Faz tempo que eu sinto como se estivesse vivendo no automático, apenas realizando tarefas pré-programadas e em meio a elas tendo breves lapsos de lucidez. Momentos nos quais não tenho muita certeza do que estive fazendo ou do que estava prestes a fazer. Em um desses dias me vi de pé na garagem com as chaves do carro na mão, não lembrava onde tinha estacionado. Olhai todos naquele andar, quando finalmente decidi ir pra casa de ônibus encontrei meu carro. Estacionado na rua.
Outra vez, me vi na porta da creche da minha filha, porém duas horas depois do horário de saída. Fiquei desesperado imaginando minha filha aguardando por mim todo aquele tempo, imaginei os traumas que isso lhe causaria. Porém, ao abordar um funcionário recebi um cumprimento caloroso, o homem disse que sentia falta da minha filha e que não havia aparecido outra criança tão simpática quanto ela desde que ela tinha saído de lá dois anos atrás. Falamos sobre o clima, o feriado que se aproxima e me virei para ir embora.
Tudo saiu do controle na ocasião em que me vi diante da entrada de uma igreja decorada para um casamento. Fiquei envergonhado por não lembrar quem eram os noivos, mas por estar vestido com um bonito terno, adentrei e me sentei em um dos últimos bancos, até que um burburinho começou lá fora. Eis que uma moça com vestido longo me pegou pelo braço e me arrastou para fora dizendo que minha filha estava apenas me esperando para entrar e que havia me procurado por toda parte.
Caminhei determinado em direção a noiva tendo certeza que aquilo era um engano. Ela me veria e logo identificaria que eu não era a pessoa que ela procurava, afinal, minha única filha era apenas uma criança. Notei que meu andar exigia cuidado, os joelhos pareciam falhar, o que era estranho para um homem de 32 anos. Entretanto, antes de chegar à moça de longo vestido branco, véu e grinalda, fui tomado por um torpor e voltei a mim dentro de casa, de pé na sala de estar tendo à frente minha esposa que parecia estar morta a pelo menos três dias.
Sua pele estava ressecada e a única coisa que chamava mais a minha atenção que o odor de cadaverina eram seus cabelos brancos. Ela não tinha um fio sequer na última vez que a vi. Fui até o telefone pedindo ajuda, meus joelhos me castigavam a cada passo. Peguei o aparelho sobre a cristaleira e quando me vi no reflexo, notei que minha esposa não fora a única que envelhecera. Aquele era o rosto de um ancião. Com o telefone fora do gancho sinto que um novo lapso se aproxima. Disquei o número de emergência, mas não tenho certeza do que aconteceu depois disso.
Hoje acordei deitado no meu quarto. Era meu quarto, tenho certeza. Construí essa casa, conheço perfeitamente todas as dimensões, mesmo que a pintura e a mobília tenham sido trocadas. Mesmo que a paisagem lá fora tenha se tornado irreconhecível, sei que estou em casa. Mesmo que outras pessoas vivam aqui agora e que minhas tentativas de comunicação com eles tenham sido em vão. Apesar de tudo isso, acho que estou melhor agora. Os lapsos se foram.