A praça, antes um mero espaço público, transformou-se em um
templo a céu aberto. E o templo, por sua vez, em um símbolo vivo de resistência
e acolhimento. A cada semana, mais e mais pessoas afluíam, almas famintas por
sentido, sedentas por um abraço que não cobrasse preço. Os encontros, agora,
aconteciam sob o vasto dossel do céu, entre pipas que dançavam no ar, o aroma
doce de pipocas, o latido alegre de cachorros e o riso solto de crianças que
corriam, suas camisetas estampadas com frases do Manifesto de Raham, como
bandeiras de uma nova era.
“O amor não cobra entrada.” “Não me julgue. Raham não faz
isso.” “Onde dói, Raham sopra.”
Era uma cena de beleza rara, quase utópica. Mas também era
perigosa. Porque quando a fé decide ir para a rua, ela inevitavelmente
incomoda. Pastores, padres e políticos, antes intocáveis em seus púlpitos e
palanques, começaram a atacar publicamente. Em programas de rádio, nas redes
sociais, em sermões inflamados, bradavam que Raham era uma heresia disfarçada
em voz de cordeiro. Que Calum era um lobo mudo, que agora permitia que suas
mulheres falassem por ele, e isso, para eles, era o maior dos pecados.
“Se tem mulher pregando, é do diabo falando. Eles pregam O
Deus Apócrifo.”
Vociferavam, com a fúria dos que veem seu poder ameaçado.
Mas as mulheres ouviam... e riam. Um riso que era uma mistura de escárnio e
triunfo. E quanto mais batiam, mais a fé em Raham crescia, como uma maré
imparável.
Foi em uma manhã de segunda-feira, com o sol ainda tímido no
horizonte, que a notícia inesperada chegou, como um bálsamo para as almas
cansadas, a casa de Raham havia sido liberada. Um juiz do Tribunal Estadual, um
homem discreto, de cabelos grisalhos, conhecido por suas sentenças técnicas e
seu ateísmo metódico, havia decidido arquivar o processo que embargava a
casa-templo. A justificativa? Entre artigos de leis e citações jurídicas, uma
frase se destacava, luminosa como uma flor que brota em meio a tijolos.
“O Estado é laico, mas a compaixão não é. O que se vive
nesta casa é amor. E isso, senhoras e senhores, não é crime.”
Calum leu a decisão em silêncio, sentado debaixo de uma
mangueira frondosa, a sombra acolhedora envolvendo-o. Lúcia estava ao seu lado,
a mão repousando suavemente em seu ombro, e Aletéia, com os olhos arregalados,
mal conseguia conter a emoção. E então, um som quase esquecido, um milagre em
si, preencheu o ar.
— Obrigado Raham...
A voz de Calum. Baixa, rouca, mas viva. Como uma brasa que
dorme sob a cinza e, de repente, decide queimar de novo, com mais intensidade.
Lúcia sussurrou, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Ele falou...
Calum repetiu, as lágrimas agora escorrendo livremente pelo
seu rosto, um misto de alívio e gratidão.
— A casa voltou. E com ela... minha voz.
Era a redenção, a prova de que a fé, o amor e a resiliência
sempre encontram um caminho. No domingo seguinte, o povo retornou. As fitas
coloridas, antes arrancadas pela burocracia, foram recolocadas, tremulando ao
vento como orações silenciosas. As cadeiras de plástico, testemunhas de tantas
histórias, voltaram a ocupar a sala onde antes se chorava solidão.
Agora, chorava-se outra coisa. Pertencimento. A alegria de
estar junto, de fazer parte de algo maior. E naquela noite, algo ainda mais
profundo aconteceu. Lúcia se afastou no meio da reunião, a mão na barriga, o
rosto pálido, uma mistura de surpresa e apreensão em seus olhos. Calum correu
até ela, o coração apertado.
— Tá tudo bem?
Ela não respondeu, apenas correu até o banheiro e vomitou.
Ao sair, olhou para ele, um sorriso leve brincando em seus lábios, os olhos
marejados de uma emoção indescritível.
— Calum... eu estou grávida.
O silêncio caiu sobre eles, pesado e cheio de significado.
Ele sentou. Ela também. Aletéia, ouvindo de longe, soltou um “Oxente!” quase
teatral, um grito de surpresa e alegria.
— Você tá zoando, né?
Ela perguntou, a voz embargada.
— Não.
Lúcia respirou fundo, os olhos cheios d’água, a voz
embargada pela emoção.
— Um médico disse que eu não podia mais. Que a idade, o
trauma, que eu tinha secado. Mas agora...
Ela não terminou a frase. Apenas chorou. E Calum chorou com
ela. E o povo aplaudiu, um aplauso que era uma celebração da vida, da
esperança, da fé. Porque Raham, como todo amor verdadeiro, nunca segue as
regras da lógica. Ele surpreende. Ele resgata. Ele planta.
Naquela mesma semana, as notícias se espalharam pelas redes
sociais como um incêndio incontrolável. Uma mulher em Belém abriu sua casa para
repetir os encontros, a semente de Raham germinando em solo fértil. Um
ex-pastor em Porto Alegre, expulso por defender o Manifesto da Nova Fé, começou
a ler os evangelhos apócrifos com seus vizinhos, a verdade se libertando das
amarras da doutrina. Em Salvador, uma travesti chamada Solange organizava
“Oradas Leb Raham” às terças-feiras na praça da Sé, com canto, afeto e
distribuição de sopa, o amor se manifestando em sua forma mais pura e generosa.
A fé tinha voltado para casa, sim. Mas também tinha saído de
lá, rompendo barreiras, transbordando limites. Era como fogo em campo aberto.
Não se controla. Não se delimita. Só se espalha, consumindo o medo, iluminando
as almas.
Naquela noite, depois da reunião, Calum, Lúcia e Aletéia
sentaram na varanda. O céu estava coalhado de estrelas, um manto cintilante que
os abraçava. O chão cheirava a café fresco e pão assado, aromas que evocavam
memórias de lar e acolhimento.
— Calum... você percebeu que agora... já não somos três.
Disse Aletéia, a voz suave, mas carregada de uma nova
compreensão.
— Já somos muitos.
Completou Lúcia, a mão repousando suavemente na barriga, um
sorriso de plenitude em seus lábios. Ele olhou para ambas, a voz firme, mas
doce, carregada de uma sabedoria que transcende o tempo.
— Não somos igreja. Não somos religião. Somos abraço. Somos
recomeço. Somos Raham. A verdade é uma só, mas foi distribuída pelo mundo de
várias maneiras. Para cada pessoa ela aparece de um jeito, e todos levam a
Raham, seja o nome que deem a Ele, são válidos. Nós só encontramos o nosso.
E então, como quem entrega o bastão ao universo, Calum olhou
para o céu e disse, baixinho, uma oração, um sussurro de esperança.
— Obrigado por nos devolver a casa. Agora nos inspira
coragem. Porque o mundo... começa a entender.
A fé em Raham, em sua simplicidade e profundidade,
continuaria a se espalhar, transformando vidas, uma alma de cada vez.