O sussurro de Raham havia se tornado um murmúrio, e o
murmúrio, um grito. A casa de Calum, antes um refúgio de silêncio e
introspecção, agora fervilhava de vida. Os encontros semanais, que começaram
com sete almas tímidas, explodiram em afluência. A sala, antes espaçosa, mal
comportava as dezenas de pessoas que chegavam, atraídas pela promessa de um
Deus que não exigia sacrifícios, mas escuta.
O boca a boca, amplificado pelas redes sociais, transformou
o pequeno movimento em um fenômeno. O site Raham.org, meticulosamente
construído por Aletéia, recebia milhares de acessos diários, e as caixas de
e-mail de Calum e Lúcia transbordavam de mensagens de apoio, de perguntas, de
desabafos. Raham estava ganhando corpo, e esse corpo era feito de gente, de
histórias, de uma fome insaciável por algo autêntico.
Mas o crescimento, como uma fogueira que se alastra, também
atrai a atenção indesejada. O que era um movimento marginal, um nicho de
descontentes, começou a ser notado. E com a atenção, veio o temor.
A mídia, sempre ávida por narrativas que vendem, encontrou
em Raham um prato cheio. Uma rede de notícias regional, conhecida por seu
sensacionalismo e por sua linha editorial conservadora, fez uma reportagem
sobre o “fenômeno Raham”. O título, em letras garrafais, era um prenúncio do
que viria.
“O Deus Apócrifo!”
“Nova Seita Cresce na Periferia e Preocupa Líderes
Religiosos”
O tom da reportagem era alarmista, distorcendo os princípios
de Raham, pintando Calum como um líder carismático e perigoso, Lúcia como uma
ex-missionária renegada e Aletéia como uma “ateia radical” que usava a internet
para “doutrinar jovens”.
A matéria citava líderes religiosos tradicionais que
condenavam o movimento, chamando-o de heresia, de “lobo em pele de cordeiro”,
de “engano do diabo”. A palavra “seita” era repetida à exaustão, como um mantra
para incutir medo e desconfiança.
O impacto foi imediato e brutal. Se, por um lado, a
reportagem gerou uma onda de curiosidade que fez os encontros na casa de Calum
ficarem ainda mais cheios, pessoas vinham de bairros distantes, de outras
cidades, buscando ver com os próprios olhos o que era aquela “nova seita”, por
outro, acendeu a chama da intolerância. O bullying começou sutil, com
comentários maldosos nas redes sociais, com olhares de esguelha na rua. Mas
logo escalou para algo mais concreto, mais ameaçador.
Uma noite, Calum estava terminando de responder e-mails
quando um barulho estrondoso o fez pular da cadeira. O som de vidro
estilhaçando ecoou pela casa. Correu para a sala, o coração na garganta, e
encontrou a janela da frente, antes intacta, agora um emaranhado de cacos. Uma
pedra, grande e pesada, jazia no chão, e presa a ela, um bilhete rabiscado em
letras garrafais.
“Aqui não tem lugar pra herege. Volta pro inferno, falso
profeta.”
Lúcia, que estava na cozinha preparando chá, correu para a
sala, o rosto pálido. Aletéia, que havia chegado para ajudar com o site, estava
parada na porta, os olhos fixos nos cacos de vidro, a fúria habitual
substituída por uma expressão de choque e vulnerabilidade. Era a primeira vez
que a violência batia à porta de Raham, e o impacto foi devastador.
Mas a ameaça não se limitou à casa de Calum. Dias depois,
Aletéia estava voltando para casa, tarde da noite, depois de mais uma sessão de
trabalho no site. O bairro, que antes parecia um refúgio, agora se mostrava
hostil. Uma rua escura, um beco sem saída. Dois homens surgiram das sombras,
bloqueando seu caminho. Um deles, com um sorriso cínico, a empurrou contra a
parede.
— E aí, ateiazinha. Achou que ia ficar impune falando mal da
igreja?
A voz era arrastada, carregada de desprezo.
— É bom você e seu amiguinho pararem com essa palhaçada de
Raham. Aqui tem dono. E o dono não gosta de concorrência.
O outro homem puxou uma faca, a lâmina brilhando sob a luz
fraca de um poste. Aletéia sentiu o frio do metal contra sua garganta. O medo,
um medo visceral e paralisante, a dominou. Mas, mesmo assim, seus olhos não
desviaram. Havia uma faísca de desafio, de teimosia, que se recusava a ser
apagada.
— A gente sabe onde você mora. E onde sua família mora. É
bom pensar bem antes de continuar com essa heresia.
O homem da faca sussurrou, a voz fria como gelo.
— Da próxima vez, a gente não vai só avisar.
Eles a soltaram, deixando-a ali, tremendo, o coração batendo
descompassado. Aletéia correu para casa, as lágrimas escorrendo pelo rosto, não
de dor física, mas de uma raiva impotente, de uma sensação de violação que a
sufocava. A fúria, sua velha companheira, havia retornado, mas agora misturada
a um terror que ela nunca havia experimentado.
Como se a violência externa não fosse suficiente, uma nova
ameaça, mais insidiosa, surgiu das profundezas do bairro. A milícia, que
dominava a região com mão de ferro, enviou um de seus emissários. Um homem
corpulento, com olhos vazios e um sorriso que não alcançava os olhos, apareceu
na casa de Calum numa tarde. Ele não veio com ameaças explícitas, mas com uma
proposta que gelou o sangue de Calum.
— Seu movimento tá crescendo, pastor. A gente tá vendo. E
onde tem movimento, tem fé... tem dinheiro.
A voz era suave, quase amigável, mas a intenção por trás
dela era clara como cristal.
— A gente pode ajudar vocês a crescerem mais. Dar uma
segurança. Em troca, vocês dão uma força pra gente. Uns trocados. Uma lavagem
de dinheiro aqui e ali. Coisa simples. Ninguém precisa saber. É bom pra todo
mundo. A gente protege vocês, e vocês protegem a gente. Um por todos, e todos
pela família, né?
Calum sentiu o estômago revirar. A proposta era um veneno
disfarçado de ajuda, uma armadilha que transformaria Raham em uma fachada para
o crime. Ele olhou para Lúcia e Aletéia, que observavam a cena com os rostos
tensos.
A fogueira que ele havia acendido estava se tornando um
inferno, e ele não sabia como apagar as chamas. Raham, que nasceu para ser um
sopro de esperança, estava sendo sufocado pela sombra da violência e da
corrupção. A fé, ele percebeu, não era apenas um caminho de luz, mas também um
campo de batalha, onde a escuridão espreitava em cada esquina, pronta para
devorar o que era puro.
E Calum, Lúcia e Aletéia estavam agora no centro dessa
batalha, sem saber se seriam capazes de proteger o que haviam construído, ou se
seriam consumidos pelas chamas que eles mesmos haviam acendido.