Escuto o sino da catedral. É meia-noite. O relógio toca a cada seis horas, porém as badaladas do meio-dia e das seis da tarde são inaudíveis para mim devido os sons dos quarteirões vivos que nos separam. De qualquer forma, essas outras marcações não me interessam. O horário do almoço e do banho de acento me são monótonos. Esta sim é a hora que aguardo ao longo de todo dia enquanto olho as paredes amareladas deste quarto gélido.
Finalmente, ouço o som dos passos na escada, o rangido da maçaneta, vejo a porta abrir vagarosamente e ela entrar. A enfermeira da noite. Queria que fosse a enfermeira da vida, sem dúvida, todas as minhas feridas seriam curadas, as do corpo e as da alma. Nunca ouvi uma palavra de sua boca e ao contrário das outras enfermeiras, esta não usa um crachá com seu nome. Talvez, seja isso, o mistério. Sim, é isso que me atraia nela e não seu corpo escultural que emana prazer por todos os poros, mesmo por baixo deste uniforme que quase nada revela ou seus brilhantes olhos que nunca encaram os meus, se não pelo reflexo do espelho ou ainda seu jeito sereno de quem sabe exatamente o que está fazendo.
Enfim, é chegado o momento, os formulários estão preenchidos e a droga que ela aplicará em mim, seja qual for, já está na seringa. Ela se aproxima e toca meu braço. Eu, apenas relaxo e me deleito com o momento. Como eu queria que pudéssemos estar juntos em um quarto mais interessante, com cortinas de seda, lençois de cetim, na meia luz de um abajur vermelho como carne viva e um espelho no teto, talvez uma cama redonda que girasse. E por que não uma banheira de hidromassagem? Já que é pra sonhar. A droga faz efeito. Resisto o máximo possível, mas apago enquanto admiro seu rosto fino e suavemente retangular, contrastando com seus lábios grossos, seu cabelo que consegue ser belo, mesmo preso em um coque e seus olhos que adornam o entorno como duas esmeraldas em uma estátua de ouro branco.
Ao apagar, tenho conscientes sonhos eróticos nos quais faço todas as maiores obscenidades passíveis de serem imaginadas por um celebro humano que ignore as leis anatômicas e fisiológicas. Vou aos limiares mais longínquos da moral e retorno, apenas para pegar impulso e tentar ir mais longe. Desperto com o badalar do relógio da catedral. Sozinho novamente. Suportarei mais um dia monótono com presenças esporádicas de pessoas por quem tenho tanto desprezo quanto elas tem por mim. Com exceção, talvez, da enfermeira da manhã. Essa, acredito eu, tem um asco por mim que ultrapassa todos os limites. Ela é responsável por minha higiene matinal, segura para mim o papagaio e limpa os restos de minhas múltiplas poluções noturnas.
Após o café da manhã, acontece a habitual troca de turno dos guardas, o novo vem até o quarto verificar minhas algemas. No entanto, hoje, algo está diferente. Esse guarda tem um sorriso genuíno no rosto. Não é o primeiro que substitui o cumprimento de "bom dia" por um soco no estômago. O sangue que expelí dias atrás é testemunha, porém, não via um sorriso de satisfação como aquele a meses. Desde o dia em que fui capturado, todos os olhares voltados para mim foram apenas de medo e raiva. Ou derivados destes em maior ou menor proporção, mas um sorriso, voltado para mim, isso era atípico. O que eu chamava de quarto, na verdade era um sótão no último andar do hospital. Optaram por me deixar lá por diversos motivos, mas principalmente para controlar melhor o acesso e impedir minha interação com outros pacientes. Olhando pela janela, algo que eu não era capaz de fazer pois as algemas não me permitiam sequer sair da cama, ele disse:
— Sua alta está sendo analisada. Se tudo der certo, como dará, manhã nesse horário você estará saindo dessa vida boa e nós não precisaremos mais fazer plantão no pé dessa maldita escada. Desfrute do seu último dia!
O guarda sorridente havia me dado aquela informação no intuito de me atormentar. Sim, ele queria que eu enlouquecesse, que implorasse misericórdia ou algo do tipo, mas na verdade o que ele me deu foi um presente. Agora eu sabia que aquela seria minha última oportunidade. Definitivamente, hoje eu falaria com a enfermeira da noite. Diria a ela tudo que senti na última semana, desde que ela substituiu a Tereza. Enfermeira anterior. Agora eu teria tempo para pensar no que falar. O guarda se frustrou com minha reação, esperava algo mais efusivo e não apenas reflexões silenciosas. Descontou sua decepção em mais um soco no estômago e voltou para seu posto ao pé da estreita escada de madeira que dava em um corredor pouco frequentado do hospital e era o único caminho para chegar até mim.
Ensaiando minhas falas com as paredes por toda tarde tentei lembrar de sonatas e poesias, mas nada me vinha à mente se não baladas melosas dos anos 80. Decidi ser espontâneo. Após o jantar haveria um longo período de solidão até que ela chegasse, seria o momento perfeito para tentar retirar as algemas, porém o ambiente estava mais silencioso, o guarda apareceria na porta a qualquer ruído. Depois de um longo período de concentração e algumas tentativas falhas consegui deslocar o polegar esquerdo e livrar essa mão, porém ela ficou fraca, ou talvez apenas minha motivação tenha se esvaído em decorrência da dor excruciante. O fato é que não fui capaz de repetir o feito na mão seguinte.
Aquilo teria que ser o suficiente. Uma mão é minhas palavras. Tudo que eu tinha para convencer a enfermeira da noite a ser minha. Ela teria que me entender. Entender que esse amor era grande demais, um amor que o mundo jamais viu e que era pequeno demais para nós dois, por isso, seria necessária uma união perfeita entre nossos corpos. Ela não teria tempo para pensar, pois o tempo estava acabando. A minha primeira noite de volta à penitenciária provavelmente seria minha última de vida, sobrevivi à experiência anterior apenas para ter a oportunidade de conhecê-la e me unir à ela e isso não poderia ser desperdiçado.
A empolgação toma conta de mim. Mesmo com dor, não sou capaz de conter o sorriso. As mulheres que vivem em mim estão ansiosas para terem a companhia dela, cada uma das dezenove que devorei. Mas, ainda são dez horas. Apenas daqui a duas chegará minha amada sem nome, minha doce menina veneno.