Calum estava acordado havia mais de 24 horas, imerso em uma
febre criadora que consumia seu corpo, mas acendia sua alma. Não era a insônia
comum, mas a efervescência de ideias que, finalmente, se encaixavam, revelando
uma verdade que ele buscara por toda a vida. O cansaço físico era um detalhe
ínfimo diante da clareza mental que o invadia.
O estômago, esquecido, protestava em silêncio, mas os olhos
de Calum, acesos como brasas em uma fornalha, refletiam a intensidade de sua
epifania. Ele era um homem em transe, iluminado não por visões celestiais ou
anjos sussurrantes, mas pela lógica implacável de uma nova compreensão, uma que
desmantelava dogmas e construía pontes para um sentido mais profundo.
Ele não queria regras. Regras aprisionavam, limitavam,
sufocavam a essência. O que Calum buscava era rumo, uma bússola para guiar sua
jornada. Queria esperança, não a esperança vazia de promessas distantes, mas a
esperança tangível de um caminho que pudesse ser trilhado aqui e agora.
Com essa convicção pulsando em suas veias, abriu um novo
caderno, ainda exalando o cheiro inconfundível de papel barato, e na capa, com
a mesma caligrafia calma e precisa que o acompanhava desde os tempos de
colégio, escreveu.
"O Manifesto da Nova Fé"
Abaixo, como um sussurro direto ao universo, adicionou um
subtítulo que encapsulava a essência de sua busca.
“Para quem perdeu a fé no templo, mas ainda sente Deus no
vento.”
Bebeu um gole de café preto frio, o amargor líquido
contrastando com a doçura da revelação que o preenchia. Respirou fundo, o ar
parecendo mais leve, mais puro, e começou a escrever, as palavras fluindo como
um rio caudaloso, desimpedidas por barreiras ou preconceitos.
Princípios da Nova Fé
1. Deus não é um velho no céu.
Deus não exige, não castiga, não cobra. Essa era a primeira
e mais libertadora das verdades. Deus é o todo, a natureza em sua plenitude, o
invisível que permeia o visível. É a música que existe antes da nota, a melodia
que precede o som. Não é uma pessoa, não tem gênero, um ser antropomórfico
sentado em um trono celestial, mas uma presença, uma energia que pulsa em cada
átomo do universo.
E, acima de tudo, Deus é AMOR.
Por isso, será chamado por nós de Raham. Amor em aramaico.
Quando as escrituras dizem que Deus "raḥam" seu povo, não é um amor
qualquer. É um amor que sofre junto, que abraça até o erro mais profundo, que
não desiste, que persiste mesmo diante da falha. No aramaico falado por Jesus,
"raḥam" aparece como a forma mais divina e incondicional de amar. Um
amor que transcende o julgamento, que acolhe a imperfeição, que se manifesta na
compaixão e na aceitação plena.
2. Não existe pecado onde há amor.
A Nova Fé não condena o desejo, a carne, o corpo. O mal não
reside no que se sente, mas no que se nega, no que se reprime em nome de dogmas
vazios. O amor entre iguais, o amor improvável, o amor imperfeito, todos são
sagrados. A sexualidade, antes vista como fonte de culpa e vergonha, é
celebrada como um presente divino, uma expressão de êxtase e alegria. Não há
espaço para a hipocrisia, para a condenação velada. O amor, em todas as suas
formas, é a única lei, o único guia moral. A liberdade de amar e ser amado, sem
amarras ou preconceitos, é um pilar inegociável. Mas sem responsabilidade o
amor se torna prisão.
3. Nenhum homem pode falar por Raham.
Não há pastores, profetas exclusivos ou donos da verdade. O
sagrado não precisa de intérpretes, de intermediários que distorcem a mensagem
em benefício próprio. Precisa de silêncio e escuta, de uma conexão direta e
íntima com o divino que reside em cada um.
A autoridade não emana de hierarquias eclesiásticas, mas da
voz interior, da intuição, da sabedoria que se revela na quietude da alma. Cada
indivíduo é seu próprio sacerdote, seu próprio guia, responsável por sua
própria jornada espiritual. A fé é uma experiência pessoal, intransferível, que
não pode ser delegada ou terceirizada.
4. A salvação não é um destino. É uma caminhada rumo ao
despertar.
Não se trata de céu ou inferno, de recompensas ou punições
pós-morte, mas de se tornar o que se é, de desvendar o potencial divino que
habita em cada ser. Quem acorda para o divino que permeia tudo, para a
interconexão de toda a existência, já se salvou.
A salvação não é um prêmio a ser conquistado, mas um estado
de consciência a ser alcançado. É um processo contínuo de autodescoberta, de
expansão da consciência, de alinhamento com a essência divina. A jornada é o
destino, e cada passo é uma oportunidade de despertar para a verdade.
5. As Escrituras Sagradas são as vozes esquecidas.
Nossas escrituras são as deixadas por Jesus. Aceitamos os
quatro evangelhos canônicos, mas não nos limitamos a eles. Os apócrifos, Tomé,
Maria, Filipe, Tiago, Judas, Pedro, são igualmente sagrados, vozes que foram
silenciadas, mas que agora ressoam com uma nova força. Eles foram rejeitados,
não por serem falsos, mas por serem livres, por desafiarem as narrativas
estabelecidas, por questionarem a autoridade.
E liberdade, assusta. Assusta aqueles que se beneficiam do
controle, da ignorância, da submissão. A verdade, muitas vezes, é
inconveniente, e por isso é banida, escondida, esquecida. Mas a Nova Fé busca
desenterrar essas verdades, dar voz aos silenciados, e construir uma
compreensão mais completa e inclusiva do divino.
6. O templo é o corpo, a rua, a árvore, o outro.
A Nova Fé não constrói catedrais de pedra e argamassa.
Constrói vínculos, comunidades, abraços. Celebra-se onde há pão, vinho, risada,
dança e partilha amor. O sagrado não está confinado a espaços físicos, mas se
manifesta na interação humana, na conexão com a natureza, na celebração da vida
em sua plenitude.
Cada corpo é um templo, cada rua um corredor sagrado, cada
árvore um altar, cada outro um reflexo do divino. A fé é vivida no cotidiano,
nas pequenas ações de bondade, na compaixão, na solidariedade. É uma fé que se
manifesta na ação, não apenas na contemplação.
7. Não queremos seguidores. Queremos despertos.
Quem quiser vir, que venha sem medo, sem a necessidade de se
curvar ou se submeter. Quem quiser partir, que parta em paz, sem culpa ou
condenação. A Verdade não precisa de multidões, de rebanhos cegos. Só precisa
de inteiros, de indivíduos que buscam a autenticidade, a liberdade, a verdade
em si mesmos.
A Nova Fé não é um clube exclusivo, mas um convite à jornada
individual de despertar. Não há proselitismo, apenas o compartilhamento de um
caminho, de uma perspectiva que pode ressoar com aqueles que buscam algo mais,
algo além das estruturas tradicionais.
Calum recostou na cadeira, o corpo exausto, mas a mente em
êxtase. O sol da manhã já entrava pela janela, pintando o quarto com tons
dourados, como se o próprio universo estivesse abençoando sua criação. Leu o
que escreveu como quem olha um filho recém-nascido, com uma mistura de orgulho,
apreensão e um amor incondicional.
Sabia que os religiosos iriam odiar. Sabia que diriam que
era heresia, uma afronta aos seus dogmas. Sabia que poderia ser cancelado,
humilhado, talvez até perseguido. Mas, pela primeira vez em muito tempo, não
sentia medo. A clareza de seu propósito era um escudo impenetrável contra o
temor.
Guardou o caderno, um tesouro recém-descoberto. Foi até a
estante, pegou a Bíblia que a mãe deixara, um artefato de uma fé que ele agora
reinterpretava. Folheou, as páginas finas sussurrando histórias antigas.
Encontrou o Evangelho de João. Leu, em voz alta, as palavras ressoando no
silêncio do quarto.
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”
Sorriu, um sorriso que misturava ironia e uma profunda
compreensão.
“Mas ninguém disse que ela ia ser aceita, né?”
A verdade, ele sabia, era libertadora, mas nem sempre
bem-vinda. Especialmente quando desafiava o status quo, quando ameaçava os
alicerces de poder e controle.
Pegou o celular, um dispositivo que antes o conectava a um
mundo de distrações vazias, e agora se tornava uma ferramenta de transformação.
Gravou um vídeo. O primeiro. Sua voz, antes hesitante, agora carregava a
convicção de um profeta moderno, um arauto de uma nova era.
“Se você, como eu, cansou de mentiras ditas em nome de Deus,
me escuta. Eu não tenho todas as respostas. Mas encontrei um caminho. E ele
começa aqui. Com o Deus que não cobra. Com o evangelho dos esquecidos. Com a fé
que nasce quando tudo mais morre...”
Como um evangelista professou sua fé ao mundo, a tela do
celular seu portal. Falou com a alma simples, mas pura. Durante alguns
segundos, Calum hesitou, olhando aflito para a tela, o dedo trêmulo pairando
sobre o botão de postar.
Era um salto no abismo, uma declaração de guerra contra o
mundo que ele conhecia. Mas a convicção era mais forte que o medo. Com um
clique decisivo, ele postou. E ali, na sala de sempre, com o coração em chamas
e a alma em ebulição, Calum Silva começou a fundar uma nova religião.
Não com pedras, não com templos imponentes, mas com
palavras. Palavras que, ele esperava, e acreditava que se fossem verdadeiras, acenderiam
a chama do despertar em outros corações, em outras almas sedentas por uma
verdade que os libertasse.