O vídeo de Calum não viralizou. Não ainda. Ele não buscava a
fama efêmera das redes sociais, mas a ressonância, o eco em almas que, como a
sua, ansiavam por algo mais profundo. E, de fato, o vídeo começou a circular.
Não em explosões midiáticas, mas em sussurros digitais, em pequenos grupos de
WhatsApp, em fóruns obscuros onde as perguntas ardiam mais do que as respostas
prontas.
Era nas sombras da internet, onde a busca por sentido se
misturava com a desilusão, que a semente de sua mensagem encontrava terreno
fértil. E foi numa dessas curvas digitais, num beco sem saída da conformidade,
que ela apareceu.
@ateiafuriosa_97.
O nome já era um grito, uma declaração de guerra. E seu
comentário no vídeo de Calum não foi diferente, um míssil teleguiado, carregado
de sarcasmo e fúria, explodindo na caixa de comentários.
“Parabéns, mais um machinho de meia-idade tentando
reinventar a roda espiritual. O mundo não precisa de mais religião, precisa de
menos. Fé demais não cheira bem!”
Calum leu. E riu. Um riso nervoso, quase histérico, que
ecoou no silêncio de sua sala. Pensou em ignorar, em deixar a fúria dela se
dissipar no éter digital. Mas alguma coisa no tom, na acidez cortante daquelas
palavras, o cutucou. Não era apenas raiva, era dor. E Calum, mais do que
ninguém, reconhecia a dor disfarçada de fúria.
Ele respondeu, com a calma de quem já havia enfrentado
tempestades muito maiores.
“Concordo com você em quase tudo. Mas... e se for algo novo?
E se for reencontro? Não com dogmas ou instituições, mas com algo que perdemos
no caminho?”
Dois minutos depois, uma ligação de vídeo. Sem aviso, sem
preâmbulo, sem a menor cerimônia. A tela do celular vibrou em sua mão, um
convite abrupto para um confronto. Ele atendeu, meio sem pensar, movido por uma
curiosidade que beirava a imprudência. E lá estava ela.
Uma jovem de vinte e poucos anos, grandes olhos verdes, a
personificação da rebeldia e da inteligência afiada. O cabelo raspado de um
lado, um ato de desafio contra a simetria e a convenção. Uma argola no nariz,
um adorno que gritava independência. A camiseta dos Ramones, um hino silencioso
à contracultura. O fundo desfocado revelava pôsteres de Nietzsche, o filósofo
que declarou a morte de Deus, e uma placa artesanal, escrita em letras
garrafais.
“Queima o templo”.
— Você é corajoso ou burro?
A voz dela era um chicote, cada palavra estalando no ar.
— Atender uma estranha que te chama de charlatão? Que te
manda queimar o templo?
Calum sorriu. Um sorriso genuíno, que alcançou seus olhos.
— Talvez um pouco dos dois. Ou talvez eu esteja apenas
cansado de conversas vazias.
— Escuta aqui, Calum, né? Que nome estranho.
Ela não esperou por uma resposta. A fúria era sua armadura,
sua forma de se proteger do mundo.
— Eu assisti o vídeo. Assisti inteiro. Achei bonito. Poético
até. Uma melodia triste sobre um Deus que não existe. Mas sabe o que mais me
incomoda? Não... incomoda não é a palavra. O que me irrita?
— O quê?
Calum perguntou, a voz suave, convidativa.
— Que você parece sincero.
Ela cuspiu as palavras, como se a sinceridade fosse a maior
das ofensas.
— Mente com dignidade. E isso é perigoso. Muito perigoso.
O silêncio pairou entre eles, denso, carregado de
significados não ditos. Ela continuou, a fúria crescendo, mas agora com um tom
de cansaço, de desilusão profunda.
— Eu estou cansada de homens sinceros com ideias lindas que
acabam virando tiranos. Já vi isso antes. Começa assim, “Deus é amor”, depois
vira “só ama quem pensa como eu”. Você fala bonito. Mas ainda tá vendendo Deus.
E Deus é um produto perigoso demais. Muito já se matou em nome dele. Muito já
se torturou, se humilhou, se silenciou em nome dele. E eu não vou cair nessa de
novo.
— Eu não estou vendendo nada, acredite.
Calum respondeu, a calma em sua voz um contraponto à
tempestade dela.
— E nem estou tentando convencer ninguém a coisa nenhuma.
Não quero converter ninguém. Como disse José Saramago, um escritor que admiro
profundamente, por sinal, um ateu convicto.
“Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de
convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.”
Ele fez uma pausa, os olhos fixos nos dela, buscando uma
fresta na armadura de fúria.
— Eu só não consegui mais ficar calado. A dor era grande
demais para ser contida. A busca era urgente demais para ser silenciada.
Ela o encarou pela câmera, os olhos de faca, mas agora com
uma pitada de curiosidade. A fúria não havia desaparecido, mas uma rachadura
começava a surgir em sua superfície.
— Hunnn... Você acredita mesmo nisso? Que esse tal de Raham
existe? Um ser que criou tudo? Que se importa com a gente, com essa bagunça
toda?
Calum pensou por alguns segundos, as palavras pesando em sua
mente antes de serem proferidas. Não era uma questão de dogma, mas de
experiência, de intuição.
— Eu não sei. Não com a certeza de quem tem todas as
respostas. Mas quando minha mãe morreu, e eu olhei para o céu vazio, para a
vastidão indiferente do universo, e mesmo assim senti que ela não tinha ido
embora, que havia algo além do concreto, algo que transcendia a matéria... eu
soube. Não posso provar. Mas posso sentir. É uma fé que nasce da ausência, da
perda, da necessidade de que haja algo mais. Você já ouviu sobre o argumento do
ajuste fino?
— Ajuste fino? Não. O que é isso?
A voz dela, pela primeira vez, não carregava a fúria
habitual. Havia um tom de genuína curiosidade, como se uma nova porta tivesse
se aberto em sua mente.
— O termo "ajuste fino" refere-se à precisão quase
inacreditável com que certas constantes físicas e parâmetros do universo
precisam ser ajustados para que a vida como a conhecemos seja possível.
Calum explicou, sua voz ganhando um tom didático, mas sem
perder a paixão.
— É como se o universo fosse um relógio complexo, e cada
engrenagem, cada mola, estivesse perfeitamente calibrada para que a vida
pudesse florescer.
— Não entendi.
Ela franziu a testa, mas não com desdém, e sim com um desejo
real de compreender.
— Explico com um exemplo.
Calum continuou, paciente.
— Pense na distância do Sol para a Terra. É exatamente a
necessária para que haja vida aqui. Se estivéssemos um pouco mais perto, a água
evaporaria, os oceanos ferveriam. Um pouco mais longe, tudo congelaria, a vida
seria impossível. Ou a razão entre a massa do próton e a do nêutron, se essa
razão fosse ligeiramente diferente, o hidrogênio não seria estável e não
haveria água, um componente essencial da vida. Pequenas variações, e o universo
seria um lugar estéril, sem estrelas, sem planetas, sem vida.
— O argumento do ajuste fino afirma que a probabilidade de
que essas constantes e parâmetros ocorram por acaso é extremamente baixa, quase
nula. Portanto, a melhor explicação para essa precisão é que ela foi
intencionalmente projetada, por um projetista inteligente do universo. A ideia
é que a complexidade e a precisão do ajuste indicam um propósito, não uma
ocorrência aleatória. Não é uma prova de Deus, mas uma sugestão, um convite à
reflexão sobre a maravilha da existência.
Ela ficou em silêncio. Pela primeira vez, a fúria deu lugar
à introspecção. Seus olhos, antes cheios de raiva, agora estavam pensativos,
distantes. Então, desabafou, as palavras jorrando como um rio represado que
finalmente encontra uma saída.
— Sabe, Calum, sou lésbica. Sempre soube disso. Desde
criança, eu sentia que era diferente, que meu coração batia por outras meninas.
E quando contei, fui chamada de filha do demônio. Meu pai, um homem que eu
amava e que me amava à sua maneira, me mandou para um retiro de cura. Um lugar
onde a fé se transformava em tortura. Me amarraram. Me disseram que era
possessão demoníaca, que eu precisava ser exorcizada. E se não bastasse, fui
abusada por um líder de juventude da igreja que disse que era por falta de conhecer
um homem, isso tudo quando eu tinha catorze anos. Catorze anos, Calum. Minha
infância foi roubada em nome de um Deus que eu não reconhecia.
Calum ficou pálido. Uma lágrima escorreu por seu rosto,
solitária, mas carregada de toda a dor que ele sentia por ela, por todas as
vítimas da hipocrisia e do fanatismo.
— Sinto muito. Sinto muito que você tenha passado por isso.
Ninguém deveria passar por isso.
— Não sinta.
A voz dela era firme, mas agora sem a fúria, apenas a
cicatriz de uma dor antiga.
— Virei o que virei por causa disso. Me fez mais forte. Fiz
filosofia, psicologia, li tudo que podia, buscando respostas, buscando uma
forma de entender o mundo e a mim mesma. Hoje eu luto para que ninguém passe
pelo que eu passei. Por isso te achei. Porque você me incomodou. E quando algo
me incomoda... é porque tem verdade ali. Uma verdade que eu não quero, mas que
preciso confrontar.
Ela respirou fundo, a voz mais baixa, quase um sussurro.
— Mas cuidado. Verdade demais pode matar. Pode te consumir,
te deixar sem chão. E você parece ser o tipo de pessoa que se joga de cabeça.
Calum sorriu. Um sorriso cansado, mas grato. Um sorriso de
quem havia encontrado uma alma gêmea na dor, na busca, na rebeldia.
— Obrigado por me dizer isso. Eu vou tomar cuidado.
— Ainda acho você um doido.
Ela disse, e dessa vez, havia um leve traço de humor em sua
voz, um reconhecimento de que, talvez, a loucura deles se complementasse.
Calum sorriu.
— Eu também.
Ela olha direto para Calum.
— Mas eu gosto dos doidos, eles são verdadeiros.
Ela não riu. Mas desligou com menos raiva. A tela ficou
preta, e Calum se recostou na cadeira, o coração ainda acelerado, mas de uma
forma diferente. Não era medo, nem ansiedade. Era a pulsação da vida, da
conexão. No canto da tela, uma notificação discreta, mas poderosa, apareceu.
@ateiafuriosa_97 começou a seguir você.
Primeiro Lúcia, a missionária desiludida. Agora essa garota,
a ateia furiosa. Era como se o universo, devagarinho, começasse a responder.
Não com aplausos, não com multidões, mas com ecos. E cada eco era um sinal, uma
confirmação silenciosa de que Raham respirava, não nos templos de pedra, mas
nos corações abertos, nas feridas expostas, nas buscas sinceras. E Calum soube
que sua jornada estava apenas começando.