Nos dias que se seguiram ao funeral do pai e à epifania do
“Deus de Spinoza”, Calum Silva mergulhou em um limbo autoimposto. A casa, antes
um lar, transformou-se em um casulo de isolamento, um reflexo da sua alma em
frangalhos. As horas se arrastavam, densas e pegajosas, como se o próprio
tempo, em solidariedade à sua dor, tivesse decidido desacelerar.
Roupas sujas amontoavam-se em uma cadeira, formando uma
montanha silenciosa de negligência. Na pia da cozinha, uma torre de louça suja
crescia, testemunha muda de uma rotina desfeita. O celular, esse oráculo
moderno, jazia carregando ao lado da cama, um portal para um mundo que Calum,
por ora, se recusava a acessar. A única constante, a única indulgência, era a
cerveja, aberta com um ritual quase sagrado, seu efervescer um breve alívio no
silêncio opressor.
Ele não falava com ninguém. A voz, se é que existia, estava
reservada para os ecos de seus próprios pensamentos. Mas lia. Ah, como lia!
Devorava cada palavra, cada frase, como um náufrago sedento por água. O texto
sobre o Deus de Spinoza, aquele que não castiga, não interfere, não exige,
martelava em sua mente como um tambor mudo, um ritmo hipnótico que o puxava
para mais fundo em sua busca.
Era um Deus que simplesmente era, que se revelava na
matemática sublime das galáxias e no silêncio eloquente entre as folhas de uma
árvore. Uma ideia perigosa, ele percebia, bonita demais, libertadora demais
para ser aceita pelos autoproclamados “donos da fé”.
“Claro que enterraram esse Deus.”
Murmurava Calum para as paredes, um sorriso amargo nos
lábios.
“Ele não rende dízimo.”
A ironia era cortante, a verdade, brutal. Um Deus que não
exige, não manipula, não promete recompensas celestiais em troca de obediência
cega, não serve aos interesses de impérios construídos sobre a culpa e o medo.
Esse Deus, o Deus de Spinoza, era uma ameaça à estrutura de poder que Calum
acabara de desmascarar em sua própria mente.
Na madrugada do terceiro dia de sua reclusão, impulsionado
por uma curiosidade insaciável, Calum se viu imerso nas profundezas do Google.
Digitando palavras-chave que ressoavam com sua nova percepção de divindade, ele
tropeçou em um tesouro escondido, um universo de conhecimento que a ortodoxia
havia tentado apagar.
Os Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi.
Foi como se uma porta secreta, há muito tempo selada nas
paredes de sua infância, se abrisse de repente, revelando um corredor
empoeirado, mas repleto de luz.
Os Manuscritos do Mar Morto, encontrados em Qumran em 1947
por beduínos em cavernas próximas, incluíam o Gênesis Apócrifo, um texto
pseudepígrafo que desafiava as narrativas estabelecidas.
Já a Biblioteca de Nag Hammadi, descoberta em 1945 por
camponeses, revelou 13 códices com 52 textos, entre eles os Evangelhos de Tomé,
Filipe e da Verdade, associados ao gnosticismo. Ali estavam eles, os textos
rejeitados, banidos, esquecidos. Os escritos que não serviram à Igreja, não
porque mentiam, mas porque diziam demais. Diziam verdades inconvenientes,
verdades que desmantelavam dogmas e questionavam a autoridade.
Calum sentiu um arrepio na espinha, uma mistura de excitação
e indignação. Quantas outras verdades haviam sido suprimidas em nome do
controle?
Ele começou pelo Evangelho de Tomé, atraído por sua promessa
de autoconhecimento. Leu a passagem que o atingiu como um soco sem mão, um
golpe direto em sua alma.
“Se trouxeres à luz o que está dentro de ti, o que está
dentro te salvará. Se não trouxeres à luz o que está dentro de ti, o que não
trouxeres te destruirá.”
Calum fechou os olhos, engoliu em seco. Aquelas palavras não
eram apenas tinta no papel, eram um espelho, um convite a uma introspecção
brutal. Ele havia passado a vida inteira escondendo o que estava dentro,
sufocando seus próprios desejos e verdades em nome de uma conformidade que
nunca o preencheu. E o resultado? A destruição silenciosa de sua própria
essência.
Em seguida, o Evangelho de Maria Madalena.
Calum ficou em silêncio por minutos, absorvendo cada
palavra. Pela primeira vez, uma mulher falava com autoridade entre os
discípulos, uma voz feminina que a história oficial havia silenciado, até mesmo
caluniado a chamando de prostituta. Mas na verdade, Jesus a chamava de
“companheira”, um termo que, na época, carregava uma intimidade e um respeito
que transcendiam a mera amizade.
E Pedro, o “fundador” da Igreja, enciumado, questionava.
“Será que ele falava com uma mulher em segredo e não
conosco?”
Calum riu, um riso amargo que ecoava a misoginia milenar.
“Sempre foi assim, né? Então não era Pedro a pedra
fundamental da igreja, mas sim Maria Madalena.”
A audácia daquela revelação, a subversão da narrativa
estabelecida, era inebriante. A história, ele percebeu, era escrita pelos
vencedores, e os perdedores, as vozes silenciadas, jaziam esquecidas em
manuscritos proibidos.
Depois veio o Evangelho de Filipe, com suas entrelinhas
sensuais, seu Jesus humano demais, íntimo demais, com a sugestão de Maria
Madalena como esposa. A ideia de um Jesus que amava, que sentia, que vivia uma
vida plena, era um contraste gritante com a figura ascética e distante que lhe
haviam imposto.
E, por fim, o Evangelho de Judas, que pintava o “traidor”
não como um vilão, mas como um aliado necessário, um instrumento divino para o
cumprimento de um propósito maior. A traição, ele percebeu, era apenas uma
perspectiva, uma peça no intrincado quebra-cabeça da existência.
E o de Pedro, com sua narrativa quase mística da
ressurreição, onde a cruz fala, e o céu treme, completou a desconstrução de
tudo o que Calum acreditava saber.
Calum se sentia em transe. Não era fé ainda, não no sentido
tradicional. Mas era sede. Sede de entender, de desvendar os mistérios, de
desfazer o nó que amarrava sua alma. Sede da verdade, daquela verdade que se
esconde nas entrelinhas, nos sussurros da história.
No fim daquela semana, sua mesa estava coberta de anotações,
cadernos velhos, livros de sebos. Ele escrevia como quem costura um remendo
numa alma esgarçada, um alquimista transmutando dor em conhecimento. Não sabia
ainda o que estava criando, mas já sabia o que não queria.
“Não quero púlpito. Não quero pastor. Não quero milagre por
encomenda. Não quero medo. Não quero dor como pagamento.”
A voz de Calum, antes um sussurro, agora ressoava com uma
convicção recém-descoberta. Ele não queria uma religião que explorasse, que
aprisionasse, que vendesse ilusões. Ele queria algo real, algo que libertasse.
Pegou um caderno velho de capa preta, riscado de tinta azul,
um artefato de um passado esquecido. Na primeira página, com uma caligrafia que
misturava urgência e esperança, escreve.
“A Nova Aliança – Evangelhos do Deus que não exige
adoração.”
E, logo abaixo, sua assinatura.
“Calum Silva”.
Uma declaração, um manifesto, um grito de liberdade. E
então, um pensamento audacioso, quase herético, brotou em sua mente.
“Se Jesus nunca quis uma religião, talvez agora... talvez
agora alguém precise fundar uma em seu nome verdadeiro.”
Ele não dormiu naquela noite. As ideias fervilhavam, a mente
em ebulição. Mas algo dentro dele, algo que parecia adormecido por toda uma
vida, finalmente acordou. Era o despertar de um propósito, a centelha de uma
revolução silenciosa que começava dentro de si. O homem que havia perdido tudo,
estava, na verdade, encontrando-se. E o mundo, ele sabia, nunca mais seria o
mesmo.