Era uma questão de tempo, uma verdade inegável que pairava
no ar como uma tempestade iminente. Raham, com sua essência de amor
incondicional e acolhimento sem fronteiras, havia crescido a ponto de se tornar
impossível de ignorar. Não era apenas um movimento, era um fenômeno, uma maré
crescente de abraços, de gente que se permitia amar e ser amada sem as amarras
do julgamento.
Mas o mundo das religiões, com suas doutrinas rígidas e seus
dogmas ancestrais, raramente perdoa quem ousa amar sem cobrar um preço, sem
impor condições. A liberdade de Raham era uma afronta, um desafio direto à
ordem estabelecida.
As principais lideranças evangélicas, católicas e até mesmo
de outras tradições, que antes se digladiavam em debates teológicos e disputas
por fiéis, encontraram um terreno comum. Esqueceram suas diferenças
doutrinárias, suas rivalidades históricas, pois nada une mais do que a
percepção de um inimigo em comum.
Raham, com sua mensagem de inclusão radical, era esse
inimigo. A reunião, realizada a portas fechadas, em salas opulentas e sombrias,
ecoava com a tensão de uma conspiração. Vozes sussurrantes, olhares furtivos, e
a decisão fria e calculista de aniquilar o que não podiam controlar. Foi ali,
entre paredes revestidas de veludo e promessas de poder, que a sentença foi
proferida, com uma frieza arrepiante.
“Se não o calamos
com debate, calamos com escândalo.”
E assim, a máquina de difamação começou a ser lubrificada, as
engrenagens da calúnia, a girar. Nos dias que se seguiram, o ar parecia vibrar
com a malícia. A bomba explodiu, não com um estrondo, mas com uma série de
detonações calculadas, cada uma mais virulenta que a anterior. Manchetes
gritavam em jornais e sites, suas letras gordas e sensacionalistas destilando
veneno.
“Raham é fachada para seitas sexuais.”
Berrava uma, insinuando depravação onde havia apenas amor.
“Filho do líder espiritual pode não ser dele.”
Sussurrava outra, atacando a honra e a paternidade com uma
crueldade gélida. A televisão, o rádio, e a torrente incontrolável das redes
sociais se tornaram palcos para o linchamento público.
“Travesti batizada envolvida com tráfico.”
Estampava um jornal de rede nacional, transformando a
redenção em crime.
“Pastor infiltrado confirma lavagem cerebral.”
Vociferavam programas sensacionalistas, transformando a fé
em manipulação. Lúcia, a mulher grávida que irradiava luz, foi cruelmente
apelidada de 'bruxa grávida'. Aletéia, a força silenciosa, foi demonizada como
'demônio de saia'. Calum, o profeta da inclusão, foi ridicularizado como 'falso
profeta afeminado'.
Era um massacre, uma carnificina midiática que visava
destruir não apenas a reputação, mas a própria alma de Raham e de seus pilares.
A cada ataque, uma nova ferida se abria, mas a resiliência da comunidade era um
escudo inquebrável.
Mas, surpreendentemente, o povo não recuou. Não se encolheu.
Não se deixou intimidar. A comunidade de Raham reagiu não com a fúria esperada,
não com a retaliação que os algozes desejavam, mas com uma arma muito mais
poderosa, a verdade, a vulnerabilidade e o amor.
As redes sociais, antes usadas como instrumento de
difamação, foram inundadas por uma onda de vídeos, fotos e testemunhos que
desmantelavam as mentiras com a força da autenticidade.
Uma ex-prostituta, com o filho aninhado em seus braços, lia
o Manifesto de Raham, sua voz embargada pela emoção, mas firme na convicção. Um
ex-miliciano, cujas mãos antes empunhavam armas, agora abraçava o policial que
um dia perseguiu, um gesto de reconciliação que falava mais alto que qualquer
acusação. Uma senhora de 83 anos, com a sabedoria dos anos gravada em seu
rosto, cantava com travestis na praça, desafiando preconceitos com a melodia da
aceitação.
E Clara, a jovem batizada, de frente para a câmera, com os
olhos marejados mas a voz inabalável, proferiu palavras que ecoaram como um
hino.
“Me expulsaram de casa aos treze anos. Morei nas ruas. Me
prostituí por comida. Eu fui jogada fora pela família religiosa, pela igreja,
por todo mundo a vida inteira. Mas em Raham, fui abraçada, acolhida, amada sem
julgamento, me aceitaram apenas por ser quem eu sou. E se isso é heresia...
então amém.”
Cada palavra, cada imagem, cada testemunho era um golpe
contra a calúnia, uma prova irrefutável de que o amor, quando genuíno, é a mais
potente das revoluções. O escândalo, antes um monstro aterrorizante, começou a
murchar, a se transformar em um boato patético, e, por fim, em uma piada sem
graça. A verdade, como sempre, permaneceu de pé, inabalável, enquanto as
mentiras se desfaziam no ar.
Até que veio o desmascaramento, a revelação que viraria o
jogo. Um jornalista investigativo, um ateu convicto, cético por natureza e com
uma aversão declarada a qualquer forma de seita, decidiu ir a fundo na história
de Raham. Ele não buscava a verdade para defendê-los, mas para comprovar as
acusações, para desmascarar o que ele acreditava ser mais uma farsa religiosa.
Mergulhou nas profundezas da internet, entrevistou fontes, cruzou dados, e o
que encontrou não foi o que esperava.
Descobriu que o “ex-pastor infiltrado” que havia acusado
Raham em rede nacional, com sua voz impostada e seu olhar de falso profeta,
nunca existiu. Era um ator, um mero fantoche contratado por uma ONG de combate
a “heresias modernas”, uma organização que, ironicamente, se revelou mais
herege em suas táticas do que qualquer doutrina que tentava combater.
As fotos de Lúcia com um “homem misterioso”, que haviam sido
espalhadas como prova de sua infidelidade, eram manipulações digitais
grosseiras, montagens que se desfaziam sob o olhar atento de um perito.
O jornalista, com sua integridade profissional acima de
qualquer crença pessoal, compilou um dossiê irrefutável, uma montanha de
evidências que desnudava a farsa. E então, publicou. Sua manchete, um golpe de
mestre, ressoou como um trovão.
“O Deus pode ser Apócrifo, mas não é hipócrita. Foram
caluniados. E responderam com silêncio, amor e acolhimento.”
A opinião pública, antes manipulada e inflamada, virou como
um barco à deriva que encontra seu rumo. Raham, antes sinônimo de escândalo,
virou trending topic, com a hashtag “#PerdoaElesRaham”, explodindo nas
redes sociais, um pedido de desculpas coletivo, um reconhecimento tardio da
injustiça cometida. A verdade, finalmente, havia prevalecido, e a hipocrisia
dos acusadores foi exposta à luz do dia.
E foi nesse turbilhão de redenção e reconhecimento que a
vida, em sua forma mais pura e milagrosa, decidiu se manifestar. Lúcia entrou
em trabalho de parto, sem aviso, sem tempo para a formalidade de um hospital. A
vida, como sempre, tinha seus próprios planos, suas próprias urgências.
Uma enfermeira, um anjo em meio ao caos, que por acaso
estava ali, guiou o processo com a calma de quem já presenciou inúmeros
milagres. Calum, ajoelhado ao lado de Lúcia, segurava sua mão com a força de um
amor que transcendia a dor física. As contrações vinham como ondas
avassaladoras, mas no rosto de Lúcia, em meio à agonia, um sorriso de pura
antecipação florescia.
“Ele tá vindo.”
Ela sussurrava, a voz embargada pela dor e pela alegria.
Aletéia, nervosa, perguntou sobre o nome. “Noah”, respondeu Lúcia, entre um
gemido e outro. Clara, com os olhos fixos na amiga, quis saber o significado. E
Calum, com a voz embargada pela emoção, proferiu as palavras que selariam o
destino daquele que estava para chegar.
“Aquele que traz o sopro depois da tempestade.”
E foi exatamente isso. No ápice do nascimento, como se o
universo conspirasse para tornar o momento ainda mais inesquecível, a energia
elétrica falhou. A luz se apagou, mergulhando o ambiente em uma escuridão densa
e quase palpável. Todos congelaram, o silêncio se fez presente, quebrado apenas
pela respiração ofegante de Lúcia e pelo choro abafado que vinha de fora, de
algum lugar distante. Era o silêncio do universo, em uma pausa dramática,
aguardando a próxima batida, o próximo milagre.
E então, em meio à escuridão, uma vela, que ninguém havia
acendido, que ninguém havia tocado, simplesmente... pegou fogo. Uma chama
solitária, tremeluzente, que dançava no ar como um sinal, uma confirmação de
que algo extraordinário estava acontecendo. Ninguém encostou. Ninguém soprou.
Ela simplesmente acendeu, um farol de esperança em meio à penumbra.
E logo depois, o choro.
Não um choro comum, mas uma melodia, uma sinfonia de vida
que preenchia o ar. Era como se cada lágrima daquele recém-nascido dissesse.
“Cheguei. Estou inteiro. Estou vivo.”
Foi rápido. Intenso. Como tudo em Raham. Na madrugada de
sexta para sábado, sob a luz prateada da lua cheia, com raios distantes
iluminando o horizonte e o aroma reconfortante de café fresco invadindo a casa,
Noah nasceu. Forte, com olhos que pareciam carregar a sabedoria de eras, como
se já soubesse o que o esperava.
Foi colocado nos braços de Lúcia, que o recebeu com um amor
que transbordava. Calum, ajoelhado, chorava sem vergonha, as lágrimas
escorrendo livremente, um testemunho de pura emoção. E todos ali ao lado, os
excluídos, as prostitutas, os ex-milicianos, as travestis, os ateus, os
velhinhos e as crianças, ficaram em silêncio. Um silêncio reverente, como
diante de algo maior.
De algo... divino.
Na manhã seguinte, o sol nasceu diferente, suas cores mais
vibrantes, sua luz mais intensa. Benjamim preparava o café, o aroma se
misturando ao cheiro de vida nova. Clara organizava as cadeiras, um gesto
simples que trazia ordem ao caos da noite. E Calum, com a alma leve e o coração
transbordando, escrevia a última frase do capítulo final de seu livro, uma
frase que se tornaria um mantra, um legado.
“Eles tentaram nos enterrar, mas esqueceram que somos
semente.”