Calum passou a madrugada acordado. Não era insônia, mas uma
febre criativa, uma urgência que o impelia a transcrever para o papel as ideias
que fervilhavam em sua mente. A luz amarelada do abajur, um presente da mãe que
ele guardava com carinho, criava um casulo frágil e íntimo em torno da mesa de
madeira antiga, herança do pai.
O resto da casa dormia o sono profundo dos justos, alheia à
revolução silenciosa que acontecia ali. E lá fora, a cidade gemia seus barulhos
habituais, latidos distantes, o ronco abafado de motores, e a melancolia
universal das solidões que se encontram na madrugada.
No centro da mesa, um caderno de capa preta, comprado num
impulso quase místico numa livraria de bairro. Não era um caderno qualquer; era
um portal, um receptáculo para algo que estava nascendo. Ele pegou a caneta,
sentiu o peso dela na mão, e escreveu no alto da primeira página, com uma
caligrafia que era ao mesmo tempo hesitante e determinada.
"O Manifesto da Nova Fé – Raham"
Ficou olhando a folha por minutos, como se as palavras
fossem fantasmas indecisos, esperando o momento certo para se materializar. A
mente era um turbilhão de conceitos, emoções, memórias. A voz ferida de Lúcia,
o grito por justiça da jovem ateia, o vazio deixado pela mãe, e a presença
inefável que ele chamava de Raham. Tudo se misturava, buscando uma forma, uma
estrutura. Até que, como um rio que rompe suas margens, as palavras começaram a
fluir.
“Não somos uma religião. Somos um sussurro. Um eco na
vastidão do silêncio, uma melodia que convida à escuta, não à obediência cega.”
“Não prometemos salvação. Prometemos escuta. Escuta ativa,
empática, sem julgamentos. Porque a salvação, se existe, é um caminho
individual, pavimentado pela compreensão e pelo acolhimento.”
“Não há hierarquias. Não há pastores, bispos, gurus ou
líderes infalíveis. Quem fala, cala para ouvir. Quem cala, escuta para
aprender. E todos, sem exceção, aprendem e ensinam, num ciclo contínuo de troca
e crescimento.”
“Raham não exige culto. Ele é presença. Como a luz do sol
que aquece a alma sem pedir permissão, como o ar que respiramos sem pagar
dízimo, como a água que sacia a sede sem exigir sacrifícios. Ele está no
abraço, no olhar, na compaixão, na verdade que liberta.”
“Aceitamos os quatro evangelhos porque ali há poesia,
parábolas que tocam a alma, ensinamentos que transcendem o tempo. Aceitamos os
apócrifos porque ali há feridas, histórias silenciadas, vozes que foram caladas
pela ortodoxia. E nas feridas, encontramos a humanidade, a fragilidade, a
beleza da imperfeição.”
“Maria Madalena fala, e sua voz é a da mulher que amou sem
reservas, que ousou ser diferente, que foi a primeira a testemunhar a
ressurreição da esperança. Judas não é monstro, mas um homem complexo,
tragicamente humano, cuja história nos lembra da fragilidade da fé e da
facilidade com que julgamos. Tomé tem dúvidas, e suas dúvidas são as nossas, a
busca incessante por algo que possa ser tocado, sentido, compreendido. E Jesus
é mais humano do que divino, é por isso que nos inspira, porque em sua humanidade
encontramos a divindade, a capacidade de amar, de perdoar, de transcender a
dor.”
“Não há pecado por ser quem se é. Raham não mede cor,
desejo, gênero, ou dinheiro. Ele não se importa com a forma como você ama, mas
com a intensidade do seu amor. O único pecado, o verdadeiro pecado, é o
silêncio diante da dor alheia, a indiferença que mata a alma, o egoísmo, a
omissão que perpetua a injustiça.”
“Somos filhos do espanto. Espanto diante da beleza do
universo, da complexidade da vida, da capacidade humana de amar e de criar.
Somos seguidores da dúvida, porque a dúvida é o motor da busca, a chama que nos
impede de aceitar respostas prontas e nos impulsiona a questionar, a explorar,
a crescer. Somos devotos do mistério, porque a vida é um mistério, e a fé não é
a ausência de mistério, mas a capacidade de abraçá-lo com coragem e humildade.”
Calum escreveu como quem se liberta de correntes invisíveis.
Não pensava em dogma, em doutrina, em proselitismo. Pensava em sobrevivência. A
sua e a de outros. Pensava na Lúcia, com sua voz ferida pela hipocrisia
religiosa. Pensava na jovem ateia, no seu grito por justiça contra a violência
em nome da fé. Pensava na mãe, e na luz que ficou no quarto dela mesmo depois
que o corpo se foi, uma luz que ele agora entendia como a presença de Raham.
“O templo não é de pedra. Não é um edifício imponente, com
vitrais coloridos e altares dourados. O templo é onde dois ou três compartilham
verdade sem julgar, onde corações se abrem, onde almas se encontram na
vulnerabilidade e na aceitação mútua.”
“Raham não é uma pessoa. Não é um velho barbudo sentado num
trono nas nuvens. É um sopro, uma respiração, a essência que permeia tudo, a
energia que conecta, a força que impulsiona o amor e a compaixão. Ele é o
espaço entre as palavras, o silêncio entre as notas, a luz entre as sombras.”
Parou. Olhou o que havia escrito. Não era muito, talvez uma
fração do que ainda estava por vir. Mas era tudo o que ele sabia, tudo o que
ele sentia, tudo o que ele precisava expressar. Por ora. Fechou o caderno
devagar, com a reverência de quem guarda uma coisa viva, preciosa, sagrada.
Ali, sozinho, com o coração ainda ecoando vozes da internet,
da infância, do luto, das novas conexões... Calum não sabia se tinha fundado
uma nova fé ou apenas escrito um diário de sua própria alma. Mas não importava.
Porque, pela primeira vez em anos, ele não se sentia vazio. Não sentia o vácuo
da ausência, a dor da solidão.
Sentia... presença. Sentia... Raham. Uma presença que não
exigia crença cega, mas que convidava à experiência, ao sentir, ao viver.
Então enviou para suas duas novas companheiras.
Calum se levantou da mesa, os olhos ardendo de cansaço e de
uma estranha euforia. Foi até a janela da sala, abriu-a devagar, deixando o ar
fresco da madrugada invadir o ambiente. O céu ainda não tinha amanhecido
completamente, mas já não era noite. Aquele cinza azul que antecede o primeiro
canto dos pardais, a promessa de um novo dia, de um novo começo.
Ele olhou para cima, como fazia quando criança, tentando
adivinhar onde Deus morava, onde o mistério se revelava. E falou, baixo, num
sussurro que era ao mesmo tempo prece e desabafo, uma conversa íntima com o
invisível.
— Se você existe... se esse nome que me veio, Raham, é mesmo
seu... então não me deixe sozinho nisso. Eu não quero seguidores, não quero
multidões, não quero poder. Só quero que ninguém mais se sinta órfão do céu
como eu me senti. Que essa fé não vire prisão, não se torne um fardo, uma
ferramenta de controle. Que vire caminho, um mapa para a liberdade. Que vire
colo, um refúgio para os cansados. Que vire aconchego, um abraço para os
solitários. Que vire calor, a chama que aquece as almas frias.
Pausou, com os olhos molhados, mas sem vergonha. As lágrimas
eram um testemunho de sua vulnerabilidade, de sua humanidade, de sua entrega.
— E se eu estiver errado... que pelo menos essa mentira leve
consolo a alguém. Que minhas palavras, mesmo que falhas, possam acender uma
pequena luz na escuridão de alguém. Mas se eu estiver certo... então fala.
Sussurra. Sopra. Mesmo que ninguém escute. Mesmo que só eu escute. Eu escuto.
Eu estou aqui. Eu estou pronto.
Fechou os olhos, sentindo o vento suave no rosto, o cheiro
da madrugada, a promessa do amanhecer. O silêncio respondeu. Mas não era um
silêncio vazio, indiferente. Era um silêncio que respirava, que pulsava, que
continha todas as respostas e todas as perguntas. E ele sabia... era Raham
falando. Era a presença que ele tanto buscava, que ele tanto precisava, que ele
agora sentia em cada fibra do seu ser. E com essa certeza, Calum se sentiu,
pela primeira vez, verdadeiramente em paz.