Rafael era um jovem comum, morador da periferia. Gostava de música, de sair com os amigos, mas principalmente de futebol. Toda quarta-feira saia de casa para poder jogar no campo do bairro. Que apesar de visível de sua janela, só era acessível através de um grande emaranhado de vielas e becos, pois entre sua casa e o campo existia uma área de mata densa onde ninguém havia ousado construir ainda.
Talvez tivesse alguma ligação com o solo irregular, talvez com outra coisa. O fato é que um dia, Rafael precisou ajudar a mãe com reparos na casa depois de uma forte chuva e acabou perdendo o horário do jogo. Sabendo que conseguiria chegar ainda no primeiro tempo se cortasse caminho ele resolveu testar uma hipótese que lhe incomodava a muito tempo e cortar caminho pela mata. Vestindo o uniforme completo e acreditando que conseguiria chegar lá com tempo de sobra e ainda aprenderia um novo caminho para as próximas semanas, ele foi se embrenhado na mata, cada vez mais fundo. Sol começava a se por.
Quinze minutos mais tarde do que ele esperava, a mata ainda não havia acabado e ele continuava andando pelo terreno acidentado, agora já estava escuro e ele iluminava o caminho com a lanterna do celular. Seu coração bateu acelerado ao passar por uma árvore e ver que na cavidade do tronco existe um crânio humano. De fato, era possível que aquele matagal fosse usado para desova de corpos, mas ele não esperava algo assim, tão exposto.
De qualquer forma, aquilo não era problema dele e pelo horário o primeiro tempo do jogo já estava na metade, então ele decidiu seguir seu caminho, mas foi surpreendido por uma voz que lhe questionou:
— Está perdido?
Ele olhou ao redor preocupado, acreditando que tinha entrado no esconderijo de um meliante, que tinha visto demais, que seria capturado, morto e que seu corpo jamais seria encontrado. A voz continuou:
— Se não sabe aonde ir, olhe para trás, pelo menos saberá de onde veio.
Olhando por entre as árvores ele buscava a origem da voz que parecia estar muito próxima, ainda que ele não fosse capaz de enxergar, até que ao olhar para o crânio humano que jazia na cavidade da árvore, notou que no lugar onde antes havia duas órbitas vazias, agora emanava um intenso brilho vermelho. Ele tentava entender a situação quando escutou o cumprimento:
— Olá visitante.
O pavor tomou conta do rapaz, que deixou o celular cair e saiu correndo sem olhar para trás. Rafael finalmente chegou ao campo, esbaforido, sujo e pálido. Ao vê-lo, alguns amigos vão ao seu encontro.
— Caraca “muleque”, “perdemo” por sua causa! Andou por onde? – quis saber um dos amigos.
— “Ta” parecendo que ele acabou de sair de um filme de guerra, daqueles que os caras se camuflam no meio do mato. Ele “ta” todo sujo. – notou outro.
— O que você “tava” fazendo no mato até essa hora que estava melhor que o jogo e você preferiu ficar por lá? – questionou um terceiro em tom de deboche.
— Eu me perdi! Fui cortar caminho por dentro do mato, acho que fiquei andando em círculos. Teve uma hora em que eu vi uma parada muito bizarra. Tinha um crânio dentro do tronco de uma árvore e ele falou comigo! – respondeu Rafael, ainda recuperando a respiração.
— “Tá” chapadão! Você não era assim não hein, Rafael! Quem foi que te levou para esse mal caminho? – questionou um dos amigos, preocupado.
— Que chapadão o que, ele “tá” mentindo, devia estar se agarrando com alguém no meio do mato, foram pegos no flagra e ele veio correndo até aqui pra dizer que estava no jogo. Eu aceitei ser seu álibi Rafael, mas só se você falar com quem você estava. – disse outro garoto, mexendo as sobrancelhas.
— Não é nada disso, eu “tô” te falando sério! Tinha uma caveira, ela falou comigo no meio do mato. – Rafael parecia exaltado por não ser levado a sério.
— Quer saber, eu acho que os dois estão certos, ele estava pegando alguém no meio do mato e fumando um, daí começou a dar uma viajada loca e achou que a menina era uma caveira. Se bobear ele saiu correndo com as calças arriadas e tudo mais. – debochou um rapaz, logo recebendo apoio dos outros que caíram na gargalhada.
— É bem possível, lembra daquela festa em que ele achou que ficou bêbado depois de beber um energético!
— Ele é tão bobinho que é capaz de ter ficado chapado só de passar perto de alguém fumando. – o tumulto já era geral, Rafael ponderou e notou que se um de seus amigos chegasse contando a mesma história, provavelmente sua reação seria parecida, então, deixou eles conversando e foi para casa, pelo caminho longo, como deveria ser.
Ao chegar em casa recebeu uma bronca de sua mãe por ter ficado na rua por tanto tempo sem avisar e por ter ignorado suas ligações, já tendo sido muito zoado naquela noite, ele preferiu não contar a história toda, então só disse que perdeu o celular, pediu desculpas por preocupá-la e foi tomar um banho. Sua cabeça não parava de procurar uma explicação para o que viveu naquela noite. Teria delirado? Teriam lhe pregado uma peça? Como pode uma caveira falar? Depois de uma noite em claro o dia chegou, Rafael decidiu voltar ao local onde perdeu o celular. Convenceu-se que independente do que tivesse acontecido a perda do celular era real e ele precisaria recuperá-lo. Assim, embrenhou-se novamente na mata.
Com o dia claro ele imaginava que tudo ficaria explicado. Em poucos minutos chegou a um ponto que julgou familiar, olhou ao redor e encontrou a árvore, bem como o crânio em sua cavidade que pareciam não ter se movido desde a noite anterior. Como esperado de um crânio. Aproximou-se lentamente, como se achasse que a árvore fosse explodir ou algo do tipo. Ficou na posição em que esteve antes de sair correndo, olhou pelo chão e encontrou seu celular. Havia vinte chamadas perdidas de sua mãe.
— Ainda bem que você voltou pra buscar essa coisa, ficar nessa posição vergonhosa já tem sido tormento suficiente, eu não preciso do seu barulho irritante para compor maldição! Seria um requinte de crueldade e tanto da sua parte.
Mirando seus olhos para cima, Rafael viu novamente as órbitas, antes vazias, se iluminarem com uma luz vermelha. Ficou atônito diante da imagem, agora diurna do crânio. Era nítido, não havia fios ou interruptores, não tinha mais ninguém ao redor com câmeras lhe filmando. Aquela mata não era um ponto de passagem corriqueiro, instalar uma pegadinha ali seria um tiro no escuro, de fato, aquilo era real.
— Você não fala muito, né garoto? Melhor para você! A perdição do corpo é a língua!
Rafael tentou filmar a caveira falando, mas o celular que passou a noite na mata tinha pouca bateria e tudo que ele conseguiu foi uma foto. Com ela, encontrou os amigos com quem havia falado na noite anterior e tentou provar sua história. Estes, por sua vez, já tinham espalhado sua própria versão da história aos quatro ventos.
— Vejam, a caveira da qual eu falei! Voltei na mata hoje cedo, só não consegui filmar ela falando por causa da bateria, mas ela falou comigo mais uma vez.
— Rapaz, o efeito ainda não passou? Essa era forte mesmo!
— Eu não usei nada ontem e não usei nada hoje, eu “to” falando o que eu vi, esse crânios fala!
— Sabe o que é mais fantástico? — Puxou a palavra outro jovem — O cara poderia contar a mentira que fosse, mas faz um tremendo esforço pra convencer a gente da história mais sem noção. Se ele falasse que estava com a rainha da bateria do Viradouro no meio do mato tinha mais chance da gente acreditar do que falando que estava com uma caveira falante, mas ele insiste!
— Se vocês não acreditam em mim, então vão ter que ver com os próprios olhos! Vão até o lugar comigo! Ou não tem coragem? – Desafiou Rafael.
— Coragem, né!? Já que você quer ver quem tem coragem, vamos fazer o seguinte: nós vamos no meio dessa mata com você pra ver a sua caveira falante, mas se ela não falar ou se a gente descobrir que é um truque, a gente te da uma surra pra descontar a derrota que a gente teve ontem no jogo. Ainda acha que é uma boa ideia? – Rafael hesitou um pouco.
Ele sabia que a caveira conversava, mas esses caras eram maiores que ele e levavam apostas bem a sério. Por fim, ele aceitou. Marcaram de ir ao lugar onde estava a famigerada caveira falante no fim daquela tarde. Ao chegar lá os rapazes se aproximaram com cautela, olharam ao redor para ter certeza de que não teriam nenhum truque, procuraram pessoas escondidas atrás de arbustos ou sobre as árvores, mas nada encontrado. Por fim, pararam todos em frente ao crânio e disseram:
— Bem, a caveira “ta” ai, mas isso eu já vi, no cemitério tem uma pilha desse negócio. Quando é que ela vai começar a falar?
— Normalmente ela fala quando eu estou a essa distância da árvore, mas ela fala quando ela quiser, ué. – respondeu Rafael, inseguro.
— Cara, eu não tenho até amanhã pra ficar no meio do mato com uma cambada de marmanjo. Faça esse negócio falar de uma vez! – desafiou um dos rapazes, nervoso.
— Quer saber, é bom a gente já segurar o Rafael, antes que ele corra e deixe a gente aqui no meio do mato. Ele conhece o caminho, então vai conseguir fugir mais rápido que a gente.
— É verdade! É verdade! – concordaram os outros rapazes. Agora cada um segurava uma parte do jovem.
O mais alto dos rapazes, aquele que propôs o desafio, se aproximou de Rafael com um sorriso no rosto e disse:
— Nós fizemos a nossa parte do trato, viemos até essa mata para ouvir a sua caveira falar, agora é a hora de você cumprir a sua parte do trato e levar uma surra pra aprender a não ser um mentiroso! — Em seguida ele começou a dar socos no rapaz que estava imobilizado pelos outros dois, os agressores se revezaram até que todos tivessem batido nele e ele já não se aguentasse de pé. Depois disso o deixaram jogado no chão, escorado na árvore, e foram cuidar de suas vidas.
Enquanto recuperava o fôlego e contava os dentes para ter certeza de que todos estavam lá, Rafael escutou a voz da caveira que repetia em tom jocoso:
— A perdição do corpo é a língua meu amigo, a perdição do corpo é a língua!
Com suas últimas forças, Rafael pegou o celular no bolso e fez uma ligação, mas desmaiou antes que ela fosse atendida. Acordou algum tempo depois no hospital com sua mãe ao lado. Um colega dos garotos que bateram em Rafael escutou eles se gabarem da surra dada e ficou preocupado, avisou a mãe do garoto sobre o ocorrido e ajudou a descobrir onde ele estava. Rafael contou para a mãe toda a história sobre como ele quis cortar caminho, encontrou uma caveira falante, foi desacreditado pelos colegas e acabou tomando uma surra por ficar com fama de mentiroso.
A mãe disse que esses garotos eram uns marginais e que deveriam ir pra cadeia pelo que fizeram, mas Rafael não disse o nome de nenhum . Disse que não andaria mais com eles e que tudo ficaria bem porque ele nunca mais entraria na mata, nem que a caveira fosse feita de ouro maciço. Rafael notou que a mãe olhava fixamente para o celular do garoto que estava perto de uma mesa de cabeceira, percebendo esse comportamento. Rafael lhe perguntou:
— O que houve mãe? Você está esperando alguém ligar?
— Não é isso meu filho – respondeu ela - é que quando eu te encontrei no meio daquela mata você estava segurando o celular com tanta força que eu achei que você tinha filmado o rosto de quem te bateu, mas só tinha seu rosto desmaiado na gravação, só seu rosto e aquela voz.
— Voz? Que voz mãe?
— Eu não sei de quem era, mas era uma voz tenebrosa que repetia "Por andar à toa, morre-se a toa; por falar à toa, vai-se à toa! A perdição do corpo é a língua! A perdição do corpo é a língua."