Pode me levar para a minha casa.
— Tem certeza? Você pode até ficar com a minha cama. — Ele provoca de volta.
— Theo! Isso não tem graça.
Ele sorri como se discordasse disso e achasse muito engraçado, na verdade, o que inevitavelmente, me faz sorrir também. Por fim, caminhamos juntos até o seu carro estacionado no fim da rua.
De alguma forma, Redgrove parece estar de luto, também. O céu está cinzento, avisando que uma densa chuva cairá sobre nós a qualquer momento. As árvores parecem sem vida e sem cor, e as janelas das casas estão fechadas, como se todas elas estivessem abandonadas. Tudo parece ainda mais deprimente do que o usual.
Dentro de poucos minutos, Theo estaciona o carro em frente a minha casa, parando ao lado do meio-fio. Fico com uma sensação melancólica e estranha antes de descer, como se não soubesse quando irei vê-lo novamente. Como se Noah, estranhamente, fosse a razão pela qual Theo e eu sempre acabávamos no mesmo lugar, embora isso não seja verdade.
— Obrigada. — Falo, por fim, fazendo menção de abrir a porta. Não sei exatamente pelo que estou agradecendo, afinal: pela carona, pela defesa, pelas palavras de conforto ou por todos os momentos que compartilhamos juntos antes de hoje. Talvez seja um misto de todas essas coisas que não consigo colocar em palavras, então tudo acaba se resumindo a um simples "obrigada".
— Liz, antes de ir... — ele fala, com uma urgência repentina, antes que seja tarde demais, antes que sua coragem se vá, ou antes que eu me vá. — ...pode me contar o que aconteceu?
Olho para ele, confusa sobre o que ele está falando agora. Theo engole em seco, como se não soubesse bem em que tipo de solo está pisando no momento, mas sua necessidade por respostas fosse maior do que o seu receio.
— Só para que eu não passe o resto dos meus dias imaginando respostas para preencher as lacunas sobre como as coisas acabaram desse jeito para o meu irmão, poderia me contar o que você sabe?
Droga. Tinha me esquecido dessa parte: eu ainda devo algumas explicações para Theodore.
Suspiro.
— Se quer mesmo saber a verdade, tem que estar pronto para me odiar. — Aviso, apesar de ficar triste só de pensar nessa possibilidade.
Agora, ele é quem parece confuso, me olhando como se eu fosse maluca.
— Isso parece... improvável.
Balanço a cabeça. Ele não sabe do que está falando.
— Você vai me odiar. — Reafirmo, com certeza.
Theo inclina a cabeça para o lado, com os olhos brilhantes fixos em mim, e por um segundo, tenho que me lembrar de voltar a respirar.
— Eu nunca odiaria você, Liz. — Theo afirma, inclinando-se em seu banco, aproximando-se sutilmente de mim. Sinto minhas bochechas queimarem diante da proximidade atual de nossos rostos.
A frase me soa meio familiar. Busco em minha memória por lembranças de onde possa ter ouvido isso antes, e então me dou conta de que foi o mesmo que Noah — o perfeito e amável Noah — me disse na noite em que foi até a minha casa e eu o contei sobre o acidente.
A lembrança faz o meu estômago embrulhar.
Mas então, me dou conta de que Theodore não é Noah. Ele nunca fingiu ser alguém que não era apenas para ter a minha aprovação. Desde o primeiro momento, se mostrou bem ciente sobre seus defeitos, ao invés de escondê-los. Sempre foi sincero comigo, e merece o mesmo tipo de sinceridade. Ele merece saber a verdade, por mais que me doa dizê-la.
— Você vai. — Insisto. — E então eu nunca mais vou te ver.
Theo solta um riso, como se a ideia ainda lhe parecesse absurda, mas não responde. Ao invés disso, seus olhos descem até minha boca, e nossos rostos acabam se aproximando ainda mais. Theodore recosta a testa sobre a minha, esperando por algum tipo de permissão antes de ceder a seus próprios impulsos.
Quando não me afasto, ciente do que parece estar por vir, e, honestamente, desejando isso também, ele leva suas mãos geladas até a minha nuca e pressiona os lábios contra os meus, devagar, mas com intensidade, como se tivesse desejado isso por muito tempo, mas também não quisesse que esse momento acabasse rápido demais.
Theo desliza suas mãos até a minha cintura, puxando-me para mais perto de si, como se o pequeno espaço entre nós ainda fosse grande o suficiente para incomodá-lo. Nos beijamos mais intensamente a cada segundo que se passa, até que a música tocando baixinho no rádio não passe de um ruído incompreensível. Sinto ondas de calor atravessarem o meu corpo quando os lábios de Theo viajam até o meu pescoço, beijando-me lentamente e descendo até a minha clavícula, tornando difícil raciocinar.
— Caso ainda não tenha entendido... — Ele sussurra, ofegante, enquanto continua a distribuir beijos pelo meu corpo, fazendo minha pele se arrepiar. — ...eu não vou a lugar algum, Elizabeth. Vou ficar aqui, e vou fazer o possível para te impedir de se meter em encrenca. Mas ainda vou continuar aqui quando você, com toda a sua habilidade, não puder evitá-las.
Esboço um sorriso, antes de ceder ao impulso de beijá-lo novamente, porque ele é adorável. Mas apesar de ser uma ideia agradável, não sei se chegará a se tornar verdade.
Por fim, suspiro, reunindo coragem para falar toda a verdade. Ainda estou meio zonza por causa do beijo, e parte de mim gostaria de não ter que ter essa conversa agora (ou nunca), para que as coisas continuem iguais entre nós. A cada nova pessoa a quem conto essa história, sinto como se deixasse de ser apenas "Liz, a garota", para me tornar "Liz, a garota que matou um garoto", e odiaria ser essa pessoa para Theo, apesar de existir uma parte em mim que tem a esperança de que, se alguém nesse mundo pudesse ainda me olhar com humanidade depois de ouvir essa verdade, esse alguém provavelmente seria Theodore Thompson.
Sei que não tenho escolha. Ele merece saber a verdade, mesmo que a verdade seja feia e a pior parte da minha história. Então conto a ele sobre tudo, sem poupar nenhum detalhe.
— Eu e minhas amigas cometemos um erro. — Falo, abaixando a cabeça. Não consigo olhá-lo nos olhos.
— Que tipo de erro?
— Um bem fatal.
Vejo uma ruguinha se formar entre as suas sobrancelhas.
— Fatal? Vocês... mataram alguém?
Mordo a parte interna da bochecha antes de assentir.
— Foi um acidente, eu juro! — Exclamo, cheia de vergonha e culpa. — Mas sim, — admito, com mais firmeza do que jamais tive coragem de admitir antes. — nós matamos.
Theo reage como qualquer pessoa normal reagiria: com choque, incredulidade, decepção, indignação, argumentação, perguntas, e por fim, lamento.
— Obrigado pela honestidade. — Parece ser só o que ele consegue dizer ao final de tudo.
Fecho os olhos devagar, sentindo que estava certa sobre como isso acabaria: no fim, Theodore me odeia. Não o culpo por isso. Só é uma droga que seja mesmo assim. Talvez Noah não seja o único Thompson do qual tenho que me despedir para sempre hoje.
Quero dizer que sinto muito, mas não parece ser o bastante. Então engulo em seco, esperando que ele diga mais alguma coisa, mas não diz. Apenas permanece encarando a rua cinzenta através do vidro do carro.
Sinto um nó se formar em minha garganta, desejando que pudesse existir algo que eu pudesse fazer para que isso não tivesse que acabar assim. Mas não há. As coisas são como são.
Ciente de que esse é o único fim possível, e cansada de esperar que não seja, destravo a porta do carro e salto para fora. Já estou prestes a fechá-la quando Theo se vira em minha direção e me chama de volta:
— Ei, Liz...
Tenho a impressão de que meu coração para de bater por alguns segundos, mas tento não criar falsas esperanças.
Volto-me para ele, em silêncio.
— Você se arrepende? — Pergunta ele.
Levo alguns segundos para me dar conta do porquê ele está me perguntando isso. Então, pela expressão que se forma em seu rosto, me lembro da noite em que conversamos pela primeira vez, em um quarto mal iluminado de uma festa universitária barulhenta, com um garoto arrebentado estirado na cama atrás de nós. Naquela noite, Theodore me deixou ver o seu pior lado. Me contou as coisas das quais não se orgulha sobre si mesmo, e sobre como todas elas, eventualmente, o tornaram na pessoa que é hoje. Theo não me devia nenhum tipo de satisfação, mas ainda assim, me deu muitas, porque queria que, se eu escolhesse permanecer ao seu lado, que tomasse essa decisão consciente da pessoa que ele é — incluindo suas falhas e seus defeitos.
Naquela noite, ofereci a Theodore o benefício da dúvida. Naquela noite, ofereci a ele a chance de ser mais do que os erros que cometeu em seu passado. E hoje, o vejo fazendo o mesmo por mim.
— Sim. — Respondo, com os olhos lacrimejantes. — É claro que sim.
Às vezes, a coisa mais íntima que duas pessoas podem fazer juntas é compartilhar seus segredos, mostrar a pior parte de si mesmas e esperar que o outro escolha ficar.
E naquela manhã, ao ver a pior parte de mim, Theodore fez sua escolha.