— Não se mexa. — Uma voz masculina ordena quando toco o meu pescoço com as mãos. Isso não pode ser real, não é?
— Eu morri? — Pergunto, meio grogue, apenas para ter certeza.
O homem vestindo um uniforme azul abre um sorriso gentil.
— Não, mas foi por pouco. Você teve sorte, garotinha. — Ele responde, mas não sei se isso é verdade. Com certeza não é isso o que eu sinto.
Em seguida, perco os sentidos novamente.
***
Quando torno a abrir os olhos, estou em um quarto de hospital. É o que suponho logo de cara quando vejo a quantidade de medicamento que está sendo aplicada em minha veia. Minha visão está embaçada e meio encoberta por uma névoa, ou talvez os meus olhos não estejam completamente abertos.
Não consigo mexer meu pescoço para olhar ao redor, mas consigo ter um vislumbre da figura do meu pai, sentado em uma poltrona azul ao meu lado, parecendo preocupado, enquanto minha mãe está parada na porta do quarto, discutindo com alguém sobre alguma coisa. Suas palavras soam abafadas e sem sentido, mas parece estressada e eufórica, e meu pai parece enxergar que ela só precisa extravasar seus sentimentos em voz alta antes de se acalmar um pouco.
Sinto uma tremenda culpa por fazê-los passar por isso, e talvez algumas lágrimas rolem pelo meu rosto, porque não consigo evitar que isso aconteça e também não consigo limpá-las. Mal consigo me mexer.
— Me desculpa, pai. — Sussurro, antes de fechar os olhos novamente. — Eu sinto muito por tudo.
Meu pai parece se assustar com o estímulo, porque, embora não o veja se colocar de pé, consigo ouvi-lo se levantar e se aproximar de mim por alguns segundos antes de se afastar, chamando por um médico.
***
Não sei quanto tempo se passa desde a última vez em que abri os olhos, mas parece uma eternidade. No entanto, ainda estou aqui, nesse quarto de hospital deprimente. A poltrona azul onde meu pai estava sentado da última vez, agora está vazia, mas uma coberta e um travesseiro dobrados sobre ela deixam claro que ele ou minha mãe esteve comigo recentemente.
A televisão diante de mim está desligada, e a única coisa que posso observar para me entreter é o quadro azul de uma casa de praia pendurado na parede. Noto um vaso de tulipas laranjas e lírios cor-de-rosa sobre o que parece ser um armário para medicamentos, que não tinha notado antes, mas já parece estar aqui há algum tempo, já que as flores já estão murchando e perdendo a vida. Mas o que realmente chama a minha atenção é o cartão com o nome "Thompson". Sinto um calafrio percorrer o meu corpo ao ler esse nome.
— São da minha mãe. — Uma voz fala, de repente. — Ela está péssima com tudo o que aconteceu. — Ainda com dificuldade em mexer o meu pescoço, levo os meus olhos em direção à porta, onde um garoto está parado, me assistindo.
Theodore.
Ele caminha lentamente para dentro do quarto, parando ao meu lado. Parece cansado e mais abatido do que nunca. Consigo ver olheiras profundas se formando sob seus olhos, sinalizando que não tem dormido o suficiente há algum tempo. O cabelo está mais crescido do que de costume, e tenho a impressão de que até vejo pequenas ruguinhas surgindo no canto de seus olhos. Continua tão charmoso como sempre, mas não parece o mesmo. Algo mudou, mas não me atrevo a questioná-lo sobre isso.
— Como se sente? — Pergunta, mexendo na bolsa de medicação pendurada acima de mim, que parece alimentar constantemente as minhas veias agora.
— Horrível. — Respondo, de forma resumida. Minha voz soa áspera e, por um momento, temo que fique assim para sempre.
Theo assente, sério.
— É, isso eu imagino. — Fala, sentando-se na poltrona ao meu lado. Não sei se está me visitando ou trabalhando, mas também não pergunto. Qualquer das opções me parece boa o suficiente. — Sinto muito por tudo o que te aconteceu, Liz.
Suspiro, com dificuldade, sem saber o que dizer sobre tudo isso. Tenho tentado, na verdade, afastar as memórias do ocorrido, mas elas me perseguem até nos meus sonhos.
— Sabe me dizer há quanto tempo estou aqui? — Pergunto, mudando de assunto. Sinto que uma eternidade se passou enquanto eu dormia.
— Três dias. — Ele diz. — Vim te visitar algumas vezes, mas... você estava apagada.
Assinto, com dificuldade.
— Tenho muitas perguntas, mas... imagino que você não esteja no seu melhor momento para responder todas elas.
Abro um sorriso suave.
— O que te faz pensar isso? O gesso em volta do meu pescoço ou a medicação em minhas veias me deixando grogue como uma bêbada? — Brinco.
Ele dá de ombros.
— Um pouco dos dois. — Admite, sorrindo, mas seu sorriso desaparece aos poucos, sendo substituído por uma expressão séria. — Eu devia ter acabado com ele quando tive a chance. Quem sabe assim você não estaria aqui.
Não preciso que ele especifique mais sobre o que está falando, eu já sei.
Noah. Só de pensar em seu nome sinto o meu estômago embrulhar. Ainda não tive tempo para tentar digerir tudo o que aconteceu. Onde ele está agora? Por acaso foi preso? E se foi preso, por que ainda não nos entregou como culpadas também? Quanto tempo ainda temos antes que ele decida começar a falar? Por quê Theo está procurando respostas aqui, e não com o irmão?
Fecho os olhos por um segundo. Minha cabeça e minhas pálpebras começam a doer com a enxurrada de pensamentos que me atinge de repente.
— Acho que nada poderia impedir que eu estivesse aqui agora, Theo. Nem mesmo você. — Murmuro. — Isso... não é sobre você.
— Sobre o que é, então, Liz? — Ele finalmente indaga, fixando os olhos sobre mim como se implorasse por respostas.
Mordo o lábio, me sentindo incapaz de respondê-lo agora, não apenas porque me sinto fisicamente péssima, ou porque não saberia nem por onde começar, mas porque não estou pronta para dizer adeus a ele, o que provavelmente acontecerá no minuto em que Theodore souber de toda a verdade.
Sinto o mesmo sentimento de culpa e egoísmo que senti no começo desse pesadelo, quando queria manter Noah longe disso tudo para protegê-lo, mas também queria que ele não me odiasse ao saber da verdade. Contudo, decido me dar ao luxo de ser egoísta mais uma vez, dado o meu estado atual.
Quando se lembra de que esse não é o melhor momento para exigir respostas, Theo abaixa a cabeça, encarando seus sapatos e permitindo que seus ombros relaxem na incerteza.
— Me desculpe, é que eu... não entendo muito bem o que aconteceu. É tudo muito confuso para mim. Fico tentando juntar as peças entre o que eu sabia sobre Noah e o que eu sabia sobre você, mas nada faz muito sentido. Nem mesmo os repórteres parecem ter certeza de nada, é tudo muito... abstrato.
Parece que ele se manteve bem ocupado pensando sobre tudo isso. Talvez por isso pareça tão cansado. Sua mente deve estar um turbilhão. Reconheceria essa sensação de longe.
— Acha que algum dia pode me contar toda a verdade sobre o que aconteceu? — Pergunta. Sinto a confusão dentro dele, e o peso de saber que lhe devo explicações sobre a pior parte da minha vida. A pior parte de mim.
Suspiro. Meu peito e pescoço doem com o movimento.
— Talvez. — Respondo, baixinho. — Quando estiver pronto para me odiar.
Os olhos de Theo se fixam sobre mim, sério, como se pudesse enxergar o fundo da minha alma.
— Eu nunca te odiaria, Liz. Achei que isso já estivesse claro a essa altura.
Meu maxilar enrijece. Ele não sabe do que está falando. Mas a culpa disso é minha, e não dele.
Theo engole em seco em meio ao meu silêncio, conformado com o fato de que não vai conseguir muitas respostas de mim agora. Por fim, se levanta da poltrona, enfiando as mãos no bolso do casaco.
— Acho melhor eu ir. Vou deixar você descansar. — Diz.
Assinto devagar, sentindo uma certa melancolia começar a preencher o ambiente. Ele então se curva sobre mim e leva os lábios suaves até a minha testa em um gesto doce, mas inesperado.
— A gente se vê por aí, Encrenca.
Sorrio, sentindo que realmente vou reencontrá-lo em breve, talvez em circunstâncias melhores. Provavelmente serei capaz de passar mais tempo com os olhos abertos até lá, e, com sorte, não vou ter um gesso ridículo em volta do meu pescoço.
— A gente se vê por aí, Theo.
***
— Por quanto tempo vai ter que usar esse troço no pescoço?
— Sarah! — Cassie exclama em reprovação à pergunta.
Sarah dá de ombros.
— Foi uma pergunta normal. Não quis insinuar nada. — Argumenta, mas a conhecemos bem o suficiente para saber que isso não é verdade.
— Bom, eu não sei. Mas coça para caramba. — Digo.
Ela faz uma careta.
— Sinto muito, querida. Mas quer saber? Acho que se a gente assinar esse gesso em volta do seu pescoço vai ficar bem legal. Vai poder imaginar como ficaria se fizesse tatuagens no pescoço.
Dessa vez, quem faz uma careta sou eu.
— Eu nunca faria isso! — Exclamo, horrorizada com a ideia. Nem mesmo tive coragem de colocar piercings na orelha, apesar de achar uma graça, não consigo nem imaginar a ideia de uma agulha desenhando coisas pelo meu pescoço.
Ela e Cassie riem.
— Daisy te mandou flores. — Cassie diz. — Os seus pais já devem ter levado para a sua casa.
Assinto, sentindo um pequeno aperto de saudade no peito.
— Vocês tem tido notícias dela? — Pergunto.
— Não muita. Você sabe, só as atualizações regulares pelo Instagram. Mas ela ligou ao saber das notícias.
— Acha que ela vai voltar para Redgrove agora? — Começo a cogitar. Seria bom tê-la de volta.
Sarah balança, negando.
— Não. Acho que ela nunca mais vai voltar. — Fala, com um senso de realidade mais aguçado do que o meu. — Não a culpo.
Assinto, obrigando-me a voltar para a realidade. Talvez não seja mesmo a melhor ideia voltar agora. A polícia provavelmente vai começar a nos encher de perguntas sobre o ocorrido em breve. Estranho o fato de não terem começado ainda. Pelo menos, Sarah e Cassie não disseram nada sobre isso ainda. Talvez queiram evitar me bombardear com assuntos desagradáveis, dadas as minhas circunstâncias atuais. Mas não me aguento. Preciso saber o quão encrencadas realmente estamos. Preciso me preparar para a realidade e para os piores cenários possíveis, e me deixar sem informações não vai me ajudar em nada.
Pigarreio.
— E como estão as coisas no mundo lá fora, afinal? — Finalmente pergunto, sedenta por atualizações. — Alguma de vocês falou com a polícia?
— Uh, sim. — Sarah afirma. — Cassie e eu falamos, mas... eles não suspeitam de nada... sobre nós.
— Na verdade, eles encerraram o caso. — Cassie informa, ajeitando o cabelo atrás da orelha.
Arregalo os olhos. Tenho a impressão de que meu coração para de bater por um segundo.
— O quê? Como isso é possível? Por quê nós ainda estamos aqui, livres? — Indago, esforçando-me para me sentar em minha cama.
— Bom, eles declararam Noah como responsável pela morte de Dylan e Colin. Acham que ele tentou te matar porque você descobriu tudo. — Explica ela.
Fico boquiaberta, tentando processar a informação.
— Então eles o prenderam? — Pergunto, meio eufórica. Se for este o caso, não parece significar algo bom para nenhuma de nós. Duvido que Noah vá se permitir levar toda a culpa sem tentar nos levar para o buraco junto dele depois de tudo o que fez "por mim".
Sarah e Cassie trocam olhares confusos entre si.
— O que foi? — Questiono, quando nenhuma delas parece estar disposta a me responder. Ninguém parece disposto a me oferecer respostas muito profundas, o que está começando a me irritar. Por um instante, penso que deve ser exatamente assim que Theodore se sente com tudo isso.
— Você não... não se lembra do que aconteceu? — Sarah pergunta, meio incrédula.
— É claro que eu me lembro, tem um gesso no meu pescoço para me lembrar disso constantemente! — Exclamo, exasperada.
— Mas... não se lembra do que aconteceu... depois?
Franzo o cenho, confusa.
— Eu me lembro... de Noah tentando... me matar. — Esforço-me para dizer em voz alta. É a primeira vez que o faço. Assim que as palavras deixam a minha boca com dificuldade, sinto lágrimas começarem a rolar pelo meu rosto. A coisa toda ainda parece surreal demais para ser verdade. Antes de dizer em voz alta, era como se fosse apenas um pesadelo, um sonho meio nebuloso criado pela minha mente para preencher as lacunas da minha memória. Mas agora, é real. Noah tentou me matar. De verdade, e não em um sonho. — Lembro da polícia chegar e depois... de acordar por um segundo, na ambulância, antes de apagar de novo.
Minhas amigas trocam olhares mais uma vez.
— Não teve mais notícias depois disso? — Cassie pergunta.
Nego com a cabeça.
— Não, os meus pais não me deixam assistir ao noticiário há dias. — Revelo. — Acho que não querem me sobrecarregar, mas... preciso de respostas.
Cassie pigarreia, sem jeito.
— Lizzie, ele... — faz uma pausa, procurando a melhor forma de dizer as palavras seguintes, até concluir que talvez não tenha uma boa forma de dizê-las. — ...ele está morto. — Conclui.
Olho para os rostos de minhas amigas, esperando, por alguma razão, encontrar vestígios de uma expressão brincalhona, que me revele que isso não é verdade. Mas não encontro nada além de uma tensão sobre a minha reação.
— O quê? — Deixo escapar, enquanto sinto mais lágrimas brotarem em meus olhos, como ondas agitadas em alto mar.
— V-você não se lembra mesmo? — Pergunta Cassie, esperando que eu recupere a memória do fato para que elas não precisem mais assumir a responsabilidade de me dar a terrível notícia.
— Bom, ele tentou matá-la! Deve ter perdeu a consciência antes do desfecho. — Rebate Sarah, e Cassie a repreende com o olhar.
— Ah, meu Deus! — Exclamo em meio a um suspiro, cobrindo minha boca com a mão enquanto lágrimas tornam a rolar pelo meu rosto, tentando conceber a ideia de que o garoto por quem fui perdidamente apaixonada, está morto. — Como foi que isso aconteceu? — Insisto em perguntar, apesar do nítido desconforto de minhas amigas em falar sobre isso. Preciso da história completa. Preciso saber a verdade. Preciso de cada detalhe que possa me ajudar a digerir essa informação por completo.
Cassie se empertiga na ponta da minha cama, suplicando com o olhar para que Sarah continue a história.
Sarah suspira.
— Bom, quando você não nos encontrou nas escadas do colégio para irmos até o depósito, nós imaginamos que havia algo de errado. Então rastreei o seu celular e vi que você já estava lá, mas não podíamos imaginar como, ou por quê você teria ido sozinha, e eu não conseguia afastar essa sensação de que algo terrível podia estar acontecendo com você naquele instante, então... nós chamamos a polícia. Quando nós chegamos ao depósito, Noah estava... bom... diferente. Ele estava... — com dificuldades para encontrar a forma certa de se expressar sobre o que viram, Sarah olha para Cassie, buscando auxílio.
— Ele ia te matar, Lizzie. Quase o fez. — Cassie fala, então, indo direto ao ponto.
As lágrimas continuam rolando pelo meu rosto. Não consigo controlá-las.
— Eu me lembro disso. Mas não achei que... ele estivesse... — nem consigo dizer em voz alta.
— Quando a polícia chegou e viu o que ele estava fazendo com você, pediram para ele se render. Para que ele tirasse as mãos de você e se entregasse. Mas ele nem ligou. Nem ao menos parecia ser capaz de ouvi-los, ou então, optou por ignorá-los, inconsequentemente. — Cassie prossegue. — Ele foi avisado sobre o que aconteceria. Mas não se importou. Então... atiraram. Foi quando ele finalmente te soltou. Você já estava apagada quando te levaram para a ambulância, mas achei que... achei que se lembrava disso.
As duas seguram minhas mãos, demonstrando apoio. Sei que não me julgam por estar triste sobre a morte de Noah, apesar de tudo o que ele fez. A cena que imagino em minha mente parece cruel demais para ser verdade. Uma parte de mim sabe que é real — eu estava lá, e vi do que ele era capaz. Vi todas as coisas terríveis que ele fez, e a indiferença com que agiu sobre todas elas. Vi os seus olhos se distanciarem de mim conforme ele me atacava, mas ainda assim, não consigo associar isso ao garoto que me levou ao meu primeiro encontro, me chamou para a pista de dança e me beijou em meio a todas aquelas pessoas, sem se importar com o que iam pensar, e é por aquele garoto por quem estou sofrendo agora. Talvez, mesmo em meio a sua crueldade, uma parte de mim ainda esperava que aquele garoto doce estivesse lá, e que voltasse à tona algum dia. Mas isso não vai acontecer, porque Noah Thompson está morto, e com isso, estamos livres.
Solto um soluço em meio às lágrimas, incerta se estou aliviada ou devastada. Talvez os dois. Talvez as duas coisas possam coexistir, afinal.
— Então é isso? O nosso pesadelo acabou? — Pergunto, segurando as mãos de Sarah e Cassie. No momento, somos apenas três garotas sentadas em uma cama de hospital, e para qualquer um que veja a cena de fora, a coisa toda vai parecer apenas um momento meio dramático e melancólico. Mas nós sabemos que é muito mais do que isso. Nossa amizade resistiu a coisas e momentos que poucos resistiriam. Sobrevivemos ao pior, e vimos as piores partes de nós, sem permitir que isso nos destruísse. É o tipo de coisa que nos manterá unidas para sempre, sabendo que podemos contar umas com as outras nos piores momentos, para todo o sempre.
As duas se entreolham, com certa emoção em seus olhos. De repente, já não sou a única chorando aqui. Essas duas bobonas diante de mim sorriem e se desfazem em lágrimas — lágrimas de alívio, de tristeza, de arrependimento, e de um novo começo finalmente se apresentando diante de nós, De uma oportunidade que poucos tem, mas nós tivemos. E vamos aproveitá-la da melhor forma possível.
— É. — Sarah assente, chorando como uma criança. Para alguém que nunca chorava, ela se tornou bem emotiva. — Acabou, sim.