Quando meus pais se divorciaram eu passei por maus bocados, mas não pelo fim do casamento em si. Até uma criança de seis anos como eu era capaz de notar que eles não eram felizes juntos, a barra pesada foi ter que ficar no meio da contenda, tentando entender se as coisas que faziam era por acreditarem que era o melhor pra mim ou para complicar a vida um do outro.
Quando o juiz deu a guarda pra minha mãe eu percebi que as coisas iriam melhorar, mas os hábitos reprováveis e as atitudes estranhas do meu pai eram assuntos recorrentes lá em casa. Ao fim de cada uma das visitas que acontecia de 15 em 15 dias eu passava por um interrogatório. Porém, conforme cresci, isso foi diminuindo. Acho que minha mãe se convenceu de que uma pessoa que me via duas vezes por mês não seria capaz de me influenciar tanto assim.
Porém, ela trabalhava de segunda a sábado, ainda dormia quando eu saía para a escola e não tinha chegado do trabalho quando eu ia me deitar. As vezes ela pegava umas faxinas aos domingos para complementar a renda, então, também não passávamos muito tempo juntos. Isso contribuiu para que eu me tornasse uma criança tímida. Minhas únicas atividades eram ver TV e alimentar minhas coleções.
Álbuns de figurinhas, revistas, brindes de biscoitos e refrigerantes, bolinhas de gude. Eu juntava tudo que fosse colecionável. Um dia, tentando criar uma conexão, meu pai me apresentou sua própria coleção. Era um grande acervo que ele guardava no porão. Um porão que após anos visitando sua casa eu sequer sabia que existia.
Funcionou. Agora tínhamos um interesse em comum, em cada visita à sua casa ele me mostrava suas novas aquisições e contava as histórias sobre como consegui cada uma. "Quando ficar mais maduro, vamos fazer algumas coletas juntos", ele me disse quando mostrou todas as etapas do processo.
Essa semana, muitos anos depois daquele dia, meu pai faleceu, foi surpreendido durante uma coleta e já não era tão ágil como no passado. Acabou sendo linchado por uma multidão furiosa frustrando a aquisição de uma nova peça para a coleção. Fiquei com a casa como herança. Não queria morar nela. É muito longe do meu trabalho atual.
Porém, não acho seguro alugá-la ou vendé-la. Não dá pra deixar qualquer estranho andando sozinho por lá. Correria o risco de encontrar os 183 cadáveres que temos porão. Devidamente catalogados e empalhados com perfeição em posições divertidas que mostram cenas do cotidiano. Aliás, tive uma ótima ideia para a próxima peça.