Calum não sabia como. A verdade é que ninguém sabia. Mas o
Manifesto da Nova Fé, nascido da urgência de uma madrugada insone e da
necessidade de dar voz a um sentimento inominável, encontrou seu próprio
caminho.
Foi parar nas mãos erradas, ou certas, dependendo do ponto
de vista. Um texto que era mais desabafo do que doutrina, um esboço de
princípios que mal ousava chamar de religião, um sussurro que se recusava a ser
silenciado.
Ele tinha escrito aquelas palavras com os olhos ainda cheios
da conversa com @ateiafuriosa_97, com o eco da dor de Lúcia ressoando em sua
alma. Era um documento íntimo, quase um diário, guardado a sete chaves no disco
rígido de seu computador. Não tinha divulgado. Não oficialmente. Apenas
enviara, num impulso de confiança e vulnerabilidade, para Lúcia e ateia, que
prometeram guardar o segredo, como quem guarda um tesouro frágil e precioso.
Mas a internet tem ouvidos que escutam até suspiros, olhos
que veem nas sombras, e mãos invisíveis que compartilham o que deveria
permanecer oculto. Alguém, em algum lugar, de alguma forma, teve acesso a
trechos do manifesto e os postou no X, o antigo Twitter. Sem nome, sem autoria,
apenas com uma legenda que era um grito silencioso de identificação.
“Não sei quem escreveu isso. Mas eu precisava. Talvez você
também.”
Era só um trecho, uma pequena amostra daquele universo de
palavras que Calum havia vomitado na tela. Mas era um trecho poderoso, capaz de
tocar almas sedentas por algo diferente, algo real.
"O Deus em que creio não exige sacrifícios, não impõe
regras, não cobra dízimos. O nome dele é Raham, e ele é menos um rei do que um
sopro. Mais mãe do que patrão. Mais ausência do que presença. Mas uma ausência
que conforta, que abraça, que permite que a vida floresça sem amarras."
Na primeira hora, três curtidas. Duas delas, provavelmente, “bots”,
robôs fantasmas digitais que habitam as redes. Calum nem se importou. Na
segunda hora, porém, veio a primeira resposta humana, um fio de esperança no
emaranhado de algoritmos.
"Isso parece o que eu sempre quis ouvir e nunca tive
coragem de dizer."
Um arrepio percorreu a espinha de Calum. Era um eco. Um
reconhecimento. Na terceira hora, a ironia previsível de um teólogo, um
guardião da velha fé, que se sentia ameaçado pela novidade.
"Mais um guru do sofá. Aposto que vende caneca, saúda o
Sol e cultiva samambaia."
A risada de Calum foi amarga. Ele não vendia nada, não
cultiva samambaias, e o sol, para ele, era apenas uma metáfora para a presença
de Raham.
A próxima um evangélico que espumava ódio.
“Blasfêmia! Que Deus nosso Senhor queime você e seus
seguidores no inferno.”
Mas na quarta hora, veio o inesperado. O incontrolável. A
prova de que as palavras, uma vez lançadas ao vento, ganham vida própria. Um
artista de rua do Recife, com a alma vibrante e a coragem dos que pintam a
verdade em muros, fez uma pichação enorme com a frase num muro laranja,
vibrante como a alma nordestina.
"Raham é vida, é colo, respira onde mandam não
respirar."
A imagem viralizou. E com ela, o manifesto. Como um incêndio
em campo seco, as palavras de Calum se espalharam, incendiando corações,
provocando debates, gerando perguntas. Começaram a surgir mensagens, centenas
delas. Calum, que ainda resistia a abrir o celular de manhã, acordou com
cinquenta notificações.
Gente perguntando o que era Raham. Se era uma nova seita. Se
ele aceitava doações. Se tinha um templo. Ele não tinha nada. A não ser
dúvidas, um medo velho de virar exatamente aquilo contra o que lutava, e a
certeza de que algo maior estava acontecendo.
Lúcia ligou, a voz carregada de uma mistura de espanto e
diversão.
— Não fui eu, juro.
Ela disse, antes mesmo que Calum pudesse perguntar.
— Eu sei, e não importa.
Calum respondeu, um sorriso cansado nos lábios.
— Talvez... só talvez, tenha sido Raham. Ele tem seus
próprios meios de comunicação, parece.
Ela riu, uma risada rouca e libertadora.
— Deus hackeando arquivos agora? Que moderno!
— Se ele não couber num pen drive, não é Deus.
Calum retrucou, a frase saindo de seus lábios com uma
naturalidade que o surpreendeu. Era a sua verdade, a sua forma de entender o
divino, algo que transcende as limitações humanas, que não pode ser contido em
dogmas ou tecnologias.
Um silêncio confortável se instalou entre os dois, um
silêncio de compreensão mútua, de almas que se reconhecem na jornada. Então,
Lúcia disse, a voz mais séria, mas ainda com um tom de desafio.
— Calum, você começou um incêndio. Um incêndio que não pode
ser apagado. Agora precisa decidir se vai fugir dele... ou dançar em volta da
fogueira. Se vai se esconder das chamas que você mesmo acendeu, ou se vai se
entregar a elas, permitindo que o purifiquem, que o transformem.
Calum olhou para o celular. O Manifesto da Nova Fé estava
lá, ainda incompleto, um rascunho de um futuro incerto. Ele sentiu o peso da
responsabilidade, o medo de falhar, de se tornar mais um falso profeta, mais um
guru do sofá. Mas também sentiu uma pontada de excitação, a adrenalina de quem
está prestes a saltar para o desconhecido.
— Talvez eu deva terminar.
Ele murmurou, mais para si mesmo do que para Lúcia.
— Ou talvez deva deixar que ele termine você.
Ela disse, a voz carregada de sabedoria ancestral, de quem
já havia visto muitos começos e muitos fins.
— Às vezes, a fé não se escreve em livros, em dogmas, em
rituais. Às vezes, a fé se queima. Se consome. Se transforma em cinzas para que
algo novo possa nascer.
Ela desligou. E Calum entendeu. A fé não era um texto a ser
revisado, um dogma a ser seguido, uma seita a ser fundada. Era um incêndio. Uma
fogueira que ele havia acendido, e agora precisava decidir se seria consumido
por ela ou se dançaria em suas chamas, permitindo que o transformassem. A
escolha era sua. E, pela primeira vez, ele sentiu que estava exatamente onde
deveria estar, no centro da fogueira, pronto para dançar.