Não houve fogos de artifício, nem grandes multidões
ovacionando. Era apenas uma manhã comum, banhada por um sol suave que prometia
um novo dia. O céu, de um azul límpido e sem nuvens, parecia sorrir em
cumplicidade com o cheiro de pão assando que invadia a casa, um aroma
reconfortante de lar e de recomeço. O canto distante de um bem-te-vi, melódico
e esperançoso, pontuava a quietude.
Noah, o pequeno milagre, dormia sereno no colo de Lúcia,
seus olhos fechados como se estivesse sonhando com mundos que ainda não
existiam, com possibilidades que a realidade mal ousava conceber. E talvez
fosse exatamente isso, Noah era a personificação do que ainda não havia sido,
mas que, agora, existia, pulsante e real, um testemunho vivo da resiliência e
do amor.
A casa-templo, antes um epicentro de urgência e fervor,
agora respirava uma calma profunda. Aquele frenesi inicial, a necessidade
premente de provar seu valor e sua existência, havia se dissipado como fumaça
ao vento. Era tempo de raízes, de aprofundamento, não de relâmpagos efêmeros.
Os encontros continuavam, sim, mas com uma frequência
diferente, um tom mais suave, mais maduro. Não havia mais a ânsia de convencer,
de converter, havia a serenidade de quem já não precisa provar mais nada, de
quem encontrou seu lugar no mundo e na alma de seus seguidores. Raham havia se
tornado um porto seguro, um refúgio para almas cansadas de dogmas e
julgamentos, um espaço onde a fé se manifestava na simplicidade do abraço e na
profundidade do acolhimento.
Calum, antes um homem atormentado por dúvidas e pela febre
da criação, agora escrevia com uma serenidade que beirava a devoção. Suas
palavras fluíam sem a urgência do desespero, sem a angústia da busca
incessante. Escrevia como quem planta, cada frase uma semente lançada em solo
fértil, cada parágrafo um abraço caloroso que envolvia o leitor. Sua escrita
não era mais um grito, mas um sussurro, uma melodia que convidava à reflexão e
à paz.
Lúcia, por sua vez, havia se transformado na conselheira
silenciosa das mulheres da comunidade. Ela não precisava de púlpitos ou
discursos inflamados, sua presença era a própria palavra, um farol de sabedoria
e compaixão. Onde ela sentava, o chão parecia mais firme, as almas mais leves,
as dores mais suportáveis. Sua força residia na escuta atenta, no olhar que
compreendia sem julgar, no abraço que curava sem proferir uma única prece.
Aletéia, a mente inquieta e questionadora, mergulhou nos
estudos da filosofia, desvendando os mistérios da existência com a mesma paixão
com que antes desvendava os segredos da fé. Criava vídeos, textos e debates que
se tornaram referência entre jovens céticos, não por abandonar Raham, mas por
acreditar com mais cérebro do que medo. Sua fé não era cega, mas raciocinada,
corajosa.
“Fé cega é covarde, ela aceita pra não pensar.”
Ela disse um dia, com a voz firme e os olhos brilhando.
“Mas fé raciocinada... essa... é corajosa. Ela duvida...
mas segue mesmo assim.”
Suas palavras ecoavam como um manifesto, um convite à
liberdade de pensamento dentro da espiritualidade.
Enquanto muitas religiões, presas em suas próprias teias de
preconceito e medo, continuavam a atacar Raham, outras, movidas por uma
curiosidade genuína ou por uma abertura de espírito surpreendente, começaram a
escutar. Um padre de Recife, um homem de fé e de mente aberta, visitou a
comunidade de Raham e, ao retornar à sua paróquia, pregou um sermão que ecoou
por toda a diocese. Ele chamou Raham de “o nome que Deus usa quando quer falar
com quem desistiu da religião”, uma frase que ressoou profundamente em muitos
corações.
Um pastor batista, em um artigo que se tornou viral,
escreveu.
“Não precisamos todos ser Raham. Mas precisamos todos
aprender a abraçar como eles.”
E, aos poucos, uma verdade cristalina foi se revelando,
Raham não era uma nova religião, não era mais um dogma a ser seguido, mas sim
uma nova chance, um convite à redescoberta da fé em sua forma mais pura e
inclusiva.
Calum, em uma tarde ensolarada, sentado sob a sombra
generosa de uma mangueira, proferiu palavras que se tornariam a essência da
filosofia de Raham. Com a voz calma e os olhos fixos no horizonte, ele disse.
“O problema nunca foi a religião. Religião é só a roupa
que o divino veste pra poder ser compreendido. Deus, Raham, ou como queira
chamá-lo, usa túnica, terno, batina, turbante, saia rodada e até moletom de
ateu. O nome muda. O sotaque muda. Mas o sopro é o mesmo. Porque a verdade é
uma só.”
Lúcia, com seu humor perspicaz, completou, rindo.
“É, e tem gente que acha que só o seu Deus tem CPF.”
A risada contagiou a todos, até mesmo Clara, que agora
dedicava sua vida a uma ONG, enxugou os olhos marejados, um misto de emoção e
divertimento. Era a leveza da verdade, a liberdade de uma fé que não se prende
a rótulos, mas que se manifesta na essência do ser.
O último grande encontro de Raham não foi em um templo
suntuoso ou em um auditório lotado. Foi em uma praça da cidade, um espaço
público e democrático, sem palco, sem luzes artificiais, apenas a luz do sol e
a energia das pessoas. Não havia hierarquia, apenas gente. De todos os tipos,
de todas as origens, sentados em círculo, como no começo, quando tudo era
incerteza e esperança.
Calum, convidado a falar, subiu em um caixote de madeira, um
púlpito improvisado que simbolizava a simplicidade e a acessibilidade de sua
mensagem. Sua voz, limpa e tranquila, ecoou pela praça, não como um trovão, mas
como um riacho sereno que encontra seu caminho.
“Eu não sei quem é Deus.”
Ele começou, com uma honestidade que desarma.
“Só sei que Ele me achou quando eu tinha desistido d’Ele.
Talvez o nome seja Raham. Ou Javé. Ou Oxalá. Ou Energia. Talvez seja só Amor.
Ou talvez... seja o Silêncio que escuta. Eu só sei que quando Lúcia, Aletéia e
eu nos encontramos, três corações quebrados, algo novo nasceu. Não uma
doutrina. Mas um lugar onde a gente pode ser inteiro.”
Uma pausa dramática pairou no ar, o silêncio da praça
amplificando suas palavras.
“E se a sua fé te impede de abraçar, então não é fé. É
medo disfarçado. Mas a fé que raciocina... essa constrói. Essa te olha nos
olhos. Essa cria mundos.”
Nesse instante, como se o universo respondesse às suas
palavras, Noah chorou, um choro de bebê que se misturou à emoção coletiva. E
alguém, com a voz embargada, proferiu.
“Que Assim Seja, Amém!”
Era a confirmação, o selo de uma verdade que transcendia
palavras e dogmas.
Naquela noite, sob um céu salpicado de estrelas, os três
pilares de Raham, Lúcia, Calum e Aletéia, sentaram-se na varanda, envoltos em
um silêncio que era mais eloquente que qualquer palavra. Noah dormia
profundamente em um cesto ao lado, sua respiração suave pontuando a quietude da
noite. O vento, cúmplice e gentil, passava pelas fitas coloridas penduradas,
criando uma melodia suave e quase imperceptível.
Lúcia, com os olhos fixos na imensidão do céu, que parecia
abraçar a todos, quebrou o silêncio com uma reflexão que vinha da alma.
— Engraçado... quando tudo começou, a gente só queria
sobreviver.
Aletéia, com um sorriso melancólico e sábio, completou.
— E no fim...
Calum, com um brilho nos olhos que refletia a jornada
percorrida, finalizou.
— A gente viveu.
Não era apenas uma constatação, mas uma celebração, um
reconhecimento da vida em sua plenitude, da superação, da fé que se tornou
carne e osso. Calum, então, pegou uma folha de papel e, com a caneta que havia
sido sua companheira em tantas batalhas, escreveu a última frase de seu diário,
uma frase que encapsulava a essência de tudo o que Raham representava.
“O sopro que nos encontrou, agora respira em muitos. E
onde houver um abraço verdadeiro, ali estará Raham.”
Este livro não é apenas uma história. É um sussurro para
quem se encontra no escuro, perdido em meio às sombras da dúvida e do
desespero. É a religião dos sem templo, daqueles que buscam a espiritualidade
para além das paredes e dos rituais. É o Deus dos quebrados, dos
marginalizados, dos que foram esquecidos e rejeitados.
É Raham, a promessa de que o amor, a aceitação e a verdade
sempre encontrarão um caminho, mesmo nos corações mais endurecidos e nos
caminhos mais tortuosos. É a prova de que a fé não é um fardo, mas uma asa que
nos permite voar, que nos convida a abraçar o mundo com a coragem de quem sabe
que a verdadeira divindade reside na capacidade de amar sem limites, sem
julgamentos, sem condições. E que assim seja, para sempre.