Harry estava no Brasil a um mês, perdeu tempo com turismo e agora corria para cumprir o prazo imposto pela empresa. Essa era sua primeira viagem internacional, estava empolgado. Apesar de ser apenas de classe média, ela se sentia rica no país e sua aparência rosada parecia agradável às mulheres.
Depois de passar por diversos pontos turísticos, bares e camas, finalmente começou a coleta de amostras vegetais para enviar ao grande laboratório farmacêutico no qual trabalhava. Eles queriam encontrar e patentear medicamentos feitos à base de plantas nativas. Harry encontrou várias espécies que julgou interessantes, teve boas dicas de uma barraqueira que encontrou. Remédios para calvície, osteoporose e até impotência. Verdadeiros milagres engarrafados com gosto de mel. Parecia que seu sucesso estava garantido. Foi quando, se despedindo, viu uma planta que chamou sua atenção. Nunca viu algo parecido.
A folha triangular de um verde intenso levava em seu interior o desenho de uma folha menor em coloração magenta. Lembrava o formato de um coração. Harry perguntou para a mulher o preço da planta. Ela respondeu que não estava à venda e se virou para atender outro cliente. Harry se sentiu ofendido. Não estava à venda? Era uma planta, em uma barraca que vendia plantas. Por que aquela seria uma exceção? Ele saiu andando com passos barulhentos em suas havaianas sofisticadas. A planta, que até então nunca tinha sido vista pelo americano, tornou-se uma praga.
Começou a vê-la em cada quintal pelo qual passava, cada estabelecimento comercial, nas praças da cidade, etc. Convenceu-se que ela tinha algo de especial, algum efeito curativo que justificaria a negação de seu precioso dinheiro. Em uma encruzilhada vazia, duas ruas antes do hotel onde estava hospedado, viu um exemplar plantado em uma lata de tinta em frente a uma casa de altos muros brancos, com cacos de vidro no topo que em alguns trechos eram escondidos pelo capim alto. Pensou que talvez a casa estivesse abandonada. O que explicaria os restos de comida e marcas de queimado no chão e ao longo do muro. Decidiu que pegar aquela planta seria mais um resgate do que um roubo, afinal, sem sua ajuda ela morreria.
Olhou para os lados, verificando sua solidão antes de enfiar a mão na terra e arrancar com raiz a planta que foi acomodada em uma sacola plástica junto das demais, essas compradas. Caminhou apressado e chegando ao seu quarto foi pegar seu caderno, onde registrou os ítens adquiridos e seus usos prováveis segundo as falas da barraqueira. Estava suado por conta da caminhada e tinha terra por baixo das unhas, mas isso não parecia lhe incomodar. Seu corpo era refrescado por uma brisa suave que movia as folhas das plantas que ornavam todo o cômodo. As janelas estavam fechadas.
Na semana seguinte o cientista estava de volta à sua terra natal. Todas as plantas foram colocadas em tubos de ensaio, seus compostos e propriedades foram dissecados, analisados e os possíveis usos já estavam sendo testados em animais. Com exceção de uma. A planta em formato de coração seguia em um vaso sob a escrivaninha, quase morta. Os exames preliminares mostraram que ela era tóxica para o contato com a pele e principalmente para a ingestão. Harry não compreendia tantas pessoas assumindo o risco de terem em sua propriedade algo tão perigoso, sem que houvesse um contraponto.
Trabalhava até tarde estudando a composição genética e fazia testes na esperança de descobrir algo que ninguém jamais foi capaz. Trabalhava incessantemente. Não vinha dormindo muito. Andava até escutando vozes, sussurros que chegavam em seus ouvidos acompanhados de brisas que derrubavam folhas de papel, copos plásticos e porta-retratos. Ventos que apenas ele parecia sentir.
Numa madrugada, trancado no laboratório, Harry recebeu uma visita inesperada. Um latino alto e forte, de jaleco branco, com cabelos lisos cortados em cuia. Em seu pescoço pendia um crachá da empresa onde, por tradição, teria o sobrenome da pessoa e seu cargo. Neste estavam os dizeres: Macuxi e Botânico. O homem bateu na porta e entrou sem esperar permissão, começou a falar com Harry em português. O rosto do homem era familiar, mas não de uma forma recente, foi como se fosse um velho conhecido de infância, agora crescido, viesse-lhe visitar.
— Caladium x hortulanum, também conhecido como Caládio, Tamba-tajá, ou para os íntimos, simplesmente Tajá. É uma herbácea pertencente à família Araceae, nativa da América Tropical. Acredito que ela não fique viva por muito tempo, afinal, ela não pertence a este lugar. Ela é sua?
Entrando na defensiva, impulsionado pela sua culpa, o cientista respondeu:
— Tudo no prédio pertence à empresa, desde a cadeira onde estou sentado até o crachá no seu pescoço, mas..
— Você sabia que é muito comum que as plantas tenham lendas ligadas à sua origem? É assim com a Vitória-régia, com o Guaraná e com o Tajá. Essa é uma planta de proteção, ela se liga ao dono de forma íntima, revelando fatos sobre ele, por isso deve ser oferecida de bom grado como um presente. Não vendido. Ou furtada. Ela tem o poder de repelir os maus espíritos, porém, pode se tornar um farol e atraí-los.
— Atrair espíritos? Você trabalha mesmo aqui? Está falando como um ignorante - disse Harry, com desprezo na voz que tentava esconder seu temor.
— Os espíritos atraídos dão sinais. Começa com uma brisa, suave, em locais improváveis. Depois são as vozes, vozes que muitas vezes são inaudíveis, mas de tempos em tempos lhe acusam, depois disso vem as visões. Coisas que não deveriam estar ali, mas que parecem tão reais que dificultam a distinção do que é real, até que o atormentado perece. Frequentemente é um fim triste e sem muita explicação, que costuma ser logo depois do início das visões.
— Já chega! Vou voltar ao meu trabalho, não tenho tempo para esses assuntos triviais. Se retire, por favor!
— Me retirar? Eu nunca estive aqui.
O homem voltou ao corredor e desapareceu. Harry sentiu o peso do cansaço acumulado. Decidiu ir para casa. Ao passar pela portaria se despediu de Charlie, o porteiro noturno, que lhe disse:
— Sr. Harry, finalmente vai pra casa? Já era hora. Está sozinho no prédio há cerca de três horas.