Fernanda chegou ao sebo da Rua Almirante Teffer com muitas expectativas. Todas as bibliotecas da cidade estavam fechadas para o inventário de fim de ano. Seu clube do livro estava paralisado por tempo indeterminado e sua melhor amiga havia sumido com vários de seus livros. Ela teria que encontrar ali suas próximas leituras.
O garimpo iniciou como já era esperado. Vários volumes de Crepúsculo, muitos Harry Potter e uma multidão de Tons de Cinza. Ela teria que ir mais fundo. Encontrou algumas obras de Rick Riordan nas quais ficou interessada, porém folheando os exemplares viu que tinham folhas riscadas com marca texto e ela odiava livros marcados.
Até que ela encontrou, em uma banca de três livros por R$ 10, um exemplar de A morte de Ivan Ilitch. Esse era um grande achado, ela ouvia falar bem desse livro a muito tempo e estava em ótimo estado, tendo apenas uma dedicatória na contracapa. Separando seu exemplar, ela decide continuar a busca. Com a banca se estendendo por cinco metros, valia a pena tentar.
A jovem olhou cada um dos livros até o fim da banca, encontrou alguns que chamaram sua atenção, mas nenhum em tão bom estado, então foi pegar seu Tolstói antes de migrar para outra ilha, foi nesse momento que notou que o livro não estava onde ela deixou. Procurou no chão, nas bancadas próximas, até olhar para os lados e avistar seu livro nas mãos de outro cliente.
O homem, que deveria ter mais de 40 anos, estava no caixa com pilhas e mais pilhas de livros. Ela foi até lá.
— Com licença senhor, eu tinha separado esse livro para mim, será que posso pegar de volta?
— Esse? Sinto muito, já paguei por ele.
Se virando para a funcionária da caixa ela questiona:
— Teria outro exemplar desse livro? Eu realmente fiquei interessada nele.
— Se tiver, está na banca.
— Eu já olhei a banca inteira, não achei outro livro desse.
— Então foi o último. Sinto muito.
A atendente não parecia sentir muito, na verdade, ela parecia bem feliz com a ótima venda que estava fazendo e não tentaria barganhar com um cliente tão bom por alguém que levaria um único livro. A menina se preparou para ir embora da loja quando o homem disse:
— Olha, eu comprei mais do que posso carregar. Que tal um acordo? Você me ajuda a levar esses livros até o carro e eu te pago pelo favor com um livro. Temos um acordo?
O trato pareceu vantajoso para ambos os lados, Fernanda aceitou. Porém, pensou em desistir algumas vezes ao longo dos dois quarteirões que percorreu. A educação física do ensino médio não lhe preparou para isso, as pilhas de livros eram realmente grandes. Ao chegarem no estacionamento, Fernanda viu que o homem dirigia um furgão branco.
Ele tirou as chaves do bolso e abriu a traseira revelando para a garota um paraíso sobre rodas. O interior do furgão era uma biblioteca, revestida de prateleiras de madeira que eram abarrotadas de livros do teto ao chão, este forrado com um carpete. O cheiro de papel invadiu as narinas da jovem. Seus olhos brilharam mais que as luzes de natal que pendiam na entrada. A jovem chegou a esquecer o peso dos livros que carregava.
— Acho que você gostou da minha biblioteca móvel.
Pegando os livros das mãos da jovem, percebeu que ela sequer piscava, então disse:
— Sempre fico feliz por encontrar jovens que reconhecem o valor de um bom livro. Que tal uma alteração no nosso trato? Você pode escolher qualquer livro da biblioteca como pagamento.
— Mesmo? Posso entrar? — questionou a jovem, com um sorriso radiante no rosto.
— Claro! Sinta-se à vontade.
O homem observou enquanto a jovem colocou o primeiro pé no interior do veículo, quase como se estivesse entrando em um local sagrado. Os olhos da menina percorrem as prateleiras. Biblioteca da Meia-Noite, Tudo é Rio, O som do rugido da onça, Redemoinho em dia quente, Ponciá Vicêncio, A extinção das abelhas, O deus das avencas, O avesso da pele. A menina acreditou que poderia viver ali para sempre.
Passados alguns minutos sem que ela tomasse uma decisão o homem questionou:
— Me diz, onde você mora?
— Hã? Por quê?
— Está na minha hora, preciso ir embora. Se sua casa for caminho pra mim posso te dar uma carona, assim você terá mais tempo. Se não for, você terá que escolher agora.
— Eu moro na Alameda. — a jovem respondeu rápido.
— Bem, eu te deixo lá então.
— Certo. Tentarei escolher mais rápido.
A porta do furgão foi fechada. A temperatura era confortável e as luzes brancas, mesmo com o movimento os livros pareciam seguros. Fernanda se esforçou para tomar uma decisão. Fez uma pilha com cinco livros. Clássicos, lançamentos, raros, eram tantas possibilidades. Mas, ela finalmente decidiu, estava se levantando para anunciar ao motorista quando em uma curva, um livro caiu no chão.
Coraline, edição em capa dura. Aquele foi seu livro favorito por anos, sabia a história de cor. Tinha um exemplar exatamente igual que ganhou do pai em um aniversário. Quer dizer, teria se não tivesse feito um empréstimo para a melhor amiga. Quando ela desapareceu estava com esse e alguns outros livros seus. O livro fazia falta, mas a amiga fazia mais.
Fernanda abriu o livro com nostalgia. Na contracapa encontrou uma dedicatória que dizia:
"Para a coisa mais perfeita que eu já fui capaz de fazer, parabéns Nadinha! Com amor, papai"
Fernanda reconheceu o apelido pelo qual apenas seu pai lhe chamava, a letra, a data, não havia dúvida, aquele era seu livro. O carro fez uma parada brusca, a jovem que naquele momento sentia uma fraqueza nas pernas acabou indo ao chão. O homem abriu as portas traseiras e disse com entusiasmo:
— Chegamos na sua casa!
Fernanda engatinhou até metade do furgão e olhando para fora não reconheceu nada a não ser um matagal sem fim.
— Aqui não é a minha casa! — a jovem respondeu confusa.
— Agora vai ser. — o homem respondeu, subindo no veículo e fechando as portas.