Calum acordou com a luz da manhã batendo no rosto, um feixe
dourado que dançava sobre a poeira suspensa no ar. O som do celular apitando
notificações era uma sinfonia inesperada, um coro de vozes digitais que o
puxava de volta para a realidade. Três comentários no vídeo. Dois e-mails. E,
no topo da lista, uma mensagem de @ateiafuriosa_97, que ele já sabia se chamar
Aletéia. A mensagem era curta, direta, e carregada de uma urgência que ele
reconheceu imediatamente.
“Você já pensou em fazer um site? Essa coisa precisa viver
fora do TikTok. Precisa de um lugar para respirar, para crescer, para ser mais
do que um vídeo viral.”
Ele riu. Um riso leve, quase incrédulo. Era como se Raham, o
sopro divino que ele tanto buscava, soprasse o mesmo pensamento em dois
corações diferentes, conectando-os através da tela, da distância, da diferença.
Era a prova de que a fé, a verdadeira fé, não precisava de templos de pedra,
mas de pontes de conexão.
Passou a mão no rosto, sentindo a aspereza da barba por
fazer, o cansaço dos olhos que haviam visto demais e dormido de menos. Olhou ao
redor do pequeno quarto onde tudo começara, o altar improvisado com livros
empilhados, os cadernos com anotações rabiscadas de madrugada, os vestígios de
uma busca solitária.
Mas agora... agora era hora de colocar os pés no chão. Raham
merecia mais que devaneios num vídeo vertical, mais que um sussurro efêmero nas
redes sociais. Raham precisava de um corpo, de uma casa, de um lugar para
habitar.
Pegou o celular e digitou, as palavras fluindo com uma
facilidade que o surpreendeu.
“Sim. Mas eu nem tenho notebook. E não entendo nada disso.
Você conhece alguém que possa ajudar?”
A resposta veio em menos de dois minutos, rápida como um
raio, carregada daquela impaciência que ele já começava a amar em Aletéia.
“Eu posso. Me dá uns dias. E não se preocupe com o notebook.
A gente dá um jeito.”
@ateiafuriosa_97, a garota que veio com fúria, que na
verdade se chamava Aletéia, não era do tipo que fazia as coisas pela metade.
Quando se metia em algo, mergulhava fundo, mesmo que resmungando, mesmo que
questionando cada passo. E foi assim que, entre um café preto amargo e uma
playlist de punk rock que ecoava nas paredes de seu pequeno apartamento, ela
começou a desenhar o que seria o primeiro portal da Nova Fé. Não um portal para
o céu, mas para a terra, para a conexão humana, para a verdade que liberta.
O nome?
Raham.org.
Simples, direto, como um sussurro que ecoa no fundo do
peito, como um chamado que dispensa adornos. Com a ajuda de Calum, que fornecia
o conteúdo, as ideias, a alma, Aletéia criou seções com os princípios do
manifesto, os textos que ele havia escrito, vídeos que ele havia gravado, um
espaço para perguntas, um espaço para o silêncio.
E, sem perceber, ao organizar as ideias de Calum, ao dar
forma àquele caos criativo, ela começou a acreditar nelas. Não como quem abraça
um dogma, uma doutrina imposta, mas como quem reconhece uma cicatriz antiga num
espelho novo, uma verdade que ressoa com sua própria história de dor e
superação.
A relação entre Calum, Aletéia e Lúcia se estreitava a cada
dia. Mesmo ainda separados fisicamente, em diferentes cidades, em diferentes
realidades, eles estavam unidos em torno de uma ideia que crescia, de um
propósito comum, de uma verdade que acendia nos corações deles a vontade de
falar para o mundo. A fé crescia dentro, forte, não como uma imposição externa,
mas como uma força vital que os impulsionava a agir.
Lúcia, a missionária desiludida, foi quem deu o primeiro
passo, o mais ousado. Ela sabia que havia finalmente encontrado algo que falava
diretamente ao seu coração, à sua alma, algo que curava as feridas abertas por
anos de hipocrisia e abuso. Quando tentava se convencer de que era loucura, que
estava apenas trocando uma ilusão por outra, os vídeos, os textos e as
conversas com Calum a puxavam de volta como cordas invisíveis, como um chamado
irresistível.
Um dia, ligou sem aviso, a voz embargada de emoção e de uma
coragem recém-descoberta.
— Eu sei que é repentino... estranho mesmo, nós só nos
falamos por telefone, e eu mal te conheço pessoalmente..., mas... você tem um
quartinho nos fundos? Um lugar onde eu possa ficar por um tempo? Preciso estar
perto. Preciso fazer parte disso.
Calum sorriu. Um sorriso que iluminou seu rosto, que
expressava a alegria de quem finalmente encontra sua tribo.
— Tenho, e seria uma honra tê-la aqui, para juntos
edificarmos a casa de Raham. Não uma casa de tijolos, mas de almas. Não um
templo, mas um lar.
Houve silêncio por alguns segundos, um silêncio carregado de
hesitação, de medo, de esperança. Então ela disse, a voz firme, decidida.
— Raham me chama. Eu sinto. Vou mudar para aí. Só vou
arrumar algumas coisas aqui, vender o que resta, e então estarei aí. Preciso
estar presente fisicamente ao nascimento de algo tão belo, tão verdadeiro, tão
necessário.
E foi assim que, no meio do improviso, do caos criativo, o
sagrado começou a ganhar carne. Calum comprou um notebook usado, com a tela
levemente rachada, como um espelho antigo que ainda refletia o essencial.
Afinal, estava desempregado e racionava com cuidado o dinheiro da rescisão e as
parcelas do seguro-desemprego.
Passava as noites ao lado de Aletéia, virtualmente,
atualizando o site, respondendo dúvidas de desconhecidos que chegavam cheios de
dor e desconfiança, buscando um porto seguro. Lúcia, já se integrava,
preparando café, lendo os textos, propondo encontros semanais, virtuais, por
enquanto, mas com a promessa de um futuro encontro físico.
Três pessoas. Um quarto apertado. Um Deus que não exigia
sacrifícios, apenas escuta. E, mesmo que ninguém visse ainda, mesmo que ninguém
chamasse aquilo de “igreja”, algo estava sendo fundado. Não com pedras, mas com
gente. Não com dogmas, mas com histórias. Não com rituais, mas com conexão.
Calum olhou ao redor uma noite, enquanto Lúcia ria de uma
piada de Aletéia, e sentiu uma estranha alegria. Não era euforia, a alegria
passageira dos momentos de glória. Era paz. A sensação de pertencimento, de
que, pela primeira vez em anos, ele não estava construindo sozinho. Ele não era
mais um profeta solitário, mas parte de algo maior, algo que estava nascendo e
crescendo a cada dia.
Raham não era mais só uma ideia, um conceito abstrato. Era
um espaço habitado. Um lar. Um corpo que ganhava forma, feito de carne, osso, e
muita, muita fé.